12 Março 2014
No documento preparatório ao Sínodo, as formas de feminismo hostis à Igreja parecem uma verdadeira indicação de uma ideologia adversa, a ser combatida.
A opinião é da jornalista italiana Bia Sarasini, ex-diretora da revista feminista Noi Donne, em artigo publicado na revista Leggendaria, de janeiro de 2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A expressão "formas de feminismo hostis à Igreja" aparece no Documento Preparatório para a terceira assembleia geral extraordinária do Sínodo dos Bispos, que irá ocorrer em 2014 [1]. Trata-se de um questionário de 38 perguntas enviado pelo Vaticano a todos os bispos no início de novembro de 2013, aberto por uma premissa que elenca "as numerosas novas situações que exigem a atenção e o compromisso pastoral da Igreja", em que as formas de feminismo hostis à Igreja parecem uma verdadeira indicação de uma ideologia adversa, a ser combatida.
Além disso, é nessa chave que o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Joseph Ratzinger , escreveu a respeito em 2004, na Carta aos bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo. Na época, foi um texto que causou frisson.
Pela primeira vez, depois da atenção dirigida pelo Papa Wojtyla ao "gênio feminino" (Mulieris dignitatem, 1987, e Carta às Mulheres, 1995), um teólogo "oficial" como Ratzinger se voltava à "questão feminina", com o objetivo de identificar erros e problemas: "a Igreja sente-se hoje interpelada por algumas correntes de pensamento, cujas teses muitas vezes não coincidem com as finalidades genuínas da promoção da mulher".
Há duas tendências, escreve o cardeal Ratzinger: a primeira "sublinha fortemente a condição de subordinação da mulher, com o objetivo de suscitar uma atitude de contestação. A mulher, para ser ela mesma, constitui-se como antagonista do homem. Aos abusos de poder, ela responde com uma estratégia de busca do poder. Esse processo leva a uma rivalidade entre os sexos, em que a identidade e o papel de um são assumidos em prejuízo do outro, com a consequência de introduzir na antropologia uma confusão deletéria, que tem o seu revés mais imediato e nefasto na estrutura da família". E aqui se pode reconhecer o chamado feminismo paritário.
A segunda tendência, ao invés, defende Ratzinger, "emerge no rastro da primeira. Para evitar toda supremacia de um ou de outro sexo, tende-se a eliminar as suas diferenças, consideradas como simples efeitos de um condicionamento histórico-cultural. Nesse nivelamento, a diferença corpórea, chamada sexo, é minimizada, enquanto que a dimensão estritamente cultural, chamada gênero, é sublinhada ao máximo e considerada primária. O obscurecimento da diferença ou dualidade dos sexos produz enormes consequências em diversos níveis", que, embora enraizados na "questão feminina", são identificados na "tentativa da pessoa humana de se libertar dos próprios condicionamentos biológicos". E aqui a alusão evidente é ao gender e as teorizações de Judith Butler, então ainda pouco conhecida na Itália.
A Carta continua, depois, com a reconstrução da antropologia bíblica da "diferença" entre os sexos, vista como "realidade profundamente inscrita no homem e na mulher: a sexualidade caracteriza o homem e a mulher, não apenas no plano físico, mas também no psicológico e espiritual, marcando todas as suas expressões. Ela não se pode ser reduzida a puro e insignificante dado biológico, mas é uma componente fundamental da personalidade, um modo de ser seu, de se manifestar, de comunicar com os outros, de sentir, de exprimir e de viver o amor humano".
A Carta provocou um grande debate nos feminismos italianos (uma seleção de notícias exauriente encontra-se no site das teólogas italianas), aqui lembramos apenas o início do artigo de Ida Dominijanni, no jornal Il Manifesto (03-08-2004): "Apenas para começar: a dupla Ratzinger-Wojtyla bate todos os nossos líderes, além dos nossos intelectuais de esquerda, moderada e radical, de dez a zero. A Igreja reconhece o 'problema' da relação entre os sexos".
E a conclusão afiada: "No documento, é reveladora como uma prova de fogo, de fato, a identificação da 'gender theory' como segundo fronte adverso dentro do feminismo. Aqui, o documento – por mais motivos de desconfiança que possa haver contra certos desvios pós-modernos de desmaterialização da sexualidade – cai ao menos por duas razões. Uma é teórica, porque não é contra as teorias de gênero (muitas das quais, na verdade, coincidem com a 'primeira tendência' do feminismo reivindicativo) que Ratzinger combate, mas sim com a teoria do gender trouble de Judith Butler (evocada, mas não citada explicitamente), ou seja, com a teoria que contesta a identidade compacta do gênero feminino para abrir – não diferentemente do que o feminismo italiano faz com a diferença sexual – à subjetividade feminina todo o campo possível de escolhas sexuais, sociais, políticas, discursivas, de pensamento. Para abrir, em suma, à diferença feminina a possibilidade de se dizer em primeira pessoa, sem que ninguém, nem a ordem falocrática nem a Igreja, decidam uma definição objetiva sua. Sobre isso, Ratzinger e Wojtyla não estão nem aí: eles veem apenas o seu resultado sexual 'perverso' – as famílias "irregulares" gays e lésbicas – que a Igreja não pode tolerar, nem na América do Norte nem aqui. Por mais que seja aceita, é sempre objetivada e amarrada no 'matrimônio' tradicional que a diferença entre os sexos deve permanecer".
Ideias que inspiraram a pregação do Pontífice Emérito Bento XVI, basta lembrar as palavras explícitas e pesadas como pedras usadas na Audiência à Cúria Romana Cúria Romana para os cumprimentos natalícios de 2012, pouco mais de um ano atrás: "Se até agora tínhamos visto como causa da crise da família um mal-entendido acerca da essência da liberdade humana, agora se torna claro que aqui está em jogo a visão do próprio ser, do que significa realmente ser homem. Ele [o Grão-Rabino da França, Gilles Bernheim] cita a afirmação, que ficou famosa, de Simone de Beauvoir: 'Não se nasce mulher; torna-se – On ne naît pas femme, on le devient'. Nessas palavras, dá-se o fundamento daquilo que hoje, sob o lema 'gender', é apresentado como nova filosofia da sexualidade. O sexo, segundo tal filosofia, não é mais um dado originário da natureza que o homem deve aceitar e preencher pessoalmente de sentido, mas sim um papel social do qual se decide autonomamente, enquanto até agora era a sociedade que o decidia. A profunda erroneidade dessa teoria e da revolução antropológica que lhe está subjacente é evidente. O homem contesta que tem uma natureza pré-constituída pela sua corporeidade, que caracteriza o ser humano. Nega a própria natureza e decide que esta não lhe é dada como fato pré-constituído, mas que é ele próprio quem a cria".
Agora, a questão é esta. O futuro Sínodo vai assumir esse ponto de vista?
Nota:
1. As versões em italiano e em espanhol disponíveis no sítio do Vaticano falam em "formas de feminismo hostil", dando a entender que o próprio feminismo é hostil (no singular). Já a versão em português (assim como a inglesa e a francesa) fala em "formas de feminismo hostis", sutileza que indica que há formas hostis (no plural) de feminismo e, portanto, formas também não hostis. Mantivemos a versão em português como consta no sítio do Vaticano ("hostis", no plural), deixando ao leitor a interpretação final (n.d.t.).
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O feminismo hostil à Igreja. Artigo de Bia Sarasini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU