Por: André | 26 Junho 2015
“Grande surpresa: elabora o tema dentro do novo paradigma ecológico, coisa que nenhum documento oficial da ONU fez até agora. Fundamenta seu discurso com os dados mais seguros das ciências da vida e da Terra. Lê os dados afetivamente (com inteligência sensível ou cordial), pois discerne que por trás deles se escondem dramas humanos e muito sofrimento também por parte da mãe Terra. A situação atual é grave, mas o Papa Francisco sempre encontra razões para a esperança e para confiar na capacidade do ser humano de encontrar soluções viáveis.”
A análise é de Leonardo Boff e publicada por Redes Cristianas, 23-06-2015. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Antes de fazer qualquer comentário, vale a pena ressaltar algumas singularidades da encíclica Laudato si’ do Papa Francisco. É a primeira vez que um Papa aborda o tema da ecologia no sentido de uma ecologia integral (portanto, que vai além da ambiental) de forma tão completa.
Grande surpresa: elabora o tema dentro do novo paradigma ecológico, coisa que nenhum documento oficial da ONU fez até agora. Fundamenta seu discurso com os dados mais seguros das ciências da vida e da Terra. Lê os dados afetivamente (com inteligência sensível ou cordial), pois discerne que por trás deles se escondem dramas humanos e muito sofrimento também por parte da mãe Terra. A situação atual é grave, mas o Papa Francisco sempre encontra razões para a esperança e para confiar na capacidade do ser humano de encontrar soluções viáveis.
Relaciona com os Papas que o precederam, João Paulo II e Bento XVI, citando-os com frequência. E algo absolutamente novo: seu texto inscreve-se na colegialidade, pois valoriza as contribuições de dezenas de conferências episcopais do mundo inteiro, desde a dos Estados Unidos à da Alemanha, do Brasil, da Patagônia-Comahue, do Paraguai.
Acolhe as contribuições de outros pensadores, como os católicos Pierre Teilhard de Chardin, Romano Guardini, Dante Alighieri, seu professor argentino Juan Carlos Scannone, o protestante Paul Ricouer e o muçulmano sufi Ali al-Khawwas. Os destinatários somos todos os seres humanos, pois todos somos habitantes da mesma casa comum (palavra muito usada pelo Papa) e sofremos as mesmas ameaças.
O Papa Francisco não escreve na qualidade de Mestre e Doutor da fé, mas como um Pastor zeloso que cuida da casa comum e de todos os seres, não apenas os seres humanos, que habitam nela.
Um elemento merece ser destacado, pois revela a “forma mentis” (a maneira de organizar o seu pensamento) do Papa Francisco. Este é tributário da experiência pastoral e teológica das Igrejas latino-americanas que, à luz dos documentos do episcopado latino-americano (CELAM) de Medellín (1968), de Puebla (1979) e de Aparecida (2007), fizeram sua opção pelos pobres contra a pobreza e a favor da libertação.
O texto e o tom da encíclica são típicos do Papa Francisco e da cultura ecológica que acumulou, mas me dou conta de que também muitas expressões e modos de falar remetem ao que vem sendo pensado e escrito principalmente na América Latina. Os temas da “casa comum”, da “mãe Terra”, do “grito da Terra e do grito dos pobres”, do “cuidado”, da “interdependência entre todos os seres”, dos “pobres e vulneráveis”, da “mudança de paradigma”, do “ser humano como Terra” que sente, pensa, ama e venera, da “ecologia integral”, entre outros, são recorrentes entre nós.
A estrutura da encíclica obedece ao ritual metodológico usado por nossas igrejas e pela reflexão teológica ligada à prática da libertação, agora assumida e consagrada pelo Papa: Ver, Julgar, Agir e Celebrar.
Começa revelando sua principal fonte de inspiração: São Francisco de Assis, a quem chama de “exemplo por excelência de cuidado e de uma ecologia integral, e que mostrou uma atenção especial pelos mais pobres e abandonados” (n. 10; 66).
E então começa com o Ver: “O que está acontecendo com a nossa casa” (n. 17-61). Afirma o Papa: “Basta olhar a realidade com sinceridade, para ver que há uma grande deterioração da nossa casa comum” (n. 61). Nesta parte incorpora os dados mais consistentes referentes às mudanças climáticas (n. 20-22), à questão da água (n. 27-31), à erosão da biodiversidade (n. 32-42), à deterioração da qualidade da vida humana e à degradação da vida social (n. 43-47), denuncia a alta taxa de desigualdade planetária, que afeta todos os âmbitos da vida (n. 48-52), sendo os pobres as principais vítimas (n. 48).
Nesta parte há uma frase que nos remete à reflexão feita na América Latina: “Mas, hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o grito da Terra como o grito dos pobres” (n. 49). Depois acrescenta: “os gemidos da irmã Terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo” (n. 53). Isto é absolutamente coerente, pois no começo disse que “nós somos Terra” (n. 2; cf. Gn 2,7), muito na linha do grande cantor e poeta indígena argentino Atahualpa Yupanqui: “o ser humano é Terra que caminha, que sente, que pensa e que ama”.
Condena a proposta de internacionalização da Amazônia que “somente serviria para os interesses econômicos das multinacionais” (n. 38). Faz uma afirmação de grande vigor ético: “é gravíssima desigualdade querer obter benefícios significativos, fazendo pagar o resto da humanidade, presente e futura, os altíssimos custos da degradação ambiental” (n. 36).
Com tristeza reconhece: “Nunca maltratamos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos” (n. 53). Diante desta ofensiva humana contra a mãe Terra, que muitos cientistas denunciaram como a inauguração de uma nova era geológica – o antropoceno –, lamenta a debilidade dos poderes deste mundo que, enganados, “pensam que tudo pode continuar como está” como desculpa para “manter seus vícios autodestrutivos” (n. 59) com “um compromisso que parece suicida” (n. 55).
Prudente, reconhece a diversidade de opiniões (n. 60-61) e que “não há um só caminho de solução” (n. 60). Acima de tudo, “o certo é que o atual sistema mundial é insustentável a partir de vários pontos de vista, porque deixamos de pensar nas finalidades da ação humana” (n. 61) e nos perdemos na construção de meios destinados à acumulação ilimitada à custa da injustiça ecológica (degradação dos ecossistemas) e da injustiça social (empobrecimento das populações). A humanidade simplesmente “frustrou as expectativas divinas” (n. 61).
O desafio urgente, então, consiste em “proteger a nossa casa comum” (n. 13); e para isso necessitamos, citando o Papa João Paulo II, “uma conversão ecológica global” (n. 5); “uma cultura do cuidado que impregne toda a sociedade” (n. 231).
Realizada a dimensão do Ver, impõe-se agora a dimensão do Julgar. O Julgar que é proposto em duas vertentes, uma científica e outra teológica.
Vejamos a científica. A encíclica dedica todo o terceiro capítulo à análise “da raiz humana da crise ecológica” (n. 101-136). Aqui o Papa se propõe analisar a tecnociência sem preconceitos, acolhendo o que trouxe de “coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano” (n. 103). Mas este não é o problema, mas o fato de que se tornou independente, submeteu a economia, a política e a natureza em vista da acumulação de bens materiais (cf. n. 109). A tecnociência parte de uma suposição equivocada que é a “disponibilidade infinita dos bens do planeta” (n. 106), quando sabemos que já tocamos os limites físicos da Terra e que grande parte dos bens e serviços não são renováveis. A tecnociência tornou-se tecnocracia, uma verdadeira ditadura com sua lógica férrea de domínio sobre tudo e sobre todos (n. 108).
A grande ilusão, hoje dominante, reside em crer que com a tecnociência se pode resolver todos os problemas ecológicos. Esta é uma ideia enganosa, porque “implica em isolar as coisas que estão interligadas” (n. 111). Na realidade, “tudo está interligado” (n. 117), “tudo está em relação” (n. 120), uma afirmação que perpassa todo o texto da encíclica como um refrão, pois é um conceito-chave do novo paradigma contemporâneo. O grande limite da tecnocracia está no fato de “fragmentar os saberes e perder o sentido da totalidade” (n. 110). O pior é “não reconhecer aos outros seres um valor próprio, até à reação de negar qualquer valor peculiar ao ser humano” (n. 118).
O valor intrínseco de cada ser, por minúsculo que seja, está destacado de maneira permanente na encíclica (n. 69), como o faz a Carta da Terra. Negando esse valor intrínseco estamos impedindo que “cada ser comunique sua mensagem e dê glória a Deus” (n. 33).
O maior desvio produzido pela tecnocracia é o antropocentrismo. Este supõe ilusoriamente que as coisas só têm valor na medida em que se ordenam para o uso humano, esquecendo que sua existência vale por si mesma (n. 33). Se é verdade que tudo está em relação, então, “todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe Terra” (n. 92). Como podemos pretender dominá-los e vê-los sob a ótica estreita da dominação?
Todas as “virtudes ecológicas” (n. 88) se perdem pela vontade de poder como dominação dos outros e da natureza. Vivemos uma angustiante “perda do sentido da vida e do desejo de viver juntos” (n. 110). Cita algumas vezes o teólogo ítalo-alemão Romano Guardini (1885-1968), um dos mais lidos em meados do século passado, que escreveu um livro crítico contra as pretensões da modernidade (n. 105, nota 83: Das Ende der Neuzeit, O fim da Idade Moderna, 1958).
A outra vertente do Julgar é de corte teológico. A encíclica reserva um bom espaço ao “Evangelho da Criação” (n. 62-100). Começa justificando a contribuição das religiões e do cristianismo, pois sendo a crise global, cada instância deve, com seu capital religioso, contribuir para o cuidado da Terra (n. 62). Não insiste nas doutrinas, mas na sabedoria presente nos diferentes caminhos espirituais. O cristianismo prefere falar de criação em vez de natureza, pois a “criação tem a ver com um projeto de amor de Deus” (n. 76). Cita, mais de uma vez, um belo texto do livro da Sabedoria (11, 24) onde aparece claro que “a criação pertence à ordem do amor” (n. 77) e que Deus é “o Senhor amante da vida” (Sb 11, 26).
O texto se abre a uma visão evolucionista do universo sem usar essa palavra. Faz um circunlóquio ao referir-se ao universo “composto por sistemas abertos que entram em comunhão uns com os outros” (n. 79). Utiliza os principais textos que ligam o Cristo encarnado e ressuscitado com o mundo e com todo o universo, tornando sagrada a matéria e toda a Terra (n. 83). E neste contexto cita Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955, n. 83, nota 53) como precursor desta visão cósmica.
O fato de que Deus-Trindade seja relação de divinas Pessoas tem como consequência que todas as coisas em relação sejam ressonâncias da Trindade divina (n. 240).
Citando o Patriarca Ecumênico da Igreja ortodoxa, Bartolomeu, “reconhece que os pecados contra a criação são pecados contra Deus” (n. 7). Por isso, a urgência de uma conversão ecológica coletiva que refaça a harmonia perdida.
A encíclica conclui esta parte acertadamente: “a análise mostrou a necessidade de uma mudança de rumo... devemos sair da espiral de autodestruição na qual estamos nos afundando” (n. 163). Não se trata de uma reforma, mas, citando a Carta da Terra, de buscar “um novo começo” (n. 207). A interdependência de todos com todos nos leva a pensar “em um único mundo, em um projeto comum” (n. 164).
Já que a realidade apresenta múltiplos aspectos, todos intimamente relacionados, o Papa Francisco propõe uma “ecologia integral”, que vai além da ecologia ambiental à qual estamos acostumados (n. 137). Ela cobre todos os campos, o ambiental, o econômico, o social, o cultural e também a vida cotidiana (n. 147-148). Nunca esquece os pobres que testemunham também sua forma de ecologia humana e social vivendo laços de pertença e de solidariedade de uns para com os outros (n. 149).
O terceiro passo metodológico é o Agir. Nesta parte, a encíclica se atém aos grandes temas da política internacional, nacional e local (n. 164-181). Destaca a interdependência do social e do educacional com o ecológico e contata lamentavelmente as dificuldades trazidas pelo predomínio da tecnocracia, dificultando as mudanças que refreiem a voracidade da acumulação e do consumo, e que podem inaugurar o novo (n. 141).
Retoma o tema da economia e da política que devem servir ao bem comum e para criar condições para uma plenitude humana possível (n. 189-198). Insiste novamente no diálogo entre a ciência e a religião, como vem sendo sugerido pelo grande biólogo Edward O. Wilson (cf. o livro A criação: como salvar a vida na Terra, 2008). Todas as religiões “devem buscar o cuidado da natureza e a defesa dos pobres” (n. 201).
Todavia, no processo de agir desafia a educação no sentido de criar uma “cidadania ecológica” (n. 211) e um novo estilo de vida, assentado sobre o cuidado, a compaixão, a sobriedade compartilhada, a aliança entre a humanidade e o ambiente, pois ambos estão umbilicalmente ligados, a corresponsabilidade por tudo o que existe e vive e por nosso destino comum (n. 203-208).
Finalmente, o momento de Celebrar. A celebração realiza-se em um contexto de “conversão ecológica” (n. 216) que implica uma “espiritualidade ecológica” (n. 216). Esta se deriva não tanto das doutrinas teológicas, mas das motivações que a fé suscita para cuidar da casa comum e “alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo” (n. 216). Tal vivência é sobretudo uma mística que mobiliza as pessoas a viver o equilíbrio ecológico, “o interior consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos e o espiritual com Deus” (n. 210). Aí aparece como verdadeiro que “o menos é mais” e que podemos ser felizes com pouco.
No sentido da celebração “o mundo é algo mais que um problema a ser resolvido; é um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor” (n. 12).
O espírito terno e fraterno de São Francisco de Assis atravessa todo o texto da encíclica Laudato si’. A situação atual não significa uma tragédia anunciada, mas um desafio para que cuidemos da casa comum e uns dos outros. Há, no texto, leveza, poesia e alegria no Espírito e indestrutível esperança em que se grande é a ameaça, maior ainda é a oportunidade de solução de nossos problemas ecológicos.
Termina poeticamente “Para além do sol”, com estas palavras: “Caminhemos cantando; que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da esperança” (n. 244).
Gostaria de terminar com as palavras finais da Carta da Terra que o próprio Papa cita (n. 207): “Que o nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar de uma nova reverência face à vida, pela firme resolução de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta em prol da justiça e da paz e pela jubilosa celebração da vida”.
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A Carta Magna da ecologia integral: grito da Terra-grito dos pobres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU