27 Julho 2015
A antiga "ciência da administração doméstica" (Xenofonte) se ampliou do clã para toda a sociedade organizada e se ocupa agora não só do cuidado do patrimônio privado familiar, mas prescreve normas de gestão para a utilização de recursos materiais e imateriais inteiros, à disposição da humanidade. Tudo, em suma, é economia. Por isso, é inevitável que a economia reivindique ser coroada como a rainha das ciências sociais.
A análise é do deputado italiano Paolo Cacciari, do partido Rifondazione Comunista, em artigo publicado no jornal Il Manifesto, 22-07-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Há um quesito ao qual só os filósofos podem responder: o que é a economia? O seu campo normativo se expandiu tanto na história da humanidade (entendida como domínio patriarcal sobre todos os outros seres vivos) que parece universal, atemporal, absoluto.
A antiga "ciência da administração doméstica" (Xenofonte) se ampliou do clã para toda a sociedade organizada e se ocupa agora não só do cuidado do patrimônio privado familiar, mas prescreve normas de gestão para a utilização de recursos materiais e imateriais inteiros, à disposição da humanidade.
Tudo, em suma, é economia. Por isso, é inevitável que a economia reivindique ser coroada como a rainha das ciências sociais.
Essa hegemonia disciplinar, cultural e política foi se afirmando no tempo e, como se sabe, encontra no século das Luzes (François Quesnay, Adam Smith e muitos outros) os seus teóricos. A economia se desmarca da teologia, da filosofia e até mesmo das ciências naturais, conquistando um estatuto autônomo, objetivo, free etics, exatamente como a física de Newton e de Descartes: o dinheiro é atraído pelo lucro – nos ensinam – como a maçã pela força da gravidade.
Enquanto isso, porém, a física evoluiu com as teorias sobre a relatividade e dos quanta. A economia não. Nem mesmo diante das mais pungentes provas de fracasso, deixam-se de repetir as costumeiras idiotices: a ampliação do comércio leva à paz universal, a inovação tecnológica resolve todos os problemas de escassez, a maré levanta todos os barcos no porto, e assim por diante.
A pergunta certa, então, é por que a economia continua tendo ainda tanta credibilidade a ponto de ser a única língua falada na sociedade? O que nos mantém presos em uma condição de escravidão econômica voluntária, quando poderíamos trabalhar três horas por dia e saciar 12 bilhões de pessoas? É possível encontrar formas, modalidades, práticas de produção e de utilização dos bens e dos serviços sejam verdadeiramente úteis para o bem viver de todos e não só para uma minúscula oligarquia?
Roberto Mancini, professor de filosofia teórica, de cultura cristã, engajado no movimento da economia social e solidária, tentou nos dar algumas respostas com um poderoso estudo histórico analítico e propositivo: Trasformare l’economia. Fonti culturali, modelli alternativi, prospettive politiche [Transformar a economia. Fontes culturais, modelos alternativos, perspectivas políticas] (Ed. Franco Angeli, 330 páginas).
A economia política capitalista é criminosa. Mutua os próprios comportamentos da guerra de conquista. "A concorrência implica, por definição, a negação do outro." Como diz Bergoglio: "Esta economia mata". No fundo, o capitalismo premia uma visão antropológica que nos foi deixada por Maquiavel e Hobbes. Os homens seriam indivíduos malvados, ávidos, não confiáveis. Desprovidos de consciência moral e de capacidade de amar.
"O capitalismo é uma ideia equivocada, fundamentada em sentimentos obscuros e aspirações distorcidas." Mudar a economia, então, implica uma transformação que a transcenda. É preciso, pelo menos, uma finalização diferente dos propósitos da cooperação social, direcionando-os ao bem comum. É preciso uma diversificação dos processos, levando em conta as características dos inputs que têm valor em si mesmos: serviços ecossistêmicos, trabalho humano.
É preciso redimensionar o papel dos instrumentos operativos da economia, começando pelo dinheiro. É preciso reconfigurar as modalidades operativas com que se defrontam os atores sociais: produtores e consumidores, proprietários e desprovidos, habitantes e refugiados, mulheres e novas gerações... É o próprio conceito de economia que deve ser transformado. Começando pela ativação de novas práticas.
Depois de ter tratado das mais importantes tradições de pensamento e das fontes espirituais que influenciaram o nosso modo de agir, a parte central do estudo de Mancini é dedicada a uma descrição muito útil de vários tipos de economias outras. A sua ideia é que elas podem e devem se integrar, dando origem a uma economia plural (como também defende a New Economics Foundation e o Weppertal Institut).
Na grande família da economia social e solidária, estão inseridas as experiências da economia popular de subsistência, da economia de resistência e de libertação (Euclides Mance), da economia local gandhiana, de comunidade (Adriano Olivetti), de comunhão (Chiara Lubich), civil e humana (Zamagni e Bruni), do bem comum (Christian Feldberg), participativa e deliberativa (Michael Albert, Peter Ulrich), colaborativa.
Na família da bioeconomia (Georgescu-Roegen, Martinez Alier) está a economia circular e a regenerativa (Marjone Kelly). Na família muito de modo e muito ambígua da sharing economy, está a economia do nós, da partilha. Por fim, existem as não economias do decrescimento (Latouche) e a commonomics, a economia dos commons (Raul Zibechi).
Em 1973, Herman Daly, Kenneth Boulding e outros escreveram um Manifesto para uma Economia Humana. Recentemente, foi publicado o Manifesto Convivialista, inspirado em Alain Caillé. As ideias não faltam, nem mesmo as boas práticas difundidas na galáxia dos movimentos nos tantos "Sul" do planeta, assim como no decadente Norte.
"As grandes reviravoltas são o resultado de mil reviravoltas cotidianas." O que está ausente é uma política capaz de levá-las a sério. Em suma: "Para transformar a economia é necessário, além de mudar a política, mudar a política de modo que ela se torne um instrumento coerente com a ética da dignidade humana e do bem comum e com os processos de democratização que ela exige".
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Economia: o domínio elevado a "ciência". Artigo de Paolo Cacciari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU