16 Novembro 2015
"Qualquer pessoa que estude o conceito de taifyya – o comunalismo sectário baseado em clãs que formam tribos e são unificados por identidades comuns comandadas por homens dando como base no patriarcado ancestral da região – sabe que fora do Confederalismo Democrático não há realmente nenhuma saída para a região. E também sabe que a armadilha de sempre é tentar reproduzir o conceito abstrato de Estado-nação no Oriente Médio", escreve Bruno Lima Rocha, professor de ciência política e de relações internacionais, ao analisar a cobertura da chacina de Paris pela mídia aberta.
Eis o artigo.
Paris, sexta-feira 13 de novembro de 2015 e o quadro do horror. A demência jihadista sunita, depois assumida pelo Estado Islâmico (ISIS), realiza quatro atentados simultâneos, incluindo a boate Bataclan e o Stade de France, onde se realizava um amistoso entre as seleções de futebol profissional de França e Alemanha. O total de mortos fechou em 129 e nada justifica essa ação de terror indiscriminado, assim como nada justifica o acionar de bombas em Beirute, o atentado contra o avião civil russo e outras barbaridades cometidas por este grupo e similares concorrentes da rede rival Al Qaeda.
Os atentados de Paris, sexta feira 13 de novembro, reforçam a idéia de que a única saída para o Oriente Médio e os povos da região é o Confederalismo Democrático. Fora disso só resta demência jihadista, salafismo e o também nefasto chauvinismo de todos os matizes, além da teocracia iraniana e seus aliados regionais, todos apoiados pela Rússia. Os ataques de Paris reforçam a denúncia perene e o embate: “Quem são os terroristas?!” Os hipócritas da Aliança do Tratado do Atlântico Norte (Otan, aliança militar herdeira da Guerra Fria e comandada por EUA e Inglaterra) ousam denominar o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) como terrorista! Isto é um absurdo intolerável e é fácil de provar que é todo o contrário. Só se espera - sincera e honestamente- que a resposta do Estado francês não venha a criminalizar aos mais de seis milhões de franceses com descendência árabe e outros milhões de afro-descendentes com credo islâmico e com cidadania francesa. Também cabe nesta Introdução reforçar que os aliados dos EUA na região como Arábia Saudita, Omã, Kuwait, Qatar e Emirados Árabes Unidos (EAU) apoiam as redes do ISIS e da Al Qaeda e nada sofre de retaliações ou punições do Sistema Internacional.
Neste texto que segue procuro expor as falhas de cobertura da mídia brasileira e a ausência da relação causal mais importante, se não para a existência de ISIS e Al Qaeda, ao menos para seu amplo funcionamento e sua capacidade operacional.
A mídia aberta brasileira repete a desinformação da CNN
O Jornal da Globo de sexta-feira 13, logo após o término do jogo entre Argentina e Brasil em Buenos Aires foi uma aula de desinformação. O âncora do telejornal, William Waack, tem formação também em relações internacionais e costuma ser mais ponderado quando está na Globonews. Em mídia aberta, este âncora que além de jornalista é professor de RI e tem certa erudição, deixou vazar o cacoete ideológico que grita com intenções discutíveis.
Ele, Waack, insistiu em falar de choque de civilizações, várias vezes. As teses de Samuel P. Huntington são desmontadas já no primeiro semestre desta instituição e em toda linha crítica de estudos tanto de segurança como de Oriente Médio. Não contente com este desserviço houve também o reforço das medidas da Guerra ao Terror (GWOT, General War on Terror, uma política de Estado dos EUA recheada de ilegalidades e que tem como símbolo a prisão de Guantánamo) como “saída” para este confronto. Para piorar os enunciados, erroneamente fala em terror islâmico – sequer assumindo o Islã político em sua versão sunita - e não utiliza o termo apropriado, de integrismo sunita através de redes terroristas. Não se trata aqui de exigir erudição acadêmica em rede nacional, mas justamente combater os efeitos nefastos da desinformação.
Não para por aí a desinformação. Na sexta 13 de novembro o ISIS sofreu uma grande derrota na frente do Curdistão iraquiano. O guarda-chuva do PKK através do HPG, YBS e YPG recuperou um importante cantão e lugar de maioria yázidi. Hipocritamente a CNN anunciou a “vitória dos curdos” – o que não é verdade absoluta – aqui no Brasil repetiram tudo de novo.
Em diálogo televisivo entre o professor de RI William Waack e ocorrespondente em Nova York (NYC), Jorge Pontual, o segundo teve a "capacidade" de afirmar que "os Peshmergas tomaram Shingal!". Peshmergas é o apelido das tropas semi-profissionais do Governo Regional Curdo (KRG), comandado pelo corrupto clã dos Barzani e homem de confiança tanto de Israel como das empresas petrolíferas. Estas forças simplesmente abandonaram os yázidis à sua própria sorte e teve depois a derrota política de ver esta comunidade étnico-cultural aliar-se ao PKK e passar a adotar o mesmo sistema político de Rojava.
Sinceramente não me furto à crítica. É este tipo de hipocrisia, este ato de desinformar baseado nos informes monitorados pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos que faz a alegria dos serviços de inteligência sauditas e turcos, os financiadores da demência sunita-jihadista. Para um país como o Brasil, com mais de 12 milhões de árabe-descendentes (dentre os quais me incluo), desinformar é uma intenção de projetar poder e uma perspectiva equivocada de mundo.
Quem financia o jihadismo sunita? Os países de credo wahhabita e com ligações entre suas elites dirigentes e os controladores das redes integristas; o papel da Rússia e a hipocrisia do G-20
Este tópico tem toda relação com o anterior. Sem apontar as fontes de financiamento e suporte material, é impossível apontar as causas ou combater o fenômeno. A lógica é relativamente simples e moralmente indefensável. O wahhabismo sunita é financiado pelos países produtores de petróleo que combatem a esquerda na região e são aliados das potências ocidentais. Já as potências ocidentais promovem a suposta "guerra ao Terror”, mas, não punem quem financia as redes supostamente combatidas pelas potências.
Vítimas da desinformação as populações europeias podem embarcar na onda da extrema direita e a islamofobia.
Aqui no Brasil a mídia desinforma operando como reprodutora da tese furada do choque de civilizações. Já a ex-esquerda ainda de corte estalinista ou baseada em um realismo a todo custo, faz coro com a Rússia e defende a teocracia xiita iraniana e o carcomido governo Assad na Síria (ou o que restara desta invenção francesa). Operando como alternativa viável e politicamente revolucionária, a macro proposta do PKK termina por sofrer de ocultamento forçado. Qualquer pessoa que estude o conceito de taifyya – o comunalismo sectário baseado em clãs que formam tribos e são unificados por identidades comuns comandadas por homens dando como base no patriarcado ancestral da região – sabe que fora do Confederalismo Democrático não há realmente nenhuma saída para a região. E também sabe que a armadilha de sempre é tentar reproduzir o conceito abstrato de Estado-nação no Oriente Médio.
O PKK fica inviabilizado em seu combate ferrenho e vitorioso contra o ISIS porque a OTAN precisa do governo do KRG – repito, da direita curda através do partido oligárquico KDP -, uma grande plataforma de petróleo além de operar como cabeça de ponte de Israel. O problema é que o clã Barzani (do presidente que jamais fora eleito Massoud Barzani) não quer nada com a luta antiintegrista e menos ainda com a defesa dos yázidis. É importante ressaltar que no panorama da guerra ampliada do Levante e da Mesopotâmia (Síria e Iraque), Agora, por sorte, Shingal foi liberado por forças conjuntas coordenadas pelo PKK e vai avançar o modo de auto-governo do TEV-Dem (democracia direta, igualdade de gêneros e economia cooperativada). Vitórias assim aumentam a urgência de intervenção das potências ocidentais na região, ainda mais depois da sexta-feira 13 de novembro em Paris.
O fato é que se a OTAN quisesse realmente fazer a sua parte precisaria congelar as contas suspeitas de emires e sheiks e fazer retaliações contra os Estados do Golfo. Este mecanismo – de como estes recursos são compensados e como giram através de contas indiretas me comprometo a explicar em detalhes em textos posteriores. Mas, reforço que é isso ou nada. Do contrário, é tudo um faz de conta e agora uma corrida bélica contra e coordenada com a aliança Rússia-Irã. Se a OTAN insistir em derrubar o governo Assad primeiro, não vai conseguir nada além de fortalecer a Al Nusra (filial da Al Qaeda na Síria), concorrente direta do ISIS.
Já quanto ao papel da Rússia e do Irã, acredito que ambos vão bancar o governo Assad até porque por ali tem um sopro de "legalidade", pois a Rússia está intervindo através de um pedido formal de Damasco. Mas, insisto, a comparação com a Guerra Civil Espanhola é perfeita, e Rojava e Shingal são a Catalunha e a Aragón desta guerra. A diferença - positiva - é a dimensão do PKK, e sua reserva estratégica em Qandil (cantão do Curdistão iraquiano que opera como santuário da esquerda). Pelas condições da região, realmente acredito que o guarda-chuva do KCK-PKK vai se fortalecer e organizar de forma autônoma e dentro de um acordo "constitucional" federalista, com amplos territórios na antiga Síria e no praticamente extinto Estado do Iraque. Hoje eles já organizam Rojava (três cantões), Shingal e Qandil (Iraque) e fazem duplo poder no Sudoeste da Turquia. O processo avança mas daqui de longe a gente não dimensiona porque por um lado a grande mídia mente e omite e, por outro, as bases teóricas da RI hegemônica não habilitam a interpretação correta das realidades.
A hipocrisia sem tréguas ocorria – e ocorre - simultaneamente a chacina de Paris e suas consequências. Enquanto o G-20 se reúne no balneário de Antália, na costa Mediterrânea da Turquia (ao sul do Estado kemalista) e faz declarações de "combate ao terrorismo", o país membro da OTAN e detentor do segundo maior contingente militar profissional dentre os Estados desta Aliança trama suas redes de inteligência e segurança interna com o Estado Islâmico (ISIS). Simultaneamente, em rede nacional e aberta, as televisões brasileiras repetem de forma acrítica a versão do governo de Recep Erdogan dizendo que os atentados recentes contra "turcos" foi uma obra da infiltração jihadista e não, como já foi comprovado, uma ação coordenada pelos conspiradores militares turcos, a ala de segurança do AKP e sim, militantes do ISIS de nacionalidade turca ou síria.
Foram dois atentados empurrando o país rumo à guerra civil, rompendo a trégua com o PKK e ganhando as eleições para o AKP com os votos da direita militar (MHP, que migraram para o AKP). Isso é tão óbvio que soam como absurdas as versões dadas por William Waack e Demétrio Magnolli a respeito. O problema da desinformação é sua consequência. Por mais que possamos desmascarar estas versões em redes de internet e no meio acadêmico, para o grande público receptor esta prevalece.
Se houvesse a circulação de informes factualmente corretos a hegemonia no pensamento das RI e mesmo na esquerda internacional já teria se transformado. Isto porque, de fato, quem combate às forças integristas sunitas no solo da Grande Síria é a esquerda do Curdistão coordenada pelo YPG-PKK. Quem combate às forças integristas sunitas no solo do antigo Iraque é a esquerda do Curdistão coordenada pelo PKK-YBS. A primeira linha desta infantaria ligeira e semi-motorizada é composta pela força das mulheres no YPJ e YJA Star. Todo o resto é desinformação ou amoralidade geopolítica.
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Os atentados da sexta-feira 13 em Paris: a desinformação da mídia aberta reforça a hipocrisia do Sistema Internacional - Instituto Humanitas Unisinos - IHU