10 Março 2014
A existência de um governo exclusivamente masculino é percebida sobretudo como uma ocasião de distância, de diferença irreconciliável com a sociedade laica. Mas, se a questão é teológica, isso significa que, no cerne do problema, está algo mais profundo e importante que toca a natureza espiritual da Igreja.
A opinião é da historiadora italiana Lucetta Scaraffia, membro do Comitê Italiano de Bioética e professora da Universidade La Sapienza de Roma. O artigo foi publicado no jornal L'Osservatore Romano, 07-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Há uma sensação generalizada de expectativa no que se refere às mudanças que poderão envolver as mulheres dentro da Igreja. O Papa Francisco voltou a falar a respeito novamente na entrevista com o diretor do Corriere della Sera, Ferruccio de Bortoli, revelando como ele mesmo está colaborando com leituras e reflexões com aquele aprofundamento teológico que ele desejou há alguns meses. E análises e propostas circunstanciadas foram apresentadas pelo cardeal Kasper.
Há, portanto, um canteiro de obras em aberto, um canteiro do qual o papa indica cada vez mais claramente as características. Começar a abordar a situação a partir do ponto de vista teológico, de fato, significa se mover em uma direção distante daquela desejada por quem pensa simplesmente que a Igreja deve se adequar ao mundo, introduzindo mulheres em todos os níveis de poder e de decisão.
Certamente, a existência de um governo exclusivamente masculino hoje é percebida sobretudo como uma ocasião de distância, de diferença irreconciliável com a sociedade laica. Mas, se a questão é teológica, isso significa que, no cerne do problema, não está a "modernização", mas sim algo mais profundo e importante que toca a natureza espiritual da Igreja.
Isto é, trata-se de algo que envolve um enriquecimento da identidade dessa instituição bimilenar, uma reflexão nova sobre o papel que as mulheres exerceram tanto dentro da tradição bíblica quanto na vida da Igreja: um percurso que, ao mesmo tempo, é de descoberta e de reconhecimento.
Por sua vez, esse reconhecimento contribui não só para definir o papel que, no futuro, as mulheres poderão e irão desempenhar, mas sobretudo para desenhar os traços espirituais e teológicos de uma tradição cristã aberta ao feminino. Tudo isso vai enriquecer a mensagem da Igreja, porque assim poderá ressoar na completude reencontrada do masculino e do feminino que se integram e se potencializam, já que representam a inteireza da natureza humana como Deus a criou.
A partir desse ponto de vista, paradoxalmente, é muito positivo que a Igreja tenha permanecido até agora alheia a alguns aspectos do processo de emancipação das mulheres que envolveu, no último século, o mundo laico: desse modo, permaneceu como a única guardiã daqueles valores femininos – em primeiro lugar, a maternidade – que o tipo de emancipação que se afirmou historicamente está tentando anular. E, portanto, pode repropô-los vivos e intactos, e fazer com que se reconheça a sua riqueza e fertilidade, no plano espiritual e intelectual, aplicando-os em primeiro lugar no seu interior.
São inúmeras e significativas as figuras femininas que, no século passado, captaram e anteciparam essa transformação. Por exemplo, Chiara Lubich, que fundou a Obra de Maria para trazer novamente o amor materno, a acolhida feminina do focolare [lareira] no centro da missão cristã.
Ou Adrienne von Speyr, a mística inspiradora de muitas obras do grande teólogo Hans Urs von Balthasar, que, nas meditações sobre Maria, observa que "o laço físico-espiritual entre a mãe e a criança continua subsistindo como um eterno mistério entre eles. Ele a insere necessariamente na sua obra de redenção". Assim, Jesus "não se separará mais da sua escrava, que também é mãe e rainha, assim como o homem não pode se separar da mulher. Cristo é somente homem, não é mulher, mas mulher e homem formam, juntos, o gênero humano inteiro".
Antonella Lumini, eremita urbana florentina, autora de um importante livro sobre a "maternidade de Deus", assinala como, hoje, as mulheres, que estão no coração do amor, estão perdendo o materno, a capacidade de acolher e de amar. Mas essa tendência não é irreversível: a humanidade compreenderá, não poderá mais acreditar que se basta a si mesma. E a Igreja vai reencontrar o calor que atrai e ilumina, porque "só o amor misericordioso permite se aproximar do vazio que jaz no coração da humanidade".
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Mulheres na Igreja, um canteiro de obras. Artigo de Lucetta Scaraffia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU