12 Fevereiro 2014
"Na realidade, do ponto de vista religioso, o dinheiro transitava entre o vício e a virtude. O empréstimo a juro, que a Igreja chama de usura, é o exemplo clássico do vício.", escreve Oscar Pilagallo, jornalista e autor de "A Aventura do Dinheiro" (Publifolha) e "História da Imprensa Paulista" (Três Estrelas), em artigo publicado pelo jornal Valor, 11-02-2014.
Eis o artigo.
Depois de desempenhar importante papel durante o Império Romano, o dinheiro entrou em declínio na Idade Média. A partir do século IV, a circulação de moedas regrediu na Europa, onde a cunhagem se tornou descentralizada e esparsa.
É sobre a identificação dessa guinada histórica que Jacques Le Goff constrói a narrativa de "A Idade Média e o Dinheiro", com ênfase na retomada da monetização da sociedade a partir do século XIII.
Aos 90 anos, Le Goff desfruta da justificada fama de ser um dos historiadores que mudaram a percepção contemporânea da era medieval. Escrevendo para seus pares e para leigos, o francês reverteu a imagem negativa do período, livrando-a dos preconceitos surgidos a partir do Renascimento.
Com relação ao dinheiro, no entanto, sua contribuição é mais modesta. Embora seja informativo, erudito e de leitura agradável, o ensaio, em sua tese central, não chega a ser original. A visão de que a moeda foi personagem secundária na época medieval há muito tempo é predominante na literatura econômica.
Como quase tudo na Idade Média, também o papel do dinheiro foi influenciado pela Igreja. A opinião religiosa, lembra Le Goff, é informada pela própria Bíblia, sobretudo o Novo Testamento. Mateus resume a disposição hostil ao dinheiro ao afirmar: "Não se pode servir a Deus e a Mamon", uma referência à riqueza iníqua, particularmente sob a forma monetária.
O fato de a Igreja condenar o amor ao dinheiro não significava que a instituição fosse pobre. Muito ao contrário. Ao cobrar o dízimo dos fiéis e explorar seus bens, a Igreja canalizava boa parte dos recursos disponíveis para seus mosteiros. Lá, a riqueza permanecia entesourada na forma de objetos de ouro e prata, até a necessidade fazer com que fossem fundidos e transformados em moeda.
Na realidade, do ponto de vista religioso, o dinheiro transitava entre o vício e a virtude. O empréstimo a juro, que a Igreja chama de usura, é o exemplo clássico do vício. Apesar de emperrar a circulação do dinheiro, o repúdio ao empréstimo tinha uma brecha, pois operações entre cristãos e judeus eram permitidas.
A propósito, Le Goff comenta que esse espaço, inicialmente ocupado por judeus, foi logo dominado por cristãos. Assim, "a imagem do judeu como homem de dinheiro nasce menos da realidade dos fatos, apesar da existência de emprestadores judeus com pequenos prazos e grandes juros, do que de uma fantasia que prenuncia o antissemitismo do século XIX".
Quanto à virtude do dinheiro, ela só passaria a ser reconhecida, aos poucos, no final da Idade Média. Le Goff cita como evidência o exemplo de um monge francês que, no século XII, comparava a hóstia à moeda, sem que isso soasse herético. "Seu formato circular lembrava o formato de uma moeda, como a capacidade da hóstia de equivaler à salvação correspondia à capacidade da moeda de representar um valor."
O historiador propõe uma periodização útil para a compreensão da importância da moeda na Idade Média. No primeiro período, entre os séculos IV e XII, a moeda tem pouca relevância e a distinção social se dá entre poderosos e fracos. No segundo, entre os séculos XIII e XV, o dinheiro começa a reaparecer e surgem os ricos e os pobres.
O livro se concentra no segundo período, que coincide com a expansão do comércio e a construção do Estado, nessa fase ainda não desligado do modelo feudal. O dinheiro, diz Le Goff, assume importância especial para o Estado a partir do século XIII, devido às exigências do fisco. "O Estado que se desenvolve mais cedo nesse contexto, o mais dominador e o mais bem irrigado em dinheiro é o da Igreja, ou seja, a Santa Sé."
Na fronteira dos dois períodos, o historiador destaca a figura de São Francisco de Assis (1181-1226), que, renegando o pai comerciante, se afirmou pela recusa ao dinheiro, fundando a ordem mendicante dos franciscanos num momento em que crescia a pobreza nas cidades.
Le Goff usa o santo para se posicionar num debate sobre as origens do capitalismo. Registra que historiadores contemporâneos, como o italiano Paolo Prodi (que teve o livro "Uma História da Justiça" traduzido para o português), consideram que os franciscanos desenvolveram, de maneira paradoxal, uma concepção do dinheiro que inspirou a sociedade de mercado.
O francês admite que os franciscanos tenham fundado estabelecimentos de crédito para conceder um mínimo de dinheiro para a sobrevivência dos mais pobres. Admite também que os frades desenvolveram práticas contábeis inovadoras.
Tudo isso, no entanto, não indicaria um estágio pré-capitalista, como defendem alguns autores. Le Goff fica com Max Weber, que considera a prática da pobreza voluntária uma "economia de salvação" ou, como ele mesmo diz, "uma economia de doação". Na Idade Média, afirma o autor, "a economia está sempre incorporada à atividade de uma humanidade dominada e totalmente animada pela religião". Para ele, o erro dos historiadores é raciocinar "em função de um virtual pensamento econômico dos franciscanos".
Le Goff concorda com Weber e Karl Marx em que o capitalismo só se impôs a partir do século XVI. Marx identificava um modo progressivo de produção capitalista a partir do século XII. Weber apontou a influência do protestantismo no desenvolvimento do capitalismo. Os dois estão de acordo, porém, em "deixar a Idade Média fora do capitalismo".
A questão é polêmica. Para o historiador americano Immanuel Wallerstein, o nascimento do capitalismo data de 1450, quando a Europa se conecta como unidade orgânica naquilo que Fernand Braudel chamava de economia-mundo.
Ao contestar Wallerstein, Le Goff argumenta que os três elementos constitutivos do capitalismo não existiam na Europa medieval. São eles: a disponibilidade de metais preciosos para a fabricação de moedas, a formação de um mercado único que substituísse a fragmentação das feiras, e a criação de uma Bolsa, como a que surgiu em 1609, em Amsterdã.
Para o historiador, o dinheiro na sociedade ocidental só tem especificidade a partir do século XVIII. Antes disso, pertencia ao "labirinto das relações sociais".
Se a "A Idade Média e o Dinheiro" é menos surpreendente que vários livros anteriores do autor, a culpa não é dele. Isso se deve ao fato de, em relação a esse assunto, Le Goff não ter precisado corrigir distorções da historiografia.
A obra vale por si, mas talvez seja mais interessante como leitura complementar a seus ensaios mais abrangentes, como "Em Busca da Idade Média", "Apogeu da Cidade Medieval" e "Os Intelectuais na Idade Média", para citar três livros de uma produção prolífica de mais de meio século.
O leitor notará um viés francês que não corresponde totalmente à maior importância da França na história medieval da moeda, mas nada que diminua o trabalho de Le Goff.
O autor continua afiado na arte de combinar histórias das mentalidades, polêmicas bem informadas, detalhes do cotidiano e explicações de estruturas numa narrativa bem amarrada.
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O dinheiro, no labirinto das relações sociais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU