08 Abril 2014
"Os agentes da repressão, segundo a advogada, aumentavam a dor dessas famílias com boatos e pistas falsas sobre os desaparecidos. No caso de Ísis, fizeram chegar aos ouvidos de dona Felícia que a filha havia sido vista em Londres. Ela conseguiu mobilizar recursos, embora a família quase não tivesse posses, e viajou para lá. Não encontrou nada", relata Roldão Arruda, jornalista, em artigo publicado no seu blog, O Estado de S. Paulo, 04-04-2014.
Eis o comentário.
Como é possível advogar num Estado autoritário, regido por leis de exceção? Uma das melhores e mais detalhadas respostas já produzidas para a pergunta está no livro Advocacia em Tempos Difíceis.
A obra acaba de ser lançada pela Fundação Getúlio Vargas, com apoio da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e sob a coordenação dos professores Rafael Mafei Rabelo Queiroz e Paula Spieler. Reúne, em 911 páginas, entrevistas de 34 advogados que defenderam perseguidos políticos durante a ditadura (1964-1985).
Eles revelam as estratégias que adotaram para defender clientes acusados de subversão e terrorismo e também as ameaças que sofreram. Vários deles foram presos por sua defesa intransigente do princípio de que todos têm direito à defesa e à Justiça.
Vários de suas estratégias, que consistiam sobretudo em utilizar os próprios mecanismos legais do regime de exceção para ajudar a salvar vidas nos porões da ditadura, são utilizadas até hoje por advogados criminalistas. Eles faziam, segundo o texto de apresentação assinado pelo presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, o que se pode chamar de “advocacia-arte”.
O relato daquele confronto brutal e desigual, porém, vai além do que estava explícito nos tribunais militares e relatos oficiais. Ao estimularem a memória dos advogados, oferecendo a eles a possibilidade de conduzirem seus depoimentos de acordo com o fluxo de suas lembranças, os entrevistadores também conseguiram montar um opulento painel dos bastidores daquelas disputas.
Estão retratados ali as histórias pessoais dos advogados; o dia a dia nos foros e auditorias militares; as relações com os juízes, delegados de polícia, guardas de presídio, burocratas do Judiciário; o drama de tratar com clientes que poderiam morrer sob tortura a qualquer momento; o jogo de influências políticas; as ligações com organizações internacionais de direitos humanos; a tragédia diária de conviver com famílias em busca de parentes desaparecidos.
Sobre essa última questão, destaca-se uma história contada pela advogada Eny Raimundo Moreira, muito ativa naquele período e, por isso mesmo, considerada inimiga do regime. Presa duas vezes, é autora de um dos relatos de maior sensibilidade do grosso volume.
Ela foi advogada da família de Ísis Dias de Oliveira, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) que vivia clandestinamente no Rio até ser capturada, no dia 30 de janeiro de 1972, por agentes do DOI-CODI do 1.º Exército, no Rio. Ela tinha 30 anos e nunca mais foi vista.
Ísis era a única filha mulher de seu Edmundo e dona Felícia, casal de classe média que vivia em São Paulo e tinha mais dois filhos homens. Assim que souberam da prisão, eles viajaram para o Rio, direto para o escritório de advocacia do doutor Sobral Pinto. Era um dos endereços mais conhecidos de perseguidos políticos na época, no qual Eny havia começado a trabalhar em 1966, como estagiária.
Designada para acompanhar o caso de Ísis, sua primeira providência foi despachar cinco pedidos de habeas corpus para várias partes do País. Aquele instrumento jurídico, presente nas constituições de todas as democracias, estava suspenso no Brasil, mas Eny e outros advogados que acudiam presos políticos, continuavam a utilizá-lo. Era uma forma de marcar posição: o documento servia para dizer às autoridades que os advogados e familiares sabiam que a pessoa havia sido presa.
Em sua entrevista, a advogada lembra que os pais de Ísis dedicaram o resto de suas vidas a procurar informações sobre o paradeiro dela. Seu Edmundo teve dois infartos seguidos no período. Dona Felícia largou tudo para se dedicar exclusivamente às buscas. Passava a semana no Rio, correndo atrás de qualquer fiapo de informação que obtinha, só retornando nos finais de semana à sua casa, em São Paulo. Escrevia seguidas cartas endereçadas a políticos e autoridades do regime,visitava todos os lugares onde sabia existirem presos políticos, além de hospitais e cemitérios. Foi a treze cemitérios do Estado do Rio verificar listas de pessoas enterradas.
Os agentes da repressão, segundo a advogada, aumentavam a dor dessas famílias com boatos e pistas falsas sobre os desaparecidos. No caso de Ísis, fizeram chegar aos ouvidos de dona Felícia que a filha havia sido vista em Londres. Ela conseguiu mobilizar recursos, embora a família quase não tivesse posses, e viajou para lá. Não encontrou nada.
Dona Felícia também foi procurada por uma pessoa que lhe prometeu, em troca de 5 mil dólares, dizer se Ísis ainda estava viva ou morta. Dessa vez, a advogada impediu que a mãe mobilizasse mais dinheiro, dizendo a ela: “Não entra nessa, isso é sórdido demais.”
Tanto o pai quanto a mãe morreram sem sequer obter a confirmação da morte da filha.
A advogada também conta que soube, desde o segundo pedido de habeas corpus, que a militante da ALN havia sido morta. Mas nunca disse nada à família.
“Não cabia a nós dizer. Não era nosso papel. Ô situação aflita”, disse aos entrevistadores da FGV.
Além do livro, a atuação dos advogados na ditadura está sendo lembrada agora pelo filme Os Advogados contra a Ditadura: Por uma questão de Justiça, dirigido por Silvio Tendler. Lançado na semana passada, o documentário também apresenta relatos daqueles profissionais que atuaram na defesa de presos políticos.
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Ditadura enganou mãe que procurava filha desaparecida, conta advogada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU