04 Setembro 2015
"As experimentações democráticas deixaram de existir e é uma visão estatal e centralizadora que vigora: o luto do socialismo e do autoritarismo estatal ainda não foi feito. A crítica do mercado e dos mecanismos da democracia representativa serve apenas para mistificar práticas de exploração do trabalho e, ainda pior, práticas arcaicas! (...) Na Europa e na América Latina, a esquerda nos mostras que é incapaz de pensar além do Estado: seja ele socialista ou neokeynesiano no regime discursivo, ele apenas serve para conter as lutas no regime de fato. Entre os dois continentes, a urgência é sair dessa dupla armadilha, ir para o êxodo da invenção de novas institucionalidades", advertem Giuseppe Cocco, sociólogo e professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e Raul Sanchez Cedillo, tradutor, filósofo e membro da Universidad Nómada da Espanha.
Eis o artigo.
“Não queremos correntes, mas elos”
Célio Gari
1. Desde sempre somos antropofágicos, jamais fomos modernos.
Uma das razões que explica a densidade do diálogo entre o tropicalismo antropofágico (brasileiro) e a antropologia simétrica (europeia) é sem dúvida a convergência das críticas que os anima: desde sempre somos antropofágicos; jamais fomos modernos. O animismo é um sincretismo que mestiça bárbaros e selvagens: a outra modernidade com o não moderno.
Afirmando que desde sempre somos antropofágicos, o tropicalismo recusou e recusa os atalhos nacional-populares pelos quais se embrenhava a esquerda socialista e anti-imperialista e mais em geral o terceiro-mundismo na procura de raízes de identidade e autenticidade; afirmando que jamais fomos modernos, a antropologia simétrica atacou as raízes da razão instrumental ocidental, ou seja os procedimentos de purificação que impõem um sem numero de assimetrias entre ciência e vida, entre mente e mão, alma e corpo, cultura e natureza. O tropicalismo antropofágico nos mostra que as raízes do nacional-popular são na realidade as do colonialismo europeu e que esse se reproduz como colonização interna, produzindo imaginários espelhados na dialética do escravo e do senhor, das peles e das mascaras. A antropologia simétrica explica que o conteúdo do processo colonizador é sua razão (a ciência) e que essa se afirma como biopoder: poder sobre a vida dos colonizados pelos mecanismos de sua purificação instrumental, aqueles que acabam atribuindo a potência prática e constituinte da invenção cientifica aos tribunais constituídos na instrumentalidade dos laboratórios de experimentação e formalização. Como diziam os jovens “operaistas” italianos, não nos interessa a ciência, mas o principio de seu desenvolvimento e, pois, a técnica não será o prémio para quem ganha a luta de classes, mas o terreno dessa luta e ao mesmo tempo de sua requalificação.
O nacional-popular (o socialismo) e a técno-ciência são – ambos – intrínsecos ao capitalismo e organizam seu poder nos laboratórios, pela imposição da separação e até a oposição entre ciência “pura” e ciência “humana”, entre objeto e sujeito, entre pensamento racional e pensamento selvagem, entre o norte racional e o sul selvagem.
Os laboratórios, enquanto mecanismos de purificação do pensamento, são os dispositivos centrais de reprodução do eurocentrismo no Sul e também no Norte como colonização ao mesmo tempo externa e interna. No “não lugar sem fora” que define o espaço–tempo da globalização imperial, o Ocidente não é mais o laboratório do mundo, ou seja não constitui mais o futuro radioso (capitalista ou socialista) de um progresso positivo e linear. A própria noção de futuro está em crise e com ela aquela de progresso, inclusive quando se apresentam como “epistemologias do Sul”. Os órfãos do anti-imperialismo e dos muros totalitários dizem que a noção de Império é eurocêntrica, mas somente não podem aceitá-la por não ser suficientemente ocidental e assim procuram um “fora” paranoico no saudosismo por “novas guerras frias”, na farsesca oposição entre, por um lado, o capitalismo “liberal” de UE e Estados Unidos e, por outro lado, capitalismo “social” de China, Rússia e Brasil (BRICS).
Já não há mais cobaias nos laboratórios. Sejam elas ratos ou aranhas, estão todas exercendo seu direito de fuga das alternativas binárias que o pensamento pós-colonial produz no Norte e no Sul[1] . Se hoje ainda há um “fora” é aquele que se constitui no êxodo, entre as redes e as ruas.
2. “Los cantos de ida y vuelta”: de maio a junho.
Jamais fomos modernos, mas os laboratórios do poder não cessam de capturar e hierarquizar a potência do saber produzido pela cooperação social, pelas relações constitutivas de democracia real. Mesmo aqueles que se dizem preocupados com seu “desenvolvimento”, exatamente porque procuram construir os “laboratórios” desse futuro, acabam querendo colocar aranhas e ratos de volta nas gaiolas de um saber purificado, impotente e ... insensato. Sempre fomos antropofágicos, mas a esquerda nacional desenvolvimentista e soberanista continua falsificando as pautas da “reforma”, sonhando com o “socialismo em único país” e funcionando de fato como autoritário abre-alas da direita e de sua globalização neoliberal: entre megabarragens e megaeventos, os índios são transformados em miseráveis e os pobres em trabalhadores terceirizados; os imigrantes são sempre subalternizados e a cidadania é reduzida a uma operação de imunização do corpo da nação produtiva, assim como a pensam Dilma e Serra no Brasil, Chevènement e Le Pen na França, Renzi e Salvini na Itália, Thilo Sarrazin e Merkel na Alemanha.
Se a antropologia simétrica nos diz que nunca formos modernos e, pois, que nenhum laboratório nunca produziu ciência da mesma maneira que nenhum tribunal jamais fez justiça, o perspectivismo ameríndio coloca a produção do saber nos mil platôs desenhados pelas trocas de trocas de pontos de vistas. O homem é um nó de relações: a impureza da mestiçagem universal, sujeito e objeto, cultura e natureza. Não se trata, pois, de pensar o Norte desde o Sul, nem o Sul desde o Norte, mas pensar entre, no êxodo: o agenciamento, o devir-Sul do Norte e o devir-norte do Sul, os “cantos de ida y vuelta”: a situação pós-colonial não é apenas das ex-colónias, mas também da metrópole. O pensamento é selvagem e civilizado.
O perspectivismo ameríndio, a filosofia da percepção assim como a esquizo-análise são as faces múltiplas de um mesmo processo de produção do saber: discursos e atos políticos que constituem as sociedades, os grupos, as “classes”. A justiça é luta e não um tribunal e isso exatamente na medida que a verdade não está em nenhum laboratório, mas na coragem de destruí-lo: o ousar saber precisa sempre de um saber ousar.Exercendo nosso direito de fuga, nos concentraremos aqui a pensar o que acontece entre o Norte e Sul, entre Espanha e Brasil, ou seja entre as situações mais dinâmicas da Europa e da América do Sul, mesmo que essa “dinâmica” tenha sentidos opostos.
Dos levantes que seguiram a onda das primaveras árabes, o 15 de maio de 2011 na Espanha (15M) foi com certeza aquele que na Europa mais conseguiu generalizar-se e manter-se no tempo e o de junho de 2013 no Brasil foi aquele que na América Latina mais se massificou, radicalizou e – apesar de tudo – continua durando. Nos dois casos, entraram em cena novas personagens: as multidões do trabalho metropolitano.
O 15M nasceu imediatamente como um levante contra uma representação sequestrada pelo duplo dispositivo de comando: o do sistema financeiro e o do sistema dos partidos; se firmou como movimento emergente e distribuído através das redes sociais, seguindo o exemplo das primaveras árabes e da Geração à Rasca portuguesa e se traduziu rapidamente em uma ocupação generalizada do espaço público (as Acampadas). O 15M, é algo como uma “criticalidade auto-organizada”: não um “movimento único”, mas um acontecimento ampliado onde apareceu o país do outro lado do espelho: “Now, here, you see, it takes all the running you can do, to keep in the same place”. Estar no mesmo lugar significa estar numa situação aberta ao acontecimento onde a energia potencial distribuída transforma o status quo em processo constituinte. A exceção aqui é a persistência inédita dessa “criticalidade auto-organizada” do sistema de lutas sociais. Criticidade é o fato de uma evolução não-linear com arranjos que expressam tensões éticas, políticas, eróticas, biopolíticas. O 15M passou por pelo menos 3 desdobramentos: a conexão com plataformas de luta oriundas dos movimentos que diziam “Nós não pagaremos pela crise de vocês”, como a Plataforma de Afectados por la Hipoteca (PAH); a emergência de um sindicalismo social (com as Mareas da educação e da saúde); os movimentos de ocupação nas cidades (os Centros Sociais) e a criação de um sistema rede emergente, multiníveis, entre as redes e as ruas, entre as pessoas e os coletivos (a tecnopolítica).
Com essa capacidade de durar (e com sua resiliência) o 15M começou a ser atravessado pela questão da representação eleitoral em dois momentos: logo em 2011, quando se recusou a escolher entre o pior e o menos pior e deixou o PSOE ser derrotado pelo PP; nas eleições europeias de junho de 2014 quando se apresentaram duas formações políticas novas: o Partido X, Partido do Futuro e o Podemos. Apesar de o Partido X ser oriundo das redes tecnopolíticas internas ao 15M, foi o Podemos que teve um nítido sucesso e conseguiu pautar o debate da transformação eleitoral e institucional da duração do 15M e que, hoje em dia, mesmo com inevitáveis dificuldades – devidas à sua hipótese organizacional e estratégica –, pode tornar-se a alcunha de uma mudança política constituinte na Espanha e na União Europeia. Podemos não é o único projeto de assalto institucional, mas apenas o mais bem sucedido até a data de hoje, em nítida competição (que precisa ser um saudável exercício da democracia) com processos como o do Guaynem e Ganemos em Barcelona, Madri, Zaragoza e em menor medida em La Coruña, Málaga, etc.
O junho brasileiro de 2013 explodiu como uma greve metropolitana contra o aumento das tarifas de transportes (chamada pelo Movimento Passe Livre – MPL) e se tornou o maior levante da história do Brasil, generalizando-se a todo o País e a todas as pautas de democratização, apara além do regime pós-ditadura cristalizado na “Constituição de 1988”: por um lado, ele foi fazendo convergir numa revolta geral o sem numero de lutas de resistência contra o modelo de cidade legada pela hibridização entre o neo-desenvolvimentismo e a construção da “cidade global”; pelo outro, ele desdobrou-se pela multiplicação das acampadas diretamente dentro dos parlamentos: as tentativas de ocupação do Congresso em Brasília se reproduziram depois com as ocupações de pelo menos 12 Câmaras de Vereadores ou Assembleias Legislativas (em Porto Alegre, Belo Horizonte, Campinas, Rio de Janeiro ...). A forma da greve metropolitana virou referência de um sem numero de movimentos autônomos de greve: no Rio de Janeiro, com os professores que em outubro do mesmo ano voltaram a ocupar a Câmara desafiando a violência policial em 3 dias de enfrentamentos campais e com a luta vitoriosa dos Garis em fevereiro de 2014. Essas greves indicaram o terreno da constituição de coalizões sociais. Mas junho de 2013 foi descontruído: a resistência à violência policial que inicialmente massificou o levante virou o terreno de uma repressão feroz que paralisou as mobilizações dos pobres; em seguida, o marketing bilionário do governismo (do PT em particular) conseguiu – apos destruir a possibilidade de um “lulismo sem Lula” (com Marina Silva) e mentindo descaradamente, polarizar e mistificar o pleito eleitoral de outubro de 2014. A irresponsabilidade de uma política totalmente corrupta foi tão grande que acabou puxando a mobilização de uma direita que tinha ficado completamente paralisada e hoje está nas ruas atravessando a justa indignação popular.
3. O que Podemos entre Espanha e Brasil?
Na Espanha, o 15M foi uma mobilização geral contra toda a “representação” monopolizada pelo sistema dos partidos nascido com o regime constitucional pós-franquista de 1978, incapaz de bloquear e sequer frear o processo de destruição do sistema de proteção social. No Brasil, junho de 2013 foi um levante metropolitano contra uma “representação” que se tornou um obstáculo a implementação de um verdadeiro welfare. No norte, o trabalho está se tornando precário e pobre, passando por uma brasilianização. No sul, o pobre está sendo posto a trabalhar de maneira precária, passando por uma “europeanização” que na realidade é uma brasilianização: não mais por causa do atraso e do subdesenvolvimento, mas da modernização e da globalização. No 15M houve a recusa da austeridade neoliberal, mas também a afirmação da potência nova do devir-pobre do trabalho em produzir uma nova geração de direitos, de produzir uma outra cidade. Em junho de 2013, o trabalho dos pobres reivindicou um novo tipo de direitos, antecipou a crise da aventura neoliberal no terreno da transformação dos valores. O devir-pobre do trabalho, trocando de ponto de vista com o devir-trabalho dos pobres, indica um devir-Brasil (um devir-Sul) da multidão do trabalho na Espanha e um devir-Espanha (um devir-Norte) da multidão dos pobres no Brasil. Os levantes plebeus do 15 de maio de 2011 e de junho de 2013 duraram no fazer-se das multidões na Espanha como no Brasil.
A autonomia das lutas afirmou-se inicialmente como base de uma crítica sistemática da representação e da autonomia do político que visa desarticular as dimensões produtivas das lutas no terreno da composição orgânica do Estado, dos partidos e das corporações. Contudo, as multidões espanholas e brasileiras hoje precisam lidar com o desafio de saber o que podem para que sua potência se afirme como brecha democrática, como “democracia real agora”. Como atravessar a representação sem deixar que a autonomia constituinte do movimento seja reduzida novamente em autonomia do político?
Uma das especificidades de Podemos na Espanha é de fazer referência explicita, além do 15M, ao virtuosismo dos “governos progressistas” da América do Sul. Por um lado, ele se desmarca de experiências eleitorais parecida por sua combinação entre potência do ciberativismo e em particular da politização das redes sociais e uma hiper-liderança promovida pelo uso da mídia tradicional - como o italiano Movimento 5 Stelle-; pelo outro, é mesmo nessa ida y vuelta para o Sul que pode se transformar numa tremenda armadilha. O ciclo dos governos chamados de “progressistas” acabou e, pior, não deixa transparecer nenhum “virtuosismo”, sequer residual ou inercial. O chavismo, tornando-se um socialismo do século XXI já reproduziu em menos tempo todas as mazelas do capitalismo de Estado e sobrevive hoje como um regime falido, apoiado apenas na capacidade repressiva do Exercito e mais em geral do Estado. Não se trata apenas da Venezuela agonizante. A Argentina também chega extenuada ao fim do kirchnerismo, o regime tendo que apoiar um candidato oriundo do “menemismo”. No Equador também há sinais de esgotamento diante de amplas manifestações sociais, em particular dos indígenas. Em todos os casos, e isso inclui também a Bolívia de Evo, as experimentações democráticas deixaram de existir e é uma visão estatal e centralizadora que vigora: o luto do socialismo e do autoritarismo estatal ainda não foi feito. A crítica do mercado e dos mecanismos da democracia representativa serve apenas para mistificar práticas de exploração do trabalho e, ainda pior, práticas arcaicas!
Mas é no caso do Brasil, no País que é o baricentro geoeconômico do subcontinente e o fiador que estabilizava o conjunto do ciclo que o esgotamento se apresenta da maneira mais radical e devastadora. A crise brasileira estourou definitivamente no momento em que vários observadores internacionais pensavam enxergar sua vitalidade: nas eleições de outubro de 2014. Da complexidade da situação brasileira, interessa extrair três grandes traços: (1) em primeiro lugar sua dimensão subjetiva, (2) em segundo lugar, o determinante objetivo e, enfim, (3) o desdobramento político-teórico.
(1) No plano subjetivo do evento, diferentemente dos outros países da América do Sul, o movimento de junho de 2013 antecipou a crise objetiva (econômica e política) abrindo uma gigantesca brecha para uma virada em termos de radicalização democrática. Diante disso, o Lulismo (desde o governo, passando pelo PT e o próprio Lula) mobilizou todos os recursos que o poder político e econômico lhe dava para fechar a brecha ao longo de três linhas de intervenção: a desqualificação do levante identificado como um todo a um regurgito “fascista”; a vergonhosa promoção de algumas redes de jovens patrocinados pelo próprio PT como sendo “o” movimento; o planejamento e coordenação federal de um fortíssimo esquema de repressão aplicado em todos os níveis federais. Além disso, o governismo usou sua potentíssima máquina de marketing para fazer a propaganda de uma suposta “onda conservadora” na sociedade e de uma “campanha de ódio” nas redes sociais. O PT e o “lulismo” usaram todo seu poder (estatal) para fechar a brecha democrática muito simplesmente porque eles não cabiam nela. Com efeito, a “brecha” se caracterizava por permitir dois deslocamentos virtuosos: o primeiro era imanente à própria dinâmica do levante como possibilidade para os pobres de poder lutar sem serem mortos e foi exatamente isso que se expressou na vitoriosa campanha pelo Amarildo – o pedreiro torturado, assassinado e desparecido pela polícia pacificadora da favela da Rocinha no Rio de Janeiro-; o segundo dizia respeito à recusa do dispositivo binário que regia toda a comunicação do Lulismo e que consistia em alimentar uma luta “ideológica” (o PT contra a elite branca) tanto violenta quanto vazia e totalmente falsa, pois governam pelas grandes empreiteiras, os bancos e quando falam de redução da desigualdade a pensam como emergência de uma “nova classe média”. Junho de 2013 era insuportável para o PT e Lula porque impedia de continuar surfando cinicamente nos atrasos brasileiros para justificar sua corrupção política e moral, ou seja o fato de governar pelo e com os ricos.
(2) O determinante objetivo tem duas dimensões, embutidas uma na outra: a crise no Brasil não chega – como na Europa – pelo fato de o governo ter se recusado de fazer políticas anticíclicas, mas porque as fez; em seguida, diferentemente dos outros países da América do Sul, o governo Lula-Dilma – uma vez reeleito - inverteu de 180 graus suas prioridades e passou a aplicar uma dura política econômica de austeridade. Independentemente do que isso significa do ponto de vista do estelionato eleitoral, o fato é que o Brasil se encontra hoje mergulhado numa grave crise econômica, governada por um violentíssimo dispositivo de cortes orçamentários, cortes de direitos trabalhista, aumentos das taxas de juros e ao mesmo tempo aumentos generalizados das tarifas administradas (dos serviços públicos: particularmente de transportes, gasolina e eletricidade). Ou seja, os pobres no Brasil terão que aguentar um longo período de recessão com alta inflação: o governo Dilma está realizando um verdadeiro confisco da renda dos trabalhadores e das camadas intermediarias do empresariado.
O longo período dos governos Lula-Dilma pode ser dividido um duas fases. Entre 2003 e 2008, o PT seguiu à risca as receitas neoliberais mas se deixou atravessar por pequenas inovações que constituíram algumas pequenas brechas. Tudo isso se resume a 3 dimensões: a massificação das políticas neoliberais de distribuição de renda (o Bolsa Família); as políticas de acesso (em particular no ensino superior com Prouni, Reuni e Cotas raciais); a valorização do salario mínimo que, além de melhorar o nível de renda dos trabalhadores pobres permitiu um upgrade geral de um sistema de proteção social.
A partir de 2009, depois da grande crise financeira, o governo Lula-Dilma passou a políticas de aceleração do crescimento teoricamente inspiradas no velho nacional-desenvolvimentismo e de fato planejadas e implementadas a partir da tradução em termos de política econômica do jogo eleitoral, ou seja da corrupção sistémica da qual o PT passou a ser não apenas “mais um” dos atores, mas “o” principal articulador. Assim, ao passo que a pequena redução da desigualdade produzida na primeira fase era processada como emergência de uma “nova classe média” destinada a ser – no plano subjetivo - a base do novo consenso e ao mesmo tempo – no plano objetivo – a destinatária de políticas de reindustrialização, de megaobras e megaeventos e construção de um Brasil Maior. Foi um festival de subsídios públicos aos global players: desde as grandes montadoras multinacionais até as grandes empreiteiras, passando pelo grande agronegócio.
Tudo isso alimentado pelo total envolvimento da Petrobras na exploração “nacional” das jazidas de petróleo em águas muito profundas (o pré-sal), pelas grandes obras (oriundas dos projetos megalomaníacos da ditadura) como as megabarragens hidrelétricas na Amazónia, o submarino e as centrais nucleares, os megaeventos (Copa da FIFA e Olimpíadas como paradigmas). Não houve nenhuma reindustrialização e os investimentos nas megaobras e megaeventos apenas saturaram as metrópoles de todo o país e a “conta” chegou antes do Brasil se tornar Maior e a tal da “nova classe média” já foi para o espaço.
(3) Temos aqui uma implicação teórica importante sobre a razão dessa convergência do Brasil Maior neo-desenvolvimentista para as mesmíssima e até mais violentas políticas de austeridade. O que caracteriza os “limites” dos governos progressistas da América Latina não são os compromissos com o “extrativismo”. Claro, o extrativismo é uma das características fundamentais do capitalismo em todo o subcontinente e é com esses interesses “velhos” que os governos que eram “novos” tiveram que negociar e se aliar. Mas não é isso que define a especificidade das tentativas de políticas econômicas. Pelo contrário, o esgotamento dos novos governos e a crise vieram por como eles tentaram sair do extrativismo. No caso brasileiro isso aparece claramente: ao invés de apostar na radicalização democrática e nos processos, o PT e o Lula só acreditam – como a própria escolha da figura da Dilma explicita – no Estado e no Grande Capital (os Global Players). Com isso, não houve nenhuma ruptura do extrativismo e nenhuma aceleração da mudança, mas apenas um aprofundamento da inserção nas dimensões mafiosas do capitalismo contemporâneo e de suas formas de controle do território e do Estado. As jazidas de acumulação do capitalismo cognitivo no Brasil estão nas metrópoles e dizem respeito à mobilização dos pobres como pobres: um trabalho do pobre que não passa mais, previamente, pela relação salarial. Longe de pensar em reconhecer – pela radicalização democrática – a potência produtiva de novos valores, o PT de Lula e Dilma apenas se juntaram às velhas e novas máfias pelas quais o capitalismo cognitivo captura a excedência produzida nos territórios. A máfia neodesenvolvimentista (das grandes empreiteiras de obras públicas) foi se juntando à máfia oligárquica do agronegócio e às difusas que controlam os territórios produtivos das metrópoles, numa orgia improdutiva que só fez disparar a inflação, aprofundar as desigualdades e segregações urbanas.
4 – Coalizões Sociais e Municipalismos Constituintes
A grande vitória de junho de 2013 está nas lutas e nas práticas de coalizões sociais que no Brasil olham para o Municipalismo Constituinte que se expressou com os êxitos eleitorais do 24M na Espanha.
As coalizões sociais já estão num devir-municipalista ao passo que os jovens governos municipais precisam continuar atravessados pelos agenciamentos das coalizões sociais. Os Ganemos nasceram como oportunidades de ensaiar nas eleições municipais o assalto institucional proposto por Podemos, mas também como inflexão significativa, para além de Podemos. O processo de construção de Podemos, com a Assembleia Constituinte de Vista Alegre (em novembro de 2014), tem cobrado um preço demasiadamente alto porque limita a polifonia e um estilo de fazer política que pressupõe uma cooperação de tipo distribuído. Em cidades como Barcelona, Madri ou Zaragoza o “efeito Podemos” tem se composto desde o inicio por iniciativas cidadãs que funcionam como pontos de atração e bifurcação do sistema-rede criado no 15M. O municipalismo, como o caso de Ahora Madrid demonstra, soma mais que Podemos: sem a tesão de Municipalia antes e logo depois de Ganemos Madrid, a vitória teria sido impossível, pois a radicalidade democrática que é o “código 15M” teria ficado dominado por relações de forças entre entidades fechadas e encasteladas.
No Rio de Janeiro, é o ponto de vista da luta dos Garis do Rio de Janeiro que nos introduz diretamente no contexto desse devir. A luta dos garis estourou em fevereiro de 2014 e foi talvez a maior vitória do movimento de junho. Os garis se inspiraram diretamente nas dinâmicas autônomas e horizontais de junho e suas reivindicações reverberaram com potência nas redes e nas ruas. A luta foi rápida e vitoriosa (com um aumento salarial de 37%) e contou com um amplo apoio social, se tornando a referência de todo o ativismo. Mas, ao passo que o ativismo foi extenuando-se numa espiral sem fim de atos e repressão, os garis se embrenharam no êxodo para fora da escravidão de suas condições de trabalho e em fevereiro de 2015 se apresentaram de novo para a luta salarial (que conseguiu arrancar 8% de aumento já no momento da política de austeridade) e apresentar uma chapa independente contra o sindicato mafioso. A reposta da Prefeitura do Rio (ou seja do PT e do PMDB) se faz ao longo de dois eixos complementares: por um lado, uma repressão feroz; pelo outro, automação e terceirização. Do lado da repressão, são centenas de demissões, incluídos os membros da chapa autônoma que disputava a direção do sindicato mafioso, mais de 30 garis sob inquérito policial por “organização criminosa” e várias ameaças de todos os tipos. Do lado da automação, o Município do Rio passou a implementar conteiners de coleta do lixo que permitem aos caminhões de operar automaticamente (sem os garis pendurados atrás tendo que correr feito loucos para manter as metas de produção) e a terceirizar o trabalho dos motoristas bem como gestão do próprios caminhões. Ou seja, a luta dos garis já conseguiu – em pouco menos de um ano – determinar aquele processo de inovação que a condição neo-escravagista na qual eram mantidos permitia de adiar. Ao mesmo tempo, com todas as dificuldade que isso pode implicar, a prática dos garis, com os círculos de cidadania, o trabalho nas favelas, as conexões com as outras tentativas de construção de um “sindicalismo social”, colocam os Garis na posição de aprofundar suas lutas diretamente no terreno de saber quem é que tirará proveito dessa modernização que eles mesmos determinaram: o capital e suas máfias ou os garis como agentes ambientais de uma nova cidadania? A “coalizão social” aparece aqui não apenas como o terreno necessário e urgente para que a luta autônoma tenha condições de entrar no terreno constituinte, da gestão da empresa de limpeza urbana, da questão do ambiente e da saúde nas comunidades e favelas. A luta é metropolitana e implica a construção de coalizões de trabalhadores e moradores para que a modernização da coleta se traduza em melhoria das condições de trabalho de garis que poderão, além de manter o emprego, ser agentes de proteção ambiental nos territórios onde isso é mais urgente. O Comum já é o terreno de luta autônoma dos garis que, não por acaso, se constituíram num Circulo de Cidadania, o Circulo Laranja.
No caso da Espanha, o êxito nas próximas eleições gerais das confluências baseadas na transversalidade e na radicalidade democrática, seguindo o exemplo de Ahora Madrid, Barcelona en Comù, Zaragoza en Comù etc., significaria a mudança histórica do sistema rede 15M em um sistema de ordem superior, capaz de integrar o sistema político e representativo. Essa seria uma ruptura constituinte, algo que é, em todos os casos, a chave da situação diante da qual toda “autonomia do político” é um obstáculo para que a promessa do 15M se realize: Democracia Real Ya.
O desprezo pela relação entre singularidade e estrutura, entre dinâmicas nacionais e contextos continentais ou entre exceção e ciclo poderia nos levar a privilegiar de maneira narcisista ou voluntarista as experiência mais fortes ou mais próximas, ou pensar em uma estratégia de proliferação linear. Se a situação brasileira constitui uma perspectiva sobre a transição de fase que vive todo o continente sul-americano, o caso espanhol é inseparável da decomposição-mutação do subsistema europeu centrado na União Europeia (UE) como consequência das políticas de austeridade e das opções políticas e geoestratégicas subjacentes. A “germanofobia” não constitui uma chave séria de esclarecimento do enigma democrático europeu. Com efeito, lógica supostamente internacionalista dos opositores de esquerda ao projeto da UE não foge da ontologia das nações como chave de existência política do capital e também de seu contrário: o povo-nação-soberano submetido a um direito político estrangeiro. Aqui, a narrativa nacional-popular se mostra, tanto na Europa quanto na América Latina, como uma gigantesca armadilha. A obsessão pela soberania nacional apenas nos lembra o das andere Mal als Farce de Marx: os subsídios do governo do PT à multinacionais automotivas são emblemáticos: quanto mais o discurso é neo-soberanista, quanto mais a política real amplifica toda forma de dependência.
As lutas são tão globais quanto os processos de acumulação e precisam de espaços adequados: como a União Europeia ou o Mercosul: na Europa, se trata de conectar a defesa do sistema de proteção social com as lutas dos subalternos e dos imigrantes e apátridas; na América do Sul, a conquista de um sistema de proteção social já precisa – desde o início – inventar uma nova esfera, juntando as lutas dos indígenas com o êxodo dos refugiados, passando pelas multidões dos pobres que vivem e produzem as metrópoles.
Na Europa e na América Latina, a esquerda nos mostras que é incapaz de pensar além do Estado: seja ele socialista ou neokeynesiano no regime discursivo, ele apenas serve para conter as lutas no regime de fato. Entre os dois continentes, a urgência é sair dessa dupla armadilha, ir para o êxodo da invenção de novas institucionalidades.
O sistema mundo está se autodestruindo. Nesta situação, somente o terreno europeu e o terreno sul-americano permitem de continuar a luta por democracia real. A oposição entre guerra e democracia se coloca como principal antagonismo no sistema mundial. A UE está hoje rodeada de zonas de guerra. Na América do Sul, a guerra está dentro das fronteiras, no coração das grandes metrópoles. Nas fronteiras da UE, a guerra é contra os migrantes e os refugiados, tratados como animais desembestados e perigosos. Nas metrópoles e nas florestas sul-americanas a guerra é contra os pobres e contra os índios, mas também contra os refugiados e os imigrantes.
Deve haver um modo de nomear o inimigo e o adversário sem convoca-lo e realiza-lo como em uma profecia auto-confirmada. Deve haver um partido dos sem-partido. Nem o suposto realismo decisionista do populismo, nem as dialéticas negativas ou progressistas que acompanham a esquerda contem alguma chave para evitar a catástrofe do sistema mundial. É preciso passar do (inter)nacionalismo à democracia real dos subalternos, do resistencialismo cínico ao poder constituinte, da comunidade à constituição do comum. Temos que ser prudentes, mas poderosamente altermodernos e não-modernos.
Nota:
[1] Elas fugiram na floresta Lacandona, nas ruas de Seattle e Genova, gritando Que se Vayan Todos nas ruas de Buenos Aires, acampando na Praça Tahrir e na Puerta del Sol, defendendo a vida em Gezi Park e levantando-se contra as tarifas de transportes, megaeventos e mega-obras nas florestas e nas metrópoles brasileiras.
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Cantes de ida y vuelta: entre primavera e outono. Reflexões entre o 15M na Espanha e junho de 2013 no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU