15 Junho 2015
"A refeição adquire um carácter sacro, como momento de comunhão mais profunda com o divino, cimentando as relações entre os presentes, que na base de suas crenças religiosas se reconhecem pertencentes a uma mesma comunidade", escreve Giannino Piana, professor de Ética Cristã na Universidade Livre de Urbino, e de Ética e Economia na Universidade de Turim, em artigo publicado pela revista Rocca n. 12, de 15-06-2015. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
A atenção à comida solicitada pela Expo de Milão é um importante estímulo para refletir sobre a riqueza dos seus significados, tanto no plano antropológico, como no teológico. Longe de poder ser reduzido a mera função material - de resposta a uma necessidade fisiológica ligada à sobrevivência – o alimento é uma realidade variada e complexa, em que convergem e se cruzam uma multiplicidade de significados e ressonâncias, seja de natureza física, seja espiritual.
Como qualquer ato autenticamente humano, alimentar-se não implica, de fato, apenas no envolvimento do corpo, mas na participação de toda a pessoa. Pode-se, eventualmente, aplicar à alimentação uma famosa afirmação de Inácio de Loyola, nos Exercícios Espirituais (portanto, em um contexto completamente diferente): "Não é o quanto se sabe que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e o saborear as coisas interna e intensamente". Também o comer precisa, para ser "sentido" e "degustado" - não é significativo na lectio bíblica se fala da ruminação da Palavra? – de um processo de internalização que permite perceber a força e a intensidade das vibrações.
A relação com a natureza
Um primeiro significado peculiar é constituído pela relação que se estabelece com a natureza por meio do alimento. A transformação em alimento dos recursos vindos da natureza, torna o homem participante da sua realidade, dando início a uma troca recíproca, a uma verdadeira simbiose - o que é consumido torna-se parte de nós mesmos – fruto da transformação da realidade como prolongamento da obra criacional. Os elementos retirados da natureza são tratados pelo homem, que põe em ato uma cadeia, com a colaboração de mais pessoas, empenhadas em contribuir na preparação daquilo que garantirá para a humanidade o seu alimento.
Daí a importância de saber o que se escolhe para comer, e inquirir sobre o lugar de origem, modos de produção das matérias-primas e sobre o processo pelo qual é elaborado. Daí também a importância de distinguir os produtos pela sua bondade e qualidade, preferir os frescos que vêm de seu próprio território, redescobrir aromas e ingredientes das tradições locais e, finalmente, reavaliar os sabores, reconhecendo a diferença entre o que é genuíno e o que não é. O segredo da agricultura biológica, para além das evidentes vantagens para a saúde, encontra-se precisamente nesta sua naturalidade; a possibilidade de estabelecer um contato direto com a natureza, não mediada por produtos alterados com a introdução de fatores externos (e, portanto, estranhos) àquilo que sai diretamente da terra.
O comer como um ato social
Mas comer é acima de tudo – e este é o significado antropologicamente mais importante - um ato relacional e social. Em tal ato, a pessoa, que é ao mesmo tempo indivíduo e ser ‘de’ e ‘em’ relação, é envolvida em sua totalidade: corpo e espírito, individualidade e sociabilidade, tempo e espaço. Por estas razões o comer assume caráter de ato cultural, no qual se manifesta o modo de pensar e sentir próprio de uma civilização. Colocou-o bem em evidência Gino Girolomoni, que escreveu a este respeito: "Comer não é só plantar, colher, transformar e cozinhar alimentos. Comer é dom, espiritualidade, amizade, fraternidade, beleza, calor, cor, sabedoria, simplicidade, companhia” (Maccheroni, acqua e farina. Milão: Jaca Book, 2007, p. 15).
As numerosas e consistentes variedades de banquetes nas várias tradições dos povos, revelam diferentes abordagens da realidade (e mais radicalmente da busca e elaboração do sentido) de cada uma delas, colore de forma diferente os valores assinalados, formando, com tudo isso, a riqueza de significados do ato de comer. Não representa, talvez, o banquete, em todas as culturas, o lugar privilegiado da comunhão entre as pessoas? Em torno dele nos reunimos para cimentar as relações interpessoais, enquanto tudo o que é posto sobre a mesa não pode ser considerado propriedade de ninguém, mas deve ser compartilhado por todos.
Esta é a razão por que uma atenção especial deve ser dada não só para a bondade do alimento, sua autenticidade, mas também o cuidado e beleza com que é apresentado: a bondade e a beleza são, na verdade, ingredientes que criam um clima propício à comunicação, ajudam a tornar agradável o ficar juntos. Cozinhar pode, então, ser considerada uma arte, cujo valor espiritual vai muito além do simples ato físico.
No coração do simbolismo religioso
Muitas tradições religiosas, sobretudo as mais antigas, atribuem papel de primária importância para a refeição. O sacrifício de animais, oferecido para agradecer ou apaziguar os deuses, muitas vezes, era acompanhado pela celebração de banquetes rituais, em que se consumiam as carnes das vítimas, com intento de perseguir uma união especial com a divindade. A refeição adquire, neste caso, um carácter sacro, como momento de comunhão mais profunda com o divino, cimentando as relações entre os presentes, que na base de suas crenças religiosas se reconhecem pertencentes a uma mesma comunidade.
A tradição bíblica não faz exceção a esta regra. O relato mais antigo da celebração da Aliança do Sinai (tradição javista: Ex 24,1-2;9-11) termina com a descrição de uma refeição sagrada ("comeram" e "beberam"); já a versão sucessiva (tradição sacerdotal: Ex 24,3-8) destaca o valor do sacrifício com o qual a aliança é finalmente sancionada, e o significado simbólico do ato litúrgico que o acompanha, constituído pela proclamação da Palavra - a leitura solene dos Tábuas da Lei, as cláusulas do pacto, a que o povo dá o assentimento – e o ritual de sangue, com que são aspergidos o altar, sinal da presença de Deus, e o povo a ele consagrado, deixando transparente a relação de comunhão íntima que se estabelece entre eles.
A ceia Eucaristia como culminância
A centralidade do banquete, como parte da experiência religiosa, encontra, finalmente, para os cristãos, a mais alta expressão na instituição da Eucaristia. Ela está ligada, por um lado, à Última Ceia, que coloca o significado novo inaugurado por Cristo em relação estreita com a Páscoa judaica - memória da libertação do Egito e entrada na terra prometida - e, por outro, à paixão e morte do Filho de Deus, sacrifício único definitivo da Nova Aliança. A memória destes eventos é entregue à comunidade cristã ("fazei isto em memória de mim"), para que os repita, atualizando-os no tempo, até a celebração do banquete celeste, quando será consumado o casamento místico do Esposo com a esposa (humanidade).
O fato de que o Deus cristão se torna presente na história humana na forma de uma refeição - a Eucaristia é o ápice da ação sacramental da Igreja - é carregado de significado. O banquete - como já disse – lugar ideal da comunicação e da comunhão, torna-se, neste caso, expressão tangível da instauração da dupla relação com Deus e com os irmãos. O mandamento do amor a Deus e ao próximo encontra nele sua total aplicação: Eucaristia e ágape, intimamente ligados, constituem uma única realidade, a tal ponto que, para significar a presença da comunhão recíproca, as comunidades cristãs trocavam-se entre si a Eucaristia.
Deve-se acrescentar que também a natureza está envolvida nesta experiência de comunhão. O pão e o vinho colocados sobre a mesa, frutos da bondade de Deus e do trabalho humano, são elementos materiais, que se transformarão no corpo e no sangue do Senhor, manifestando algo ocorrido no interior da inteira realidade do mundo, destinada a tornar-se "novos céus" e "nova terra", e são, como tal, oferecidos para cada homem para que, participando do único pão e do único cálice, torne-se membro vivo da única família, a família dos filhos de Deus.
O significado espiritual do banquete atinge assim sua plena verdade. Trata-se de um ato altamente espiritual; ou melhor, do ato espiritual por excelência, pois testemunha a profunda unidade presente na raiz do ser humano, uma fraternidade universal, já inscrita na natureza, que recebe da Ceia do Senhor sua suprema confirmação.
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Significado humano e religioso do alimento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU