13 Janeiro 2014
Recentemente o Papa Francisco tornou público um alerta contundente sobre o que chamou de “tráfico de noviços” dentro de ordens católicas, citando palavras dos bispos filipinos e deliberadamente usando um termo italiano que evoca memórias do comércio escravo. O comentário foi feito durante uma reunião com os Superiores Gerais das ordens religiosas católicas masculinas, em novembro de 2013. Extensos fragmentos desta sessão foram publicados no dia 2 de janeiro.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por National Catholic Reporter, 10-01-2014.
Eis um trecho relevante tal como capturadas pelo padre jesuíta Antonio Spadaro, editor da revista La Civiltà Cattolica, que estava presente entre os Superiores durante a sessão.
“Certamente o Papa Francisco está ciente dos riscos, mesmo em termos de ‘recrutamento vocacional’, feito pelas novas igrejas. Entre outras coisas, ele recordou que, em 1994, no contexto do Sínodo da Vida Consagrada e de sua Missão, bispos filipinos criticaram o ‘tráfico de noviços’, ou seja, a chegada massiva de congregações estrangeiras que inauguravam casas de formação no arquipélago com um olho visando o recrutamento de vocações para serem levadas à Europa. ‘Precisamos ficar de olhos abertos para situações como essa’”.
No contexto, a referência do papa parecia ser a situações nas quais religiosos e religiosas de países empobrecidos eram submetidos a várias formas de exploração, abuso, ou mesmo eram vistos, em grande parte, como uma fonte de trabalho manual para aliviar as congregações ocidentais.
No entanto, tais situações formam apenas uma pequena parcela de uma situação muito maior, que é a crescente migração de padres e religiosos na Igreja Católica do “Sul global” para o Norte global, apesar do fato de que, como um todo, a população católica esteja se deslocando precisamente na direção oposta. Hoje, dois terços dos 1.2 bilhão de católicos vivem no hemisfério sul, mas quase dois terços dos 412 mil sacerdotes estão na Europa e América do Norte.
Estes desequilíbrios parecem destinados a se expandir, dado a dependência cada vez maior, da Europa e da América do Norte, de padres do exterior. Aproximadamente um em cada 5 sacerdotes nos EUA, hoje, nasceu fora do país, a cerca de 300 novos padres estrangeiros chegam aqui a cada ano.
Para debater as promessas e os perigos deste “comércio” no clero, contatei Philip Jenkins, da Universidade de Baylor, um dos maiores especialistas do mundo a respeito do cristianismo global. Falamos por telefone na terça-feira (07-01-2014).
Aliás, quanto a esta questão em particular, há mais de uma década Jenkins alertou que o catolicismo parecia estar à deriva de uma política de desvio dos melhores e mais brilhantes padres de Igrejas dos países de terceiro mundo para tapar buracos na Europa e América do Norte, o que ele chamou de “suicídio potencial para os destinos católicos”.
Eis a entrevista.
Existe um tal “comércio de noviços”?
Sim, certamente. Isso está bem documentado e tende a ser um problema particularmente nas Filipinas, na Índia e em algumas partes da África, embora a maioria dos escândalos que vi centraram-se sobre os asiáticos. É uma consequência das mudanças demográficas presentes em muitas congregações. Estes noviços tendem a ser jovens e, em alguns casos, acabam basicamente realizando trabalhos domésticos, especialmente na Itália. No entanto, não tenho qualquer informações sobre a magnitude deste comércio.
Há uma diferença entre estas situações e o movimento do clero mais amplo do Sul para o Norte, porque com estes noviços, em alguns casos, estamos praticamente falando sobre uma operação de imigração ilegal dentro da Igreja.
Qual o grande problema presente aí?
Uma palavra de ordem da era Francisco é a relação entre a periferia e o centro. O pontífice vem dizendo que a Igreja deveria alcançar a periferia e abraçá-la. Esse comércio de noviços é um exemplo clássico do centro explorando a periferia, o que viola todos os princípios que ele vem colocando. Trata-se de a Igreja pôr em ordem a sua própria casa antes de poder sair a falar, com credibilidade, ao resto do mundo, especialmente sobre assuntos tais como imigração.
Além de situações de abuso, no passado você falou que mesmo o movimento voluntário do clero do Sul para o Norte é preocupante. Eis o que você escreveu em 2002: “Visto a partir de uma perspectiva global, tal política pode ser descrita, na melhor das hipóteses, como dolorosamente míope, e na pior como suicídio potencial para os destinos católicos”. Você ainda sustenta esta opinião?
Certamente, porque a diferença numérica entre o Norte e o Sul cresceu dramaticamente.
Em todo o mundo, uma das maiores razões para o declínio das congregações católicas é quando elas não têm acesso a números suficientes de sacerdotes, quer estejamos considerando padres ou religiosos, que fazem grande parte do trabalho fundamental, assumindo áreas como a da educação, por exemplo. É uma questão de ter recursos humanos disponíveis. Na Europa, estas faltas constituem, notoriamente, uma crise em curso.
Na América Latina, elas levam ao crescimento das congregações protestantes, que preenchem o vazio deixado. Até agora, isso não aconteceu nas Filipinas, onde a Igreja Católica foi inteligente ao adotar estratégias para evitar o aumento das congregações protestantes. Mas se continuarem perdendo padres e religiosos por estarem mandando-os à Europa e América do Norte, potencialmente enfraquecerão o que a que é, hoje, a mais forte Igreja local católica do mundo.
Devemos acrescentar que isso frequentemente acontece dentro das melhores intenções. Sei de casos com várias igrejas dos EUA, não apenas a católica, em que trouxeram sacerdotes muito talentosos da África porque queriam lhes dar oportunidades e ajudar em seu desenvolvimento pessoal. No entanto, por definição se os melhores sacerdotes destas igrejas são retirados de seus países de origem, isso inevitavelmente irá contribuir para um empalidecer.
Então não se trata de que estas pessoas estejam sendo forçadas a mudarem de região. Deveria a Igreja proibir os padres que querem trabalhar na Europa e na América do Norte de terem esta chance?
Sim, é isso mesmo. É inteiramente voluntário. Na realidade, trata-se de um paralelo muito próximo com aquilo que acontece com os especialistas e profissionais técnicos qualificados ao redor do mundo. O que frequentemente ocorre é que estas pessoas vêm para cá pensando em ficar por alguns anos, e então 20 anos depois elas dizem a si mesmas: “Talvez eu vou ficar por aqui mesmo”. É parte de um fenômeno secular mais amplo. Por exemplo, neste exato momento os israelenses estão preocupados com que muitos de seus melhores técnicos estejam sendo atraídos para os EUA. A Igreja dificilmente está sozinha no enfrentamento deste problema.
Eu não gostaria de ver um sistema em que as igrejas do Norte introduzissem fortes barreiras contra o trabalho imigrante. O que se precisa é um equilíbrio entre o uso razoável de pessoas que querem vir para estas regiões (América do Norte, Europa) contra o risco de empalidecer aquilo que há de melhor e mais brilhante das igrejas locais em outras partes do mundo.
Se você fosse um bispo católico americano hoje, qual seria sua política com os padres estrangeiros?
Creio que eu iria despender bastante tempo conversando com bispos e outros líderes dos lugares de onde estes padres estão vindo, o que aqui – nos Estados Unidos – significa Nigéria, perguntando o que eles acham que seja um compromisso razoável. Iria olhar para o que eles têm a dizer. Se eles têm pessoal de sobra e podem prescindir deles, e se nós podemos apresentar algum tipo de compensação, talvez este poderia ser um bom acordo.
Você menciona a possibilidade de um bispo ser capaz de “prescindir” de padres. Mas não seria o caso de que, sejam ou não tais padres necessários no local de origem, às vezes os bispos dos países em desenvolvimento os enviam para o exterior por causa que eles podem resultar em uma fonte de receita?
Sim, e muito. Hoje, quando se olha para qualquer denominação mundial, uma coisa que emerge aí, muito forçosamente, é o desequilíbrio massivo entre o Norte e o Sul em termos de dinheiro e meios. No hemisfério Sul, encontramos bispos cujo clero não recebe seu valor mensal há seis meses. Trata-se de um mundo completamente diferente.
Em geral, no cristianismo lidamos com um mundo de riquezas no Norte, e com riquezas de pessoas no Sul. É uma afirmação forte, porque o Norte e o Sul não estão divididos por uma grande muralha global. Mesmo assim, há muito de verdadeiro aí.
Para os bispos do Sul, o ideal seria mandar padres para o exterior por razões pastorais sensatas e não por desespero?
Sim, certamente. Não há respostas fáceis, e políticas rígidas em ambas as direções poderiam piorar a situação. Por exemplo, não precisamos de uma política que diga: “Não precisamos de africanos!”
Vendo do lado positivo, os padres estrangeiros ajudam a apresentar aos católicos da Europa e dos EUA as realidades presentes na Igreja global?
Certamente eles podem ajudar nisso. Em minha experiência, os paroquianos estão muito felizes e impressionados com estes padres. Por outro lado, há também um risco de uma nova divisão entre o clero e o laicato baseado em diferenças étnicas, linguísticas e culturais. Por exemplo, ouvi falar de casos em que um pastor nigeriano teria expectativas muito diversas de como uma paróquia deveria funcionar em relação à sua congregação americana.
Há mais uma coisa ainda sobre a qual deveríamos pensar, que é o impacto da crescente dependência do clero estrangeiro no recrutamento vocacional. Exemplo: estou imaginando um mundo no qual jovens católicos nos EUA pudessem pensar: “Não posso ser padre, pois não sou nigeriano”. Não podemos apenas ver essa questão a partir do ponto de vista da política vaticana ou dos bispos, mas também a partir da experiência das pessoas na base.
Nos países em desenvolvimento, às vezes os cristãos defendem o movimento do clero do Sul para o Norte baseados naquilo que é chamado de “missão reversa”. A ideia é que suas igrejas foram estabelecidas por missionários do Norte e que, agora, é a vez delas de retornar o favor, ajudando a reacender o fogo na Igreja nas seculares Europa e América do Norte. O que você pensa sobre isso?
Certamente há esse pensamento. Mas, por outro lado, eu não gostaria de ver a situação na qual uma “missão reversa” acabasse não muito fortalecendo a Igreja no Norte ao mesmo tempo em que enfraquecesse as igrejas do Sul. Um bom exemplo disso é a América Latina, onde a escassez extrema do clero é a principal razão para o crescimento do protestantismo. Ninguém jamais defendeu um modelo de missão baseado no fortalecimento das Igrejas-alvo à custa da Igreja de origem.
Tomemos como exemplo as Filipinas, região que tem uma Igreja Católica muito vibrante e forte. No entanto, os padrões demográficos ao estilo europeu estão começando a aparecer por lá também, com uma queda impressionante nas taxas de fecundidade. Neste momento, a taxa de fertilidade aí está um pouco acima do nível de reposição, e logo estará abaixo. Não estamos nesse nível ainda, mas a ideia de que teremos todos estes candidatos ao sacerdócio entre nós para sempre está mudando.
Muitas vezes, estas quedas estão associadas a uma onda de secularização. Portanto, mesmo as Filipinas não deveriam se ver infinitamente confiantes em sua capacidade de exportar pessoas valiosas sem se preocupar. De certa forma, o que está acontecendo aí faz paralelo com o que já ocorreu no Brasil, outro entre os maiores países católicos do mundo. O que isso ilustra é a importância de não enfraquecer estas Igrejas ao lhes retirar suas melhores lideranças.
* * *
Agora cinco breves observações sobre o Papa Francisco
Primeiro, o presidente francês François Hollande agendou uma conversa com o papa no Vaticano, marcada para o dia 24-01-2014. Isso vem sendo amplamente chamado como mais uma confirmação do “efeito Francisco”, já que o socialista Hollande fez quatro viagens a Roma desde que assumiu a presidência em maio de 2012, sem se preocupar em marcar uma sessão com o líder religioso.
Agora que as pesquisas mostram Hollande como o presidente francês menos popular da França na história moderna, a perspectiva de melhorar sua imagem com um pouco da glória refletida pelo Papa Francisco deve parecer muito atraente. Ao passo que o governo de Hollande e o de Francisco possam partilhar alguns pontos em comum quanto à política econômica e ao meio ambiente, Hollande também tem apoiado a legalização da eutanásia e do suicídio assistido, além dar apoio ao casamento homoafetivo perante a oposição dos bispos franceses.
Segundo, autoridades do Vaticano vêm dizendo, repetidamente, que seus esforços na questão da reforma financeira não pretendem apenas evitar escândalos em Roma, mas também dar exemplo a todo o mundo. A urgência deste exemplo pôde ser visto nesses últimos dias na “novela italiana” envolvendo o financista Paolo Oliverio, atualmente na prisão acusado de várias formas de corrupção.
Um dos esquemas, que veio à tona em novembro, envolvia prender dois padres camilianos de forma que não pudessem votar no Capítulo Geral da ordem, assegurando-se de que o Superior incumbente, Pe. Renato Salvatore, fosse reeleito. Supostamente, Salvatore era um dos que estava por trás do esquema, permitindo a Oliverio usar contas controladas pela ordem para movimentar dinheiro de forma que disfarçasse sua origem.
Nesta semana investigadores revelaram que Salvatore tinha, aparentemente, um conjunto de arquivos secretos em sua posse dado a ele por Oliverio, incluindo materiais supostamente concernentes à infame rede maçônica italiana P3, e que ao menos 13 milhões de dólares haviam desaparecido do hospital administrado pelos camilianos, sob a direção de Oliverio, no sul da Itália.
Terceiro, o debate italiano sobre uniões civis aflorou após o novo líder do Partido Democrata, de centro-esquerda, ter expressado seu apoio. Agora que a poeira baixou, depois de ter sido levantada pelas palavras inocentes do Papa Francisco sobre a educação de filhos de casais gays – o que teria sido uma “abertura” para uniões homoafetivas –, a verdadeira questão se apresenta: na era Francisco, quão politicamente ativa irá ser a Igreja nesta questão?
Uma observação importante vem de Agostino Giovagnoli, especialista nas relações entre Igreja e Estado pela Universidade Católica de Sacro Cuore. A seu ver, esta mudança sob o papado de Francisco não é doutrinal, mas pastoral.
Na terça-feira, Giovagnoli escreveu que, sob este papa, os bispos não mais irão se ver como “parte da classe dominante, ou em relação de proximidade com elementos da classe dominante”, mas sim como a “voz do povo por parte de seus fiéis e, indiretamente, de todo o povo italiano”. Nesse sentido, sugere ele, os bispos poderão estar menos investidos em influenciar o curso dos debates políticos e se centrar mais no nível das preocupações pastorais. Se esse for o caso, diz Giovagnoli, não haverá implicações só na Itália, mas onde quer que haja bispos católicos identificados com causas políticas específicas – citando os EUA, em especial.
Quarto, o novo Jerzy Kluger estará em Roma em meados de janeiro. Kluger, que morreu na véspera de Ano Novo em 2011, era um judeu polonês e amigo pessoal de João Paulo II, que se tornou uma figura importante nas relações entre católicos e judeus durante os anos de seu papado.
Hoje, o rabino argentino Abraham Skorka, um amigo de Jorge Mario Bergoglio, que foi coautor de um livro junto do futuro papa, ocupa esta mesma posição. Skorka estará em Roma para uma reunião com Francisco no dia 16-01-2014; à tarde irá dar uma palestra pública na Universidade Gregoriana administrada pelos jesuítas, após uma conferência de imprensa com o cardeal suíço Kurt Koch, que dirige o departamento vaticano para o ecumenismo e de relações com a comunidade judaica. O assunto da palestra é “O diálogo judaico-católico 50 anos após ‘Nostra Aetate’”, fazendo referência ao documento do Concílio Vaticano II sobre as relações judaico-católicas.
Quinto, os Legionários de Cristo iniciaram o seu aguardado encontro do Capítulo Geral na última quarta-feira, projetado para marcar o fim formal dos três anos e meio de recuperação papal. O Capítulo deve adotar um novo conjunto de constituições para a Ordem e eleger uma nova direção. Dada a imagem dos Legionários como o símbolo principal dos abusos sexuais da Igreja, o resultado desse encontro será escrutinado cuidadosamente.
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O tráfico de noviços - Instituto Humanitas Unisinos - IHU