06 Novembro 2015
“Há 133 anos, faleceu Luiz Gama e, após esse período, temos a oportunidade de reescrever a história. Ao apóstolo negro da Abolição, pelos seus relevantes serviços prestados junto aos tribunais na libertação dos escravos, a OAB Nacional e a OAB de São Paulo concedem o título de advogado.” Este trecho é parte do discurso do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcus Vinicius Furtado Coelho, feito em cerimônia na Universidade Presbiteriana Macknzie, em São Paulo, na noite da última terça-feira (3). Pela primeira vez na história do Brasil um homem já falecido recebe o título de advogado e, mais do que isso, é reconhecido como “o maior advogado da história do país”.
A entrevista é de Ivan Longo, publicada por Portal Fórum, 04-11-2015.
Para Silvio de Almeida, advogado, professor das universidades Mackenzie e São Judas Tadeu e presidente do Instituto Luiz Gama, isso é um sinal de que a sociedade brasileira é hoje um “espaço de disputas” e que, a qualquer avanço racista ou conservador, haverá, sim, “contradições” e “resistência”. Ele foi um dos primeiros a defender a tese de que a OAB deveria reconhecer a importância de Luiz Gama, historicamente invisibilizado na história e no Direito.
Nascido em 1830 na Bahia, Gama foi escravizado depois de ser vendido pelo pai para pagar uma dívida e, sete anos depois, ao conquistar sua libertação, se transformou em um dos maiores líderes abolicionistas da história do país. Sua atuação como advogado se deu depois de tentar, em 1850, entrar na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco. Impedido por ser negro, frequentou as aulas como ouvinte e, com o conhecimento adquirido, atuou na defesa de escravos.
Confira abaixo a entrevista com Silvio de Almeida sobre o legado de Luiz Gama e as novas possibilidades que se abrem após o seu reconhecimento oficial como advogado.
Eis a entrevista.
Qual a importância – para a sociedade como um todo, para o movimento negro e a área do Direito – da homenagem e do reconhecimento de Luiz Gama como advogado?
Diante da conjuntura histórica que a gente vive, da perspectiva de retrocessos institucionais, de um retorno de posições conservadoras mais explícitas – em que racismo, machismo e homofobia vão se colocando de maneira mais frontal -, instituições como a OAB e as universidades brasileiras, que são conservadoras em sua formação, colocarem Luiz Gama numa posição de proeminência é sinal de que, diante de toda uma conjuntura bastante adversa há, sim, as contradições. São nesses momentos em que elas aparecem.
Isso sinaliza, de alguma forma, que a sociedade brasileira é um espaço de disputas. Disputa politica, disputa simbólica e, portanto, também disputa econômica. Luiz Gama se coloca neste momento, e agora para a comunidade negra em especial, como um símbolo de resistência e de que todo e qualquer avanço, seja de conservadorismo, seja de pautas econômicas prejudiciais à população, encontrarão, sim, adversários e resistência. Ele é um símbolo disso e vem em boa hora.
Do ponto de vista do Direito, acho que resgatar sua figura é algo importantíssimo. Ontem, no evento, o próprio presidente da OAB disse que Luiz Gama foi o maior advogado da história do Brasil. É a primeira vez que se dá um título de advogado para alguém que está morto e é a primeira vez que se dá o título de advogado para alguém que não é do Direito. O presidente da OAB disse: “Os heróis não se curvam às formalidades por que heróis são feitos para superar formalidades”. E eu também penso assim. Acho que os grandes homens e grandes mulheres são aqueles que lutam por um mundo mais justo independentemente da ordem do mundo. São aqueles que superam a ordem, superam a legalidade em nome de um projeto, em função de um mundo melhor.
Acho que, para o Direito brasileiro, para o pensamento jurídico, funciona assim: o maior advogado desse país tinha um olhar profundo sobre as questões políticas e para as questões econômicas. Fica uma lição para todo mundo, para os advogados, para o movimento social, para a sociedade. Não se pode pensar a questão racial como algo isolado das grandes questões estruturais, sejam políticas ou econômicas. Não se pode pensar as grandes questões nacionais sem que se leve em consideração a questão racial, em especial no Brasil. Essa é a lição que fica.
Mesmo Luiz Gama já sendo tido como referência para uma parte dos advogados há algum tempo, por que, na sua opinião, se demorou tanto para haver esse tipo de reconhecimento formal?
Primeiro que a OAB é uma instituição atravessada por uma prioridade que é a prioridade da branquitude. Os assuntos relativos à questão racial não passam naturalmente dentro de uma instituição tao grandiosa. Além disso, Luiz Gama não foi colocado oficialmente na história dos grandes advogados por que as condições estruturais, econômicas e simbólicas do Brasil nunca permitiram que um homem negro ocupasse um espaço de proeminência no lugar dos grandes advogados, que sempre estiveram ligados ao poder de alguma maneira. Então, acho que isso aí foi um marco. Um reconhecimento muito difícil para uma instituição formada como a OAB foi, tão poderosa.
Agora, acho que demorou tanto por que esse é um processo que é resultado de um amadurecimento do próprio movimento negro, que levou à frente essa reivindicação. Lembro que essa reivindicação surgiu quando eu estava fazendo uma palestra na Universidade Federal do Piauí e falei isso para o conselheiro da Ordem, porque o Instituto Luiz Gama já pensava nisso. E muita gente da OAB não conhecia a história do Luiz Gama. Ele foi invisibilizado na história por ser um homem negro. A partir do momento em que o movimento negro passou a falar dos feitos do Luiz Gama pessoas que não o conheciam passaram a conhecer sua história, que é incontornável. É uma questão de conhecimento de prática. Foi necessário mostrar para as pessoas e para os advogados quem foi ele.
Como professor e advogado negro, acredita que o reconhecimento contribui para mudar o imaginário racista que permeia a área?
Sim, sem dúvidas. O fato de Luiz Gama ser tido como o maior advogado do Brasil, simbolicamente, é um negocio importantíssimo. Ele, agora, é o maior dos advogados. E é um homem negro. Isso coloca um elemento bastante perturbador dentro do imaginário racista da sociedade brasileira. Mas ainda é um pedaço, um pedaço pequeno da história. A partir desse elemento que é colocado dentro do imaginário do que é advocacia, acho que a gente começa a disputar simbolicamente. E agora é isso, tem que pensar como a gente forma uma subjetividade capaz de incorporar essa missão do Luiz Gama. Temos um imaginário, um fruto plantado pelo e por ele que está sendo colhido pelo movimento negro.
Como isso vai refletir na formação dos juristas? Como fazer com que conheçam Luiz Gama? Muitos advogados ainda sequer sabem quem é, mesmo com anos de Direito. E a gente tem que pensar que o Direito é uma parte ainda bastante parcial da realidade. Existem as disputas econômicas, disputas políticas em alto grau. O racismo não é uma questão jurídica, é uma questão estrutural que tem a ver, portanto, com a economia política também. Há uma economia política do racismo e precisamos tratar isso. Luiz Gama foi um combatente, um aliado importante na luta contra o racismo. Mas agora ele deixa de ser um homem pra ser uma ideia, o que é muito mais perigoso – além de um aliado muito mais poderoso. A ideia do Luiz Gama tem um poder avassalador.
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“Luiz Gama deixa de ser um homem para se tornar uma ideia, o que é muito mais perigoso” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU