20 Janeiro 2014
Genebra foi o cenário para uma verdadeira cena de cinema na terça-feira (14-01-2014), já que dois pesos-pesados do Vaticano sentaram diante do painel de especialistas independentes que compõem o Comitê das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança para responder a perguntas difíceis sobre os escândalos de abusos sexuais que sacudiram a Igreja Católica por mais de uma década.
A Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança foi adotada em 1989, e seu comitê tem mantido audiências regulares desde 1991 para monitorar a implementação em 193 países que a ratificaram. Nesse sentido, não houve nada de excepcional na sessão de terça-feira, uma vez que a Santa Sé é apenas mais uma entre as nações signatárias. No entanto, o fato de que esta foi a primeira vez em que seus funcionários de alto escalão apareceram em público (a sessão foi transmitida para o mundo todo) para falar sobre os escândalos de abuso sexuais, num ambiente em que eles não podiam dar o tom ou ter o controle da conversa, fez com que se tornasse algo inegavelmente fascinante.
Indo então para o evento propriamente dito: qualquer um que esteja familiarizado com a história do Vaticano e seus comentários relativos à crise advinda dos casos de abusos sexuais deve estar se segurando na cadeira. Na pior das hipóteses, a terça-feira pareceu demonstrar que as autoridades aprenderam alguma coisa.
Roma enviou duas figuras um tanto apropriadas para se envolver na crítica: o arcebispo italiano Silvano Tomasi, um diplomada de carreira que representa o Vaticano na ONU, em Genebra, e o bispo auxiliar maltês Charles Scicluna, ex-promotor do Vaticano sobre os casos de abuso e que é largamente conhecido como um líder para as reformas. (Foi Dom Scicluna que falou a frase do dia ao insistir que o Vaticano agora “sacou qual é” (no original inglês "gets it").
Ambas as autoridades provaram ser imperturbáveis diante de perguntas bastante agressivas, algumas das quais sobre escândalos específicos – tais como os casos notórios das “lavanderias de Madalena”, na Irlanda, ou as recentes revelações na Espanha de que aproximadamente 300 mil crianças possam ter sido furtivamente removidas de suas famílias e vendidas para adoção via centros administrados pela Igreja – e sobre assuntos gerais de política, tais como a disposição das autoridades eclesiásticas em cooperar com as investigações criminais e sobre o tipo de treinamento antiabuso oferecido tanto para os funcionários da Igreja quanto para as crianças que frequentam locais católicos.
Dom Scicluna insistiu repetidamente que a Igreja agora reconhece um “princípio não negociável” de uma preocupação primordial para com o bem-estar das crianças, invocando-o, entre outros coisas, para afirmar que as autoridades eclesiásticas devem cooperar plenamente com as investigações de abuso por observância das leis civis.
“Nenhum interesse deverá obstruir o funcionamento das leis do país” onde um ato de abuso ocorrer, disse Dom Scicluna, “quem quer que seja, ou qualquer que seja, a instituição envolvida”.
(Como pessoa experiente em Roma, Dom Scicluna está bem ciente de que muitos prelados católicos têm usado o termo “não negociável” para caracterizar as posições da Igreja sobre questões tais como o aborto e o casamento homoafetivo, de forma que, falando assim contra a questão do abuso sexual, ele quis também dizer que não estava apenas falando para o painel da ONU, mas também falando a seus colegas bispos.)
Nesse sentido, Dom Tomasi definiu os escândalos de abuso como “uma ferida que machucou a comunidade de fé” e disse que a Igreja, hoje, vê não somente um “comprometimento legal” como também “humano, moral e espiritual em defender os princípios da Convenção que protege as crianças”.
Em seu discurso escrito, Dom Tomasi afirmou que a Igreja quer ser um “exemplo da melhor prática” na proteção das crianças.
O painel da ONU não tem poder algum para obrigar os países a fazer coisa alguma, porém espera-se que seus especialistas deem recomendações ao Vaticano a partir da audiência. Ao julgar pelo tom das conversas de terça-feira, eles provavelmente irão apresentar admiração pelo forte compromisso de reforma expresso por Dom Tomasi e Dom Scicluna, pincelada com ceticismo a respeito de quão consistente este compromisso se aplica a casos específicos.
Embora os críticos da Igreja emitiram comunicados considerando a apresentação do Vaticano como desapontadora, especialistas pareceram estar ansiosos em crer que algo mudou.
Sara de Jesus Oviedo Fierro, da Espanha, disse que agora o comitê tem “grandes expectativas de que novos passos irão ser tomados, de que o diálogo com a sociedade civil irá acontecer, e de [que] isso irá se tornar realidade. Este momento atestará uma nova era, um novo amanhecer para a Santa Sé”.
Eis a seguir as três principais conclusões tiradas da audiência de terça-feira na ONU.
Em primeiro lugar, Dom Tomasi confirmou que o arcebispo polonês Jozef Wesolowski, o ex-embaixador papal para a República Dominicana afastado em agosto do cargo e que está enfrentando acusações de abuso sexual de crianças, irá ser processado pelo tribunal criminal do Vaticano “com a severidade que o caso merece”. (Na verdade, Dom Tomasi usou a palavra “julgado”, termo inadequado, já que uma investigação preliminar ainda está sendo feita e tecnicamente Dom Wesolowski não foi ainda acusado de crime.)
Do ponto de vista do Vaticano, Dom Jozef Wesolowski é um cidadão da Santa Sé e um ex-agente papal, de forma que ele não está sujeito apenas a penalidades eclesiásticas que se aplicam a todos os sacerdotes sob a lei canônica, mas também ao código criminal do Vaticano como um estado soberano.
Supondo que um julgamento vá em frente, certamente será a sessão mais assistida de um tribunal vaticano desde o processo, de outubro de 2012, envolvendo Paolo Gabriele, o mordomo papal acusado de ser o principal envolvido no vazamento de documentos do Vaticano. Desde o momento em que a Santa Sé vem repetidamente prometendo uma nova cultura de transparência quanto aos escândalos sexuais, este caso provavelmente enfrentará pressão considerável para tornar qualquer procedimento no caso de Dom Jozef Wesolowski tão público quanto possível.
Em segundo lugar, o efeito colateral mais imediato contra a apresentação de terça-feira feita por Dom Tomasi e Dom Scicluna esteve focado na afirmação de que Roma não é responsável por supervisionar mais de 400 mil padres ao redor do mundo, responsabilidade que recai para os bispos locais e para os superiores gerais. Repetidamente, os dois religiosos fizeram afirmações de princípio a respeito de como a Igreja deve operar, mas foram então forçados a concordar com o fato de que a implementação varia amplamente nas bases.
Críticos encontraram falta de sinceridade na afirmação de que o Vaticano não tem controle direto da situação.
“Ficamos muito tristes que uma burocracia tão enorme e poderosa quanto a da Igreja continua a fingir a sua falta de poder sobre as suas próprias autoridades”, disse em um comunicado publicado pela Rede de Sobreviventes de Abusados por Padres.
Honestamente, insistir na autonomia das Igrejas locais está perfeitamente consistente tanto com a eclesiologia católica oficial quanto com a prática que ocorre na instituição. Vale a pena notar que um juiz federal, no estado do Oregon, e que é mórmon não tendo nada a ver com as questões católicas, olhou atentamente para a afirmação de que os padres são “empregados” do Vaticano em uma ação judicial relacionada aos escândalos de abusos sexuais em 2012 e determinou que este, claramente, não é o caso.
Não obstante, o ceticismo de tais afirmações feitas na terça-feira ilustra a subida íngreme que o Vaticano enfrenta ao tentar persuadir as pessoas de que não poderia impor sua vontade se assim o quisesse.
Na verdade, este tem sido um dos paradoxos gerados pela bagunça dos abusos sexuais. Durante décadas, os reformistas (especialmente os liberais) clamaram por uma maior colegialidade no catolicismo, e aplaudiram vigorosamente quando o Papa Francisco prometeu apoio para uma “descentralização saudável” em sua recente exortação apostólica “Evangelii Gaudium”. No entanto, quando se trata de abuso sexual, eles parecem querer exatamente o oposto: querem a ajuda de Roma e querem, ao mesmo tempo, autonomia.
Talvez o que isso dê a entender é que os teólogos trabalhando na natureza e nos limites da autoridade papal e a relação entre as Igrejas locais e Roma precisam sentar junto das pessoas que protegem as crianças para garantir que a experiência do mundo real dos escândalos de abuso sexual esteja presente nos diálogos.
A verdade disso poderá ser que um papa forte é um pouco parecido com um advogado: todo mundo gosta de reclamar, até precisar de um.
Em terceiro lugar, a crise dos abusos sexuais é onde duas poderosas narrativas sobre o catolicismo colidem. Uma é a de que a Igreja é uma instituição secreta devotada, sobretudo, a proteger seus próprios interesses, de forma que estas afirmações todas são vistas através de pontos de vistas suspeitos; a outra é a de que Francisco é um papa reformador genuinamente comprometido com os pobres e com os vulneráveis, e as pessoas parecem realmente acreditar que ele irá fazer a coisa certa.
Em termos do que poderia importar à maioria das pessoas como prova de que o Papa Francisco está comprometido em fazer a diferença, posso dizer que um passo seria publicamente disciplinar um bispo que falou na política da “tolerância zero”.
Quando o papa afastou o assim chamado “bispo da ostentação”, na Alemanha, por gastar 42 milhões de dólares para remodelar sua residência, constituiu um claro sinal de que Francisco fala sério sobre sua opinião de uma Igreja dos pobres para os pobres. Um movimento semelhante com um bispo que falhou em cumprir com as novas diretrizes antiabuso da Igreja poderá ter um impacto similar sobre as percepções.
No fundo, as autoridades vaticanas dizem que descobrir como processar estes casos de “supervisão negligente” está no alto de suas listas das coisas que precisam ser feitas, e que é também potencialmente assunto para a nova comissão papal – envolvida na proteção dos menores anunciada pelo cardeal Sean O’Malley, em dezembro – examinar.
Se procurarmos por algo que pudesse ajudar a segunda narrativa (a do “Francisco, o reformador”) a prevalecer sobre a primeira (que remonta “sempre às mesmas orientações da Igreja”), ele bem que poderia ser o Papa chamando à responsabilidade um bispo negligente.
* * *
Também na terça-feira, um velho amigo do Papa Francisco veio visitá-lo em Roma. O rabino Abraham Skorka, de Buenos Aires, encabeçou uma delegação de líderes judeus argentinos numa audiência com o papa, junto do qual escreveu um livro em 2010 intitulado “Sobre o céu e a terra”, quando Francisco ainda era o cardeal Jorge Mario Bergoglio.
Skorka disse que, embora a delegação trazia assuntos importantes para serem discutidos, eles também passaram o tempo fazendo brincadeiras e batendo papo, e mesmo cantando alguns versos festivos dos salmos juntos. Em um gesto de hospitalidade, o papa levou o grupo para um almoço em sua residência, a Casa Santa Marta.
O rabino Skorka deu uma palestra pública sobre as relações entre judeus e católicos na terça-feira à noite em um auditório da Universidade Gregoriana de Roma, administrada pelos jesuítas.
Ele esteve acompanhado pelo cardeal suíço Kurt Koch, que administra o escritório do Vaticano que lida com o ecumenismo e com as relações com os judeus.
Skorka e Koch também participaram de uma breve conferência de imprensa logo após a palestra.
Aqui apresento três rápidas impressões a partir do evento.
Em primeiro lugar, durante os anos do Papa Bento XVI, parecia que a deriva na política católica sobre as relações com as outras religiões estava distante do diálogo especificamente teológico e indo na direção daquilo que Bento XVI chamou de diálogo “intercultural”, com o que enfatizou valores partilhados em assuntos sociais, morais e mesmo políticos.
A ideia era a de que a teologia tende a estar onde os seguidores de diferentes religiões estão destinados a discordar, ao passo que um foco sobre questões culturais e morais põe a ênfase naquilo que eles têm de comum.
Tanto o rabino Skorka quanto Dom Koch disseram, na terça-feira à noite, acreditar que o futuro das relações judaico-católicas reside precisamente na arena teológica. Skorka disse ter conversado com o Papa Francisco no final de setembro e que “o que ele quis transmitir a mim é a importância de novos passos teológicos”.
“Precisamos de uma explicação teológica do que um judeu é para um católico, e do que um católico é para um judeu”, afirmou o rabino.
Dom Koch praticamente disse a mesma coisa na conferência de imprensa.
“O próximo passo tem que ser um aprofundamento de nossa teologia”, disse o líder católico. “Precisamos de um teologia cristã do judaísmo e de uma teologia judaica do cristianismo”.
“Estou convencido de que o Papa Francisco quer ir nesse direção”, Koch acrescentou.
Ao menos em relação ao judaísmo, parece que os rumores da morte da teologia como o coração do diálogo inter-religioso foram grandemente exagerados.
Em segundo lugar, o foco da palestra do rabino foi a experiência latino-americana das relações entre judeus e católicos. (De alguma forma, a Argentina é singular na América Latina onde há uma comunidade judaica considerável, estimada em cerca de 250 mil.)
No decorrer de sua fala, Skorka fez uma fascinante observação sem, na verdade, desenvolvê-la: enquanto que as trocas entre judeus e católicos, no Ocidente, muitas vezes giravam em torno do passado (história do antissemitismo, o holocausto e assim por em diante), o foco na América Latina gira mais em torno do presente.
O rabino Skorka observou que um encontro de 2004 do Comitê Internacional de Relações Católico-Judaicas (International Jewish Catholic Liaison Committee), um dos passos primários para o diálogo em nível global, ocorreu em Buenos Aires. Depois, afirmou, ele, o cardeal alemão Walter Kasper, que ocupava o cargo de Dom Koch à época, disse que esta tinha sido o “primeiro encontro não focado em assuntos do passado, mas sim na forma como somar forças para enfrentar as dramáticas necessidades do presente e do futuro”.
Em parte, sugeriu Skorka, este foco refletiu o clima na Argentina criado pela crise econômica que eclodiu no final da década de 1990, a qual causou desemprego generalizado, tumultos e a queda do governo, deixando a população do país e 70% de suas crianças na pobreza.
“A crise criou uma situação na qual as instituições religiosas foram chamadas a trabalhar juntas numa forma muito profunda”, disse Skorka. “Havia muito trabalho coordenado para ajudar as pessoas em extrema necessidade”.
“Algo interessante aconteceu” no meio da crise econômica, disse.
“A sociedade começou a se perguntar em quem realmente podemos confiar, e as instituições religiosas vieram à tona”, falou o rabino, acrescentando que a situação levou líderes religiosos a desenvolverem uma forma “tremendamente pragmática” de diálogo.
Em outras palavras, aos que se perguntam se as relações católico-judaicas poderão, algum dia, fugir dos fantasmas da história, talvez vozes dos países em desenvolvimento possam ter algo a contribuir.
Em terceiro lugar, perguntaram a Skorka sobre a visita que o Papa Francisco fará à Terra Santa em maio deste ano. Sua reação pareceu oferecer uma outra confirmação de quão altas as apostas serão.
“Esta é uma questão muito delicada”, disse. “Há muitas paixões e sentimentos em todos os lados. (...) As expectativas são muito altas, e o papa irá ter que responder a elas de alguma forma”.
Dadas as opiniões concorrentes na região entre “judeus, palestinos e cristãos”, Skorka disse, o Papa Francisco “precisará ser muito equilibrado” em sua abordagem.
Skorka disse que sua preocupação primária para a viagem é a de que ela não termine como uma “banalidade”, com o que ele pareceu querer dizer um exercício em dizer as coisas certas que não têm, de fato, qualquer impacto no mundo.
“Vai ser difícil, porém o que espero é que ele deixe uma mensagem de paz”, disse Skorka. "Especialmente em sus encontros com os líderes, espero que ele tenha impacto”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Cena de cinema em Genebra e o rabino do Papa para as relações judaico-católicas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU