29 Junho 2015
O Cântico das Criaturas, de São Francisco de Assis, é um irrepreensível e cristalino tratado teológico. Erroneamente, ele foi interpretado como um texto "panteísta". Não há propriamente nada aqui de panteísta: cuida-se muito bem de fundir e de dissolver o cosmos e a natureza em Deus; e de fundir e dissolver Deus com eles.
A opinião é do historiador italiano Franco Cardini, professor do Istituto Italiano di Scienze Umane (Sum). O artigo foi publicado no jornal Avvenire, 18-06-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"Altissimu, onnipotente, bon Signore, Tue so’ le laude, la gloria, l’honore et onne benedictione, ad Te solo, Altissimo, se konfàno et nullu hono ène dignu Te mentovare."
É a mais bela composição poética de todo o mundo e de todos os tempos. A sua beleza é absoluta, cósmica, total, que penetra toda a criação e chega quase a tocar a inefabilidade de Deus. Nem mesmo o Salomão dos Cântico dos Cânticos, que também, em muitos aspectos, se assemelha e ao qual, sem dúvida, Francisco se inspirou, nem mesmo o Dante da Oração de São Bernardo a Maria ("Virgem Mãe, filha do teu Filho") chegaram tão alto e tão profundo.
Era 1224, e Francisco jazia doente em um leito da sua São Damião, a igrejinha em ruínas onde, cerca de 20 anos antes, ele tinha recebido do Cristo crucificado a mensagem que tinha mudado a sua vida e onde haviam se estabelecido Clara e as suas irmãs.
Os grandes intérpretes do Pobrezinho de Assis escreveram muito sobre ele, sobre os últimos anos da sua jornada terrena, sobre a sua relação com Clara e as outras, e daqueles poucos, inspirados, altíssimos versos. Sabemos tudo o que se pode saber.
Mas deixemos de lado toda essa ciência. Esforcemo-nos para imaginá-lo, aquele pobre homenzinho esmagrecido depois de uma noite de dor e de pena, entre os barulhos dos ratos debaixo do piso que não o deixaram dormir, quando o sol nascente do amanhecer fere os seus olhos doentes – é o tracoma pego cinco anos antes no Egito, na cruzada – e os faz lacrimejar.
Esforcemo-nos a ver o mundo – os pobres mobiliários daquela salinha, a luz incerta embora ofuscante – através daqueles olhos que talvez só conseguiam distinguir pouco mais do que sombras. E ele escreve ou, melhor, dita, porque não tem força para escrever. Não sabemos a quem. Ele escreve a jato palavras que sobem diretamente do coração: gostamos de acreditar que, desde aquele momento até quando, prestes a deixar esta terra, ele ditaria a quadra final sobre a Irmã Morte, da qual "nullo homo vivente po’ skappare", ele não mudou nada daquele perfeito canto de amor.
Derramaram-se rios de tinta e foram escritas bibliotecas inteiras sobre esses poucos versos. Na sua luminosa certeza, eles parecem ser inefáveis como Aquele em honra do Qual foram escritos. Ninguém pode se gloriar de tê-los decifrado seriamente até o fim. O Espírito sopra onde quer: e, naquela manhã, soprou sobre aquele pobre frade e sobre os seus olhos avermelhados que, finalmente, viram o Mistério do universo.
Aquelas palavras falam de Deus, da Sua Glória, da Sua infinita Majestade (Onipotente), da Sua caridade infinita (Bom Senhor), da Sua incomensurável distância em relação aos homens e também da força com que Ele sabe chegar a eles, e especialmente àqueles entre eles que sabem perdoar por amor a Ele, atravessando toda a criação, isto é, o universo: "Messer lo Frate Sole", imagem nobilíssima (significatione) de Deus, e a lua, e as estrelas, e depois os quatro elementos de que a matéria do mundo é constituída – o fogo, o ar, a água, a terra com as suas flores e os seus frutos.
Essa poesia, que muitos julgaram como ingênua – e, no fundo, com razão –, abraça o mistério da criação e da natureza com uma força e uma clareza que, depois dos poucos versículos do Gênesis, nenhum filósofo e nenhum poeta jamais conseguiram igualar.
O Cântico é um irrepreensível e cristalino tratado teológico. Erroneamente, ele foi interpretado como um texto "panteísta". Não há propriamente nada aqui de panteísta: cuida-se muito bem de fundir e de dissolver o cosmos e a natureza em Deus; e de fundir e dissolver Deus com eles.
O Cântico das Criaturas é o que é, justamente, por ser escrito em louvor ao Criador, e também nelas louva, e em louvor ao homem, que, dentre as criaturas, é a suma, a mais amada, a que foi feita "à Sua imagem e semelhança", mas que, mesmo assim, continua sendo criatura, irmã, portanto, de todas as outras.
Na filosofia cristã do século XII, houve uma grande tentação panteísta: era a neoplatônica, dos Mestres da escola de Chartres. Mas, a essa tentação, Francisco, que presumivelmente nunca havia lido ao menos diretamente nem mesmo uma linha dos Mestres – o que não descarta que ele tivesse ouvido falar deles –, nem mesmo por um instante, se sujeita. Deus continua sendo o Criador, amorosamente próximo, mas infinitamente superior a qualquer criatura.
Em contrapartida, havia outro perigo que ameaçava a Igreja daquele tempo: e Francisco, que, na segunda década do século, havia atravessado o sul da França, abalada pela "cruzada dos albigenses", devia ter isso bem presente.
Além disso, na sua Assis, ele provavelmente também tinha ouvido a pregação daqueles estranhos profetas pálidos e esmagrecidos, que anunciavam o Reino de Deus com as palavras do evangelista João e atacavam a Igreja rica, ávida e soberba. Mais tarde, alguns deles provavelmente o tinham atacado, chamando-lhe de hipócrita e de falso cristão.
Eles eram os adeptos da "Igreja" cátara, uma verdadeira anti-Igreja, que se apresentava sob as vestes da portadora do autêntico cristianismo, o das "origens", o pobre e puro, mas que, na realidade, para os seus seguidores, explicavam que Igreja os enganava porque era a Bíblia que os tinha enganado, que o verdadeiro Deus, o Senhor da Luz, era o puro Princípio Espiritual, e que as substâncias espirituais que dele emanavam corriam o risco continuamente de serem aprisionadas na matéria criada por outro Princípio obscuro e malvado, o Senhor das Trevas.
Luz contra Trevas, Dia contra Noite, calor do Bem contra frio congelante do Mal. Mas se as coisas fossem assim, se esse fosse o cosmos, então o criador de todas as coisas era ele, o Princípio malvado, o cruel Demiurgo. O Criador adorado por todos os filhos de Abraão era Satanás; a criação, isto é, a matéria, era o Mal absoluto; e quanto ao homem, espírito eleito, aprisionado em uma repugnante jaula de carne, só a morte poderia libertá-lo.
O paradoxo era que, há algumas décadas, essa enregelante filosofia mortífera havia fascinado talvez a melhor parte da cristandade: os grandes senhores e os belos cavaleiros daquela Provença, na qual o viver era tão doce e onde os trovadores cantavam de amor não menos do que os prósperos mercadores lombardos e toscanos, tinham se deixado conquistar por essa fé da Libertação através da Negação da Vida.
A Igreja, a soberba e poderosa Igreja do Papa Inocêncio III, respondera a esse ataque sem precedentes com uma furiosa cruzada e com os tribunais da Inquisição. Mas aquilo que nem uma nem os outros talvez jamais conseguiriam fazer para erradicar essa erva daninha disfarçada de flor de virtude (corruptio optimi pessima) os poucos e milagrosos versos da maior poesia já escrita no mundo souberam fazer.
Tudo, no fundo, portanto, está na simplicidade daquela preposição simples que atormentou filólogos, linguistas e historiadores: aquele "por" que volta iterante em cada verso do Cântico. O que ele significa? É um complemento de causa, como a explicação mais óbvia sugeriria (que Tu sejas louvado, ó Senhor, por ter criado...)?
Ou um complemento de agente, semelhante ao "par" francês e ao "por" castelhano (que Tu sejas louvado, ó Criador, por parte da corte de todas as criaturas, que, adorantes, Te circundam)?
Ou um complemento instrumental, semelhante ao "diá" grego (que Tu sejas louvado, ó Senhor, não só diretamente pelo homem, mas também através de todas as coisas por Ti criadas e que confirmam o Teu poder e o Teu amor)?
Paremos por aqui, porque os estudiosos acrescentaram muitas outras coisas. A exegese desses breves versos nunca vai acabar, assim como o mistério da criação e o de Deus.
O Papa Francisco quis dedicar a esse louvor infinito a Deus criador e à criação a sua nova encíclica Laudato si', para nos lembrar que o homem – exatamente segundo a letra e o espírito do Gênesis – não é o senhor do universo (Um só é o Senhor), mas que é o seu guardião, o Custódio; e que, no fim dos tempos, assim como cada um de nós deverá devolver a Deus a sua alma que lhe foi concedida imaculada e foi por ele várias vezes sujada e rasgada, costurada e limpada, assim também a humanidade deverá Lhe devolver a criação. Que foi concedida ao homem para gozá-la em toda a sua beleza e na variedade infinita das suas luzes, dos seus perfumes e dos seus sabores; mas que não lhe foi dada como um obsceno brinquedo a se violar e prostituir, como uma imunda mercadoria a se vender, se comprar e se especular.
A criação que pertence a todos os seres humanos e, especialmente, aos Últimos da Terra.
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Laudato si': assim nasceu a mais bela poesia do mundo. Artigo de Franco Cardini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU