02 Outubro 2015
"Penso que nos é imposto o mesmo desafio até que consigamos superá-lo. Logo, significa que esse desafio de acolher o diferente, o ser que emigra em nossa direção, ainda é algo não superado por nós. Sim, precisamos de ações humanitárias e piedosas para com os que emigram. Mas o que quero propor é pensar o que, de fato, podemos deixar que eles façam conosco. Eles já passaram suas fronteiras e desafiaram buscar as migalhas. E nós? Somos capazes de lhes dar fatias do pão e não apenas as migalhas?", o texto é do jornalista e mestre em Comunicação João Vitor Santos, produzido como exercício do curso Jesus e o Reino no Evangelho de Marcos.
Eis o artigo.
Primeiro, proponho um mergulho no texto de Marcos.
Marcos 7:24-30
A mulher cananeia
24 E, levantando-se dali, foi para os territórios de Tiro e de Sidom. E, entrando numa casa, queria que ninguém o soubesse, mas não pôde esconder-se, 25 porque uma mulher cuja filha tinha um espírito imundo, ouvindo falar dele, foi e lançou-se aos seus pés. 26 E a mulher era grega, siro-fenícia de nação, e rogava-lhe que expulsasse de sua filha o demônio. 27 Mas Jesus disse-lhe: Deixa primeiro saciar os filhos, porque não convém tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos. 28 Ela, porém, respondeu e disse-lhe: Sim, Senhor; mas também os cachorrinhos comem, debaixo da mesa, as migalhas dos filhos. 29 Então, ele disse-lhe: Por essa palavra, vai; o demônio já saiu de tua filha. 30 E, indo ela para sua casa, achou a filha deitada sobre a cama, pois o demônio já tinha saído.
Agora, pense comigo.
A leitura do texto de Marcos me fez pensar diretamente na situação dos refugiados. Na atualidade, são a mulheres que correm ao ocidente atrás de ralas e parcas migalhas. O drama desses imigrantes choca e emociona qualquer um, sem lá grandes esforços. Mas o que eles representam? Voltando a Marcos, são as mulheres que rompem suas fronteiras físicas e vão em busca de uma vida melhor. Se a mulher foi atendida por Jesus, podemos imaginar que essas pessoas possam também ter sucesso e uma vida melhor. Entretanto, há um outro fator envolvido.
Por que Marcos também faz referência, de certa forma, à altivez da casa que recebe Jesus? Essa, creio eu, é uma provocação para que nós também rompamos com fronteiras. Essa fronteira muito particular, muito individual. O drama dos refugiados é uma atualização das nossas relações com o outro. É como se, pelos olhos dos refugiados desesperados, fosse possível ver o negro escravizado, o gay rejeitado, o cristão e o judeu perseguidos. É viver mais do mesmo e numa atualização cruel e contemporânea.
Por concepção própria, penso que nos é imposto o mesmo desafio até que consigamos superá-lo. Logo, significa que esse desafio de acolher o diferente, o ser que emigra em nossa direção, ainda é algo não superado por nós. Sim, precisamos de ações humanitárias e piedosas para com os que emigram. Mas o que quero propor é pensar o que, de fato, podemos deixar que eles façam conosco. Eles já passaram suas fronteiras e desafiaram buscar as migalhas. E nós? Somos capazes de lhes dar fatias do pão e não apenas as migalhas? Ora, repito, isso é importante, mas no que podemos ser melhor a partir dessa história de dor, sendo verdadeiramente afetados? Como aceitar o outro como igual e não como a mulher de origem distinta da minha a qual “deixo” buscar debaixo da mesa o que não me interessa?
Outro dia, conheci a história do imigrante negro que trabalha numa fábrica, mas que é enfermeiro. E isso só se revelou depois de atender uma mulher que passava mal no trem. Ora, demos a ele a migalha de ser funcionário de fábrica. O acolhemos? Sim, acolhemos. O aceitamos? Não. Ele não pode ser enfermeiro. Só vamos lhe dar o que não nos serve mais, o excesso. Como disse Angela Merkel, o país não pode receber todos os imigrantes porque vai tirar de seus nativos alguns lugares. Ou seja, somos diferentes. Uns merecem mais e outros menos.
Ultrapassar a fronteira pessoal é aceitar o outro. É olhar para o imigrante como alguém como eu, mas que vive uma história diferente. Merece e precisa sentar à mesa. Merece não as migalhas, o que não me serve mais, o excesso de minha refeição. Merece dividir a refeição comigo. Seus hábitos podem me incomodar, posturas me revoltar e posso até não aceitar o que crê e em quem crê. Mas é humano permitir que professe o que é ao meu lado, em igualdade de direitos e sem olhares meramente piedosos ou de repulsa e reprovação. Eis o desafio. Eis a fronteira da igualdade que ainda não aprendemos a transpor.
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A fronteira a ser transposta e a Mulher Cananeia – uma leitura possível - Instituto Humanitas Unisinos - IHU