18 Setembro 2015
Às vésperas da viagem do Papa Francisco à ilha caribenha, foi republicado pela editora Mondadori, na coleção "I libri di Sant'Egidio", um texto de quase 20 anos atrás, assinado por Jorge Mario Bergoglio, em que são bem evidenciadas as razões de uma aposta que hoje está dando os seus frutos.
Ele se intitula Uno sguardo su Cuba. L’inizio del dialogo. Giovanni Paolo II e Fidel Castro [Um olhar sobre Cuba. O início do diálogo. João Paulo II e Fidel Castro] e tem a introdução do historiador italiano Andrea Riccardi, da qual publicamos abaixo um trecho.
Um texto para entender as premissas de um diálogo que mudou a história. Janeiro de 1998: João Paulo II vai a Cuba e se encontra com Fidel Castro. É o início de um itinerário, cujo cumprimento é a visita de Francisco a Havana nos próximos dias, depois do anúncio do fim do embargo estadunidense, graças também à discreta mediação realizada pelo papa.
Em 1998, o então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, publicou esse livro depois de uma aprofundada reflexão sobre a viagem de Wojtyla a Cuba. Um olhar sobre Cuba que se coloca nas raízes da reviravolta de hoje.
Riccardi é fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro italiano. O texto foi publicado por Avvenire, 17-09-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Cuba é uma realidade muito particular para a América Latina. De um lado, identifica-se fortemente com o episódio cultural e histórico do continente, mas, de outro, tem uma identidade peculiar própria, ligada à revolução castrista de 1959 e ao regime socialista por ela inaugurado e ainda em vigor.
Cuba é semelhante ao mundo latino-americano, do qual é parte, mas é muito diferente. Não se trata de um sistema político-social imposto com a intervenção da União Soviética, como no Leste Europeu. A revolução cubana é autóctone, mas se tornou um modelo para muitas revoluções (muitas vezes fracassadas) no continente e alhures. É o regime socialista de maior duração na América Latina, ainda hoje em vida depois da retirada de Fidel Castro.
Cuba socialista e revolucionária representou um mito e um ideal para muitos latino-americanos (especialmente das jovens gerações), mas também um fantasma inquietantes para governos e poderes estabelecidos. Foi isso para os presidentes norte-americanos antes de Barack Obama. No entanto, mesmo entre aqueles que não compartilhavam o sistema socialista (sobretudo latino-americanos), Cuba atraiu simpatia pela sua resistência aos Estados Unidos, que, desde 1962, impuseram o embargo à ilha (os Estados Unidos absorviam até então 74% das exportações cubanas).
Em suma, Cuba, sobretudo na América Latina, é mais relevante do que as suas dimensões econômicas ou demográficas. Bergoglio está consciente disso e sabe como Cuba é um teste para as relações entre os países latino-americanos e os Estados Unidos.
O Papa Francisco parece ter dito ao presidente norte-americano Obama, em visita ao Vaticano: "Se você quer a simpatia dos latino-americanos, resolva os problemas com Cuba". Assim, chegou-se ao histórico acordo do dia 14 de dezembro de 2014: o fim do bloqueio que durou mais de meio século. Raúl Castro, em uma reunião pública de países latino-americanos, reconheceu que não se teria chegado ao encontro com os EUA sem a decisão de Obama, que se diferenciou dos seus antecessores, "por ser de origem humilde".
O Papa Francisco teve a função de mediador discreto entre os dois governos. Ele mesmo, em 1998, provocando uma discussão sobre a visita de João Paulo II à ilha e publicando este livro, havia expressado a convicção de como o caso cubano era focal para as relações interamericanas e no mundo. E o passo do Papa Wojtyla, há quase 20 anos, foi o primeiro no sentido do degelo.
O cardeal argentino, que subiu à cátedra de Pedro em 2013, tem ideias claras sobre Cuba, sobre a necessidade do diálogo entre Igreja e regime, e entre Igreja e povo, sobre o absurdo do bloqueio realizado pelas sanções. Há muitos anos, ele está convencido da necessidade de pôr fim ao isolamento da ilha. Aos danos econômicos e políticos de tal isolamento, a colaboração com o bloco socialista e com a União Soviética tinha remediado; mas, depois de 1989 e o fim do comunismo do Leste Europeu, começara uma temporada difícil para a economia cubana.
O isolamento, à sua maneira, tinha radicalizado muitas escolhas políticas do regime. Por outro lado, para aqueles que não aceitavam viver em uma situação difícil do ponto de vista econômico e em particular de um ponto de vista político, havia a via da emigração.
A viagem de João Paulo II quisera forçar o isolamento de Cuba através do diálogo: "É de extrema importância a contribuição da visita de João Paulo II – lê-se – porque, de certo modo, tal acontecimento implica que se mantenham abertos os canais de comunicação". É um ponto decisivo da reflexão do grupo de trabalho liderado por Bergoglio, que capta o coração da visita papal.
De fato, a expressão-chave da mensagem wojtyliana durante a visita é: "Que Cuba se abra ao mundo, e que o mundo se abra a Cuba".
A imprensa ocidental tinha interpretado esse slogan e a própria viagem do papa como uma premissa para o fim do comunismo na ilha, sob o modelo da transição polonesa. Em suma, a visita a Cuba não era senão a reedição das viagens papais à Polônia, destinadas a estimular o espírito de independência da população polonesa. Isso é o que, por exemplo, os chineses temiam, quando se falava de uma eventual visita de João Paulo II à China, isto é, o caráter "subversivo" do impacto sobre a população.
Efetivamente, eram temores exagerados. De fato, o papa era muito perspicaz para acreditar que a história se repetisse desse modo. O próprio Fidel Castro conhecia a solidez do seu regime e as fragilidades do seu país: ele não alimentava temores com relação ao papa. João Paulo II queria ajudar a ilha a construir uma relação nova com o mundo e com os Estados Unidos; fazer a sociedade cubana crescer e ajudar a Igreja Católica. Sem meias medidas, ele condenou o embargo: "O povo cubano não pode se ver privado dos laços com os outros povos". Não só o governo, mas também o povo.
As observações de Bergoglio sobre Cuba mostram o grande interesse do mundo católico dos anos 1990 em relação à ilha: pode-se dizer que haja a busca de uma via "católica" ou dialogante para sair do bloqueio internacional que se consolidou, indicada com a viagem de Wojtyla. Além disso, apesar de alguns momentos difíceis entre o governo de Castro e a Santa Sé, nunca se interromperam as relações diplomáticas.
Vários núncios em Cuba, como Dom Cesare Zacchi, tiveram um papel no aplainamento das dificuldades. João XXIII, na época da revolução castrista, vigiou para evitar que se repetissem as divisões do Leste Europeu. A revolução cubana ocorreu sem que fosse derramado o sangue de padre algum.
O clima entre Igreja e Estado não foi bom, mas nada comparável aos países do Leste Europeu. Houve limitações para a Igreja, em sua maior parte reduzida à vida cultual. No entanto, o regime não controlou as nomeações ou o clero. A figura de Dom Carlos Manuel de Céspedes, descendente de uma histórica família cubana, por muito tempo secretário da Conferência Episcopal, foi muitas vezes uma ligação com o mundo do governo que o respeitava.
O momento mais difícil foi quando o governo expulsou 132 padres (não cubanos) em 1961, depois do desembarque norte-americano na Baía dos Porcos. Mas, no momento da visita do papa, em 1998, pareciam histórias já distantes.
O Papa Francisco, como latino-americano, realizou aquilo que muitos sonharam antes dele, graças também à interlocução com o presidente Obama. Ele mostrou a força do diálogo. Ler estas páginas de reflexão sobre a viagem de João Paulo II em 1998 ajuda a entender melhor como Jorge Bergoglio olhava há muito tempo com grande atenção para Cuba, convencido de que a Igreja devia ter um papel nesse quadro.
Hoje, essas visões tornam-se o programa e a realidade do seu pontificado.
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Cuba, a revolução vista por Bergoglio. Artigo de Andrea Riccardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU