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17 Setembro 2015

Sueli Aparecida Bellato e Jair Krischke trazem à vida a memória de vítimas da ditadura no Brasil para lembrar de um tempo de horror que não pode se repetir.

“Nunca tinha ouvido falar desse assunto assim, dessa forma”. A frase é de um jovem universitário de 21 anos. Mateus Ripol estuda engenharia civil na Unisinos. Para ele, antes de ouvir os relatos de Sueli Aparecida Bellato e Jair Krischke, a ditadura no Brasil era só um capítulo no livro de história do colégio. A surpresa do garoto é justificável: o passado que conhecera na escola é diferente, encobria a realidade a qual foi apresenta na manhã de terça-feira, 15/09, logo na abertura do III Colóquio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e o VI Colóquio da Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos Humanos e violência, governo e governança. O evento é promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelo curso de Filosofia e pelos programas de pós-graduação em Direito e em Saúde Coletiva da Unisinos. O tema do encontro é A justiça, a verdade e a memória na perspectiva das vítimas. A narrativa das testemunhas, estatuto epistêmico, ético e político.

Sueli Bellato
Fotos: João Vitor Santos - IHU

Em certa medida, o fato de o jovem Ripol não conhecer de fato um dos capítulos mais sombrios da História do Brasil é reflexo das sementes plantadas pelo regime militar. A professora e ex-Conselheira da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Sueli Aparecida Bellato, recorda que o país deu um grande passo com a redemocratização. Porém, encobriu todo esse passado. O resultado é que, nos dias de hoje, vive-se como “crias” de um regime que se manifesta, por exemplo, numa grade curricular do colégio como “algo que não abre janelas para respirar” e segue na lógica dos torturadores. “Essa ditadura de 21 anos causou muitos rompimentos que ainda não foram passados a limpo. Sem isso, não vamos para frente. Vejo, hoje, 'que somos os mesmos e vivemos como nossos pais'. Falta dar o passo de reconhecer no outro os direitos iguais”, destaca.

Jair Krischke

Marcelino Masotti Júnior, de 21 anos, é colega de Ripol. Também impressionado com os primeiros relatos, disparou na saída da conferência: “não se aborda esse assunto dessa forma todo dia. Isso é muito interessante para corrigir erros do passado que repetimos”. Entre os erros que o jovem se refere, está o fato de violar seres humanos numa força policial que tripudia sobre a dignidade do outro por ver nele o inimigo. Jair Krischke, presidente do Movimento Nacional de Direitos Humanos, recorda que a polícia que temos nas ruas hoje é outra herança nefasta do regime. “A impunidade dos torturadores contamina toda uma nação. Quando vejo esses crimes praticados pela política truculenta, penso que tem uma origem. É a origem na impunidade. A formação dessa polícia militar é dos períodos da ditadura”, enfatiza, ao recordar casos recentes de jovens que foram mortos em operações da polícia em São Paulo.

Evento foi aberto na manhã de terça-feira, dia 15-09

A verdadeira reparação

É preciso dar voz a narrativa das vítimas e recontar suas histórias. É mais ou menos isso que a carioca Fernanda Telha, 26 anos, tenta fazer na sua pesquisa de mestrado na PUC-Rio. “Eu estudo a importância desses testemunhos. Olhar para essas narrativas é fundamental para conhecer algo que se vivenciou. Quanto mais conhecemos, mais avançamos”, analisa. Porém, para Sueli, isso é parte de um processo que requer uma verdadeira reparação para essas vítimas. Entende que é preciso, para além da reparação das vítimas com indenizações e reconhecimentos das suas histórias, a responsabilização criminal dos torturadores. “E não é para colocar um monte de velhinhos no pau de arara. É para que se arrependam e possamos dizer ‘tortura nunca mais’”.

Sueli entende que sem punição torturadores e vítimas são postos como iguais. Ela questiona, até mesmo, o lugar das vítimas. “Precisamos sair dessa passagem de ver os torturados só como as vítimas e olhar para a contribuição que eles nos derem. Isso ocorre somente quando violadores e vítimas são vistos como diferentes”, diz ao lembrar da importância da Anistia, mas ressaltar que é preciso ir além, nessa diferenciação entre torturador e torturado. É essa a reparação que Jair busca com o Movimento. Ele desenrola capítulos da história como novelos emaranhados. É o caso da Operação Condor. Reconhecendo na Lei da Anistia formas de punir torturadores, ele lamenta a postura conservadora do judiciário brasileiro. “Com a postura do Supremo de estender a Anistia para os agentes de Estado, se consagrou a impunidade. Isso tornou o Brasil um ninho de repressores. Não só os nossos, mas outros vieram para cá”, defende, ao apresentar bastidores da Operação Condor e revelar que militares de países do Conesul vivem pelo Brasil.

Provocações

Exibição do documentário Anistia 30 Anos

Depois de exibir o vídeo Anistia 30 Anos, Sueli diz: “o que me passou pela cabeça revendo essas imagens agora é a diferença das manifestações de ontem e de hoje. O que se queria e o que se quer. Com toda a repressão, não se via ninguém agressivo (com ódio). E olha que foram 150 oficialmente desaparecidos”.

Depois de revelar o Brasil como “ninho” de torturadores e as conexões destes com a Operação Condor, Jair enfatiza: “A justiça de transição quer restaurar a normalidade, mas entende também que é essencial a punição. Sem isso, se cria a cultura da impunidade. Cultura que segue no aparelho repressor da polícia de hoje que age como na ditadura. No Rio de Janeiro, por exemplo, a cada 100 homicídios só dois são apurados. Isso é a impunidade”.

Por João Vitor Santos