11 Mai 2015
Domingo, ao acordar, dona Darci não se sentiu bem. Seu corpo estava mole como geleia. Os olhos, fundos. A temperatura corporal era alta, quase a ponto de borbulhar. Tremia. Sentia dor em cada fio de cabelo. Estava fraca até mesmo para comer. Jamais tinha sentido um mal-estar semelhante. Debilitada, optou por um analgésico e se embrulhou na cama. Rogava para que aquele domingo preguiçoso passasse logo – e que aquela dor estranha fosse junto.
A reportagem é de Leonardo Pujol, publicada originalmente por Jornalismo Ambiental e reproduzida por rtal Envolverde, 07-05-2015.
Na manhã seguinte, a empregada doméstica de 42 anos percorreu, indisposta, as poucas quadras que separam a sua casa de um dos dois postos de saúde do pequeno município de Caibaté, distantes 476 quilômetros a noroeste de Porto Alegre. “A doutora disse que eu tinha pegado um gripão”, exclama, recordando a consulta. Para sarar a médica lhe aplicou uma injeção, não sem antes receitar “bastante repouso e paracetamol”.
Passados três dias, o corpo de Darci respondia de forma ainda mais grosseira. Sua pele fervia. Manchas e erupções semelhantes ao sarampo percorriam suas pernas e o torso. Decidiu consultar a médica mais uma vez. Pesarosa, a profissional lhe deu uma má notícia: a injeção causara uma reação alérgica em seu corpo. Para reverter o suposto contratempo, a solução era ingerir “bastante líquido”. Isso ajudaria a eliminar o efeito da injeção. As horas passavam e a dor continuou. Se ela não conhecesse o relógio, poderia jurar que os ponteiros corriam mais morosamente que o habitual.
Já na quinta-feira, sem sinal de melhora, o marido aconselhou a mulher que fosse a um clínico particular. Ele, por sua vez, suspeitou de infecção alimentar. “Tive que tomar várias injeções e soro na veia”, relembra Darci, em conversa por telefone. Na sexta e no sábado, além dos sintomas que a torturavam há dias, sua pressão baixou. Ao completar uma semana desde aquele domingo preguiçoso e cheio de dor, Darci Corrêa dos Santos Garcia foi internada no Hospital Roque Gonzales, o único de Caibaté. Ninguém sabia explicar o que acontecia com ela.
O sul se fez sertão
Os gaúchos que moram na região Noroeste lembram com horror do verão de 2005. O período ficou marcado por uma das maiores secas da história. A estiagem durou 45 dias entre janeiro e fevereiro, o suficiente para deixar quase todo o Rio Grande do Sul de joelhos em termos hídricos. Lavouras de milho, arroz e soja, por exemplo, foram devastadas – efeito que fez o PIB amargar um tombo histórico de 2,8%. Rios, açudes e sangas transformaram-se em terra rachada. A população mal conseguia satisfazer suas necessidades básicas, como tomar banho ou lavar a louça. Mais de 80% dos 497 municípios decretaram situação de emergência.
Com pouco mais de 7 mil habitantes, na época, a pequena Caibaté foi uma das cidades arrasadas. Situada nas Missões – região nacionalmente conhecida pelas edificações jesuítas –, o município precisou implantar, às pressas, um programa que amenizasse o problema. Entre as soluções estava a instalação de dezenas de caixas d’água para coletar e armazenar a pouca água que caia com a chuva.
A medida ajudou em 2005, como também em 2012 – outro ano de seca brava. No último verão, contudo, mesmo sem registrar uma estiagem oficial, o desabastecimento de água passou a ser o vilão – similar ao que aconteceu em diversas regiões brasileiras, principalmente em São Paulo. Espelhados pela atitude tomada há uma década, um percentual expressivo dos caibateenses – hoje menos de 5 mil, segundo o último censo do IBGE – comprou mais caixas d’água como forma de prevenção.
Acontece que, nesse movimento, muitos moradores negligenciaram o cuidado com os equipamentos. Mal vedadas, além de armazenar água, algumas (leia-se várias) caixas serviram como criadouro de elementos voadores de origem egípcia, menores que 1 centímetro e de coloração preta com listras brancas no corpo e nas pernas. Sim, o desleixo deu vez ao Aedes aegypti, o principal vetor da dengue no Brasil.
Surto nas Missões
Quando baixou no hospital, os exames de Darci acusaram uma pedra em sua vesícula. A disfunção logo foi tratada, mas a febre, as náuseas e as dores ainda não tinham cessado. Para confundir ainda mais os enfermeiros, outras pessoas com sintomas parecidos começaram a procurar a unidade. Só então suspeitaram que fosse dengue.
Dona Darci fez dois hemogramas, que foram enviados à capital para análise. No fim daquela semana, a confirmação: estava há quase duas semanas com o vírus da dengue encubado. Era um dos primeiros casos na cidade. Com tratamento correto, dessa vez, Darci se recuperou ao longo da semana seguinte. Deu até entrevista para a televisão contando o drama. Perguntada se imagina onde possivelmente fora infectada, não soube responder. “Eu não faço a mínima ideia”, chancelou.
Hoje é difícil encontrar um morador de Caibaté que não conheça alguém que tenha contraído dengue nos últimos meses. No levantamento realizado entre 1º de janeiro e 28 de abril, o município era o recordista gaúcho no número de casos confirmados: 229. Isso significa que a cada 21 pessoas, uma foi infectada. A Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS) confirmou que a região sofre um surto da doença. Em todo o Rio Grande do Sul, no mesmo período, foram 552 casos confirmados – 456 autóctones (contraídos no Estado) e 96 importados.
Apesar do alarme, 2015 ainda não se compara com o primeiro surto enfrentado pelos gaúchos em 2010. Conforme a SES-RS, naquele ano foram notificados 3.489 casos de dengue. A maioria das ocorrências em Ijuí, que fica a 86 quilômetros de Caibaté.
Acesse o infográfico com a dimensão da dengue no Rio Grande do Sul aqui.
O efeito dengue
Há muito tempo o Brasil convive com a dengue. As primeiras referências são do período colonial. O primeiro caso ocorreu no Recife, em 1865. Sete anos depois, em Salvador, uma epidemia da doença matou 2 mil pessoas, segundo os registros hitóricos. Foi o médico e cientista Oswaldo Cruz que implantou, em 1903, o programa pioneiro de combate ao mosquito transmissor. A maior preocupação, além da dengue, eram as epidemias de febre amarela – também causadas pelo mosquito.
Nos últimos anos, porém, os especialistas têm olhado com assombro a mutação e a propagação do Aedes aegypti no país. Até 2007, os piores meses no combate à dengue eram tradicionalmente entre março e maio, quando as altas temperaturas e a umidade atmosférica criavam situações propícias para a proliferação do mosquito – que se reproduz em locais que acumulam água como latas, copos plásticos, tampas, pneus velhos, jarros de flores, garrafas, vasinhos de plantas, caixas d’água, tambores, latões, cisternas, sacos plásticos e lixeiras. Desde então, cientistas, virologistas e epidemiologistas tentam entender o porquê do aumento da doença em outros meses considerados “mais tranquilos” pelos agentes de vigilância sanitária. A resposta pode estar em uma recente pesquisa da United Nations University (UNU), do Canadá.
Segundo o estudo, a urbanização e o aquecimento global tem influenciado na incidência. Para obter a afirmação, os cientistas realizaram o primeiro Mapa Global de Vulnerabilidade ao Vírus da Dengue. O estudo foi montado em cima dos indicadores de exposição, como as condições ambientais que sustentam as populações de mosquitos, e da susceptibilidade, como fatores sociais que levam à infecção. “Esses mapas são úteis aos tomadores de decisão para ajudar a evitar surpresas quando dengue ocorre em uma área de forma inesperada”, explicou por e-mail Sarah Dickin, uma das três autoras do estudo.
A pesquisa analisa quatro cenários diferentes, de acordo com os meses de janeiro, abril, julho e outubro. No que se refere ao Rio Grande do Sul, fica claro que algumas épocas do ano são mais propicias para a exposição do mosquito – já que a região é dotada de condições climáticas sazonais. Janeiro se mostra o mês de maior vulnerabilidade devido ao calor provocado pelo verão (foto abaixo). O Noroeste, por ser a região mais quente do Estado, é a área mais suscetível. Foi lá que a Secretaria de Saúde reconheceu um surto da dengue neste ano.
Janeiro e outubro mostram chance maior de contrair o mosquito. Imagem: Montagem/UNU
Mudança no tempo
O calor no planeta Terra foi abundante no início de 2015. A confirmação é dos relatórios da NASA, da Agência Meteorológica do Japão (JMA, na sigla em inglês) e da Administração Nacional de Oceanos e Atmosfera dos Estados Unidos (NOAA, na sigla em inglês). O NOAA, por exemplo, diz que a temperatura média global no primeiro trimestre do ano ficou 0,82ºC acima da média registrada ao longo de todo século 20 – a maior para o período desde o início das medições, em 1880.
Com o planeta mais quente, a incidência de doenças provocadas por mosquitos aumenta. Isso porque a proliferação dos insetos é mais fácil em temperaturas elevadas. E ainda tem um agravante: a chuva, característica que parece crescer na região sul. “As projeções para o Brasil, em geral, são de períodos mais secos. A única diferença é mesmo no Rio Grande do Sul, que aumentará a ocorrência de chuva daqui para frente”, explica a professora Ana Maria Avila, pesquisadora no Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas em Agricultura (Cepagri) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A soma de calor com chuva resulta em mais focos de acúmulo de água. Logo, a lógica fala por si: mais calor e mais água acumulada, mais chance de dengue.
Uma pesquisa de 2013, que avaliou a relação entre variações climáticas e o risco de dengue no Rio de Janeiro, corrobora a previsão. Segundo os autores da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), se levado em conta que, entre os anos de 2001 e 2009, o aumento de 1°C na temperatura mínima em um mês fez crescer 45% dos casos de dengue no mês seguinte, a elevação de 10 milímetros na precipitação de chuvas também esteve relacionada a um aumento de 6% dos casos da doença. Ainda que não haja um dado especificamente sobre o Rio Grande do Sul, uma coisa parece certa: se a população não se conscientizar e eliminar os possíveis focos de reprodução, o Aedes aegypti vai ficar igual pinto no lixo.
Cidade mobilizada
O surto de dengue sem dúvida é o momento mais insólito que Caibaté viveu em seus 49 anos. A rotina na cidade mudou drasticamente. Desde março, pais são chamados a creches e escolas para assistir a palestras sobre riscos e prevenção da doença. Os dois postos de saúde passaram a abrir à noite para dar conta de todo o trabalho. Segundo a prefeitura, teve estabelecimento que até fechou em alguns turnos porque os funcionários ficaram doentes e impossibilitados de trabalhar.
Nos restaurantes, nas rodas de chimarrão e em outros pontos da cidade, a conversa ultimamente é sobre os últimos infectados e os locais onde foram encontradas larvas do mosquito. A primeira morte provocada pela dengue na história do Estado vira e mexe é pauta também. Uma mulher de 41 anos faleceu no dia 22 de março, vítima da doença. O caso aconteceu em Santo Ângelo, a 58 quilômetros de Caibaté.
Os moradores, contudo, suspeitam que se todos que apresentaram os sintomas procurassem atendimento, muito provavelmente o número de caibateenses infectados seria maior. Maria Luiza Schneider, por exemplo, só soube que teve dengue 15 dias depois de melhorar. “Teve um dia que fiquei com uma dor insuportável no corpo. Mas como fiz medicação na veia, eu melhorei logo no segundo dia”, explica, por telefone. “Só fui saber que era dengue quando fiz o exame, duas semanas depois”, completou ela, que trabalha como auxiliar de escritório no hospital da cidade.
O futuro a nós pertence
Segundo o Mapa Global de Vulnerabilidade ao Vírus da Dengue, as doenças associadas à água são responsáveis por cerca de 3 milhões de mortes por ano, seja por ingestão, contato (como a esquistossomose) ou por vetores que dependam da água para proliferar. No caso da dengue, estima-se que, a cada ano, 400 milhões de pessoas sejam infectadas em todo mundo. Pacientes sofrem com dores nas juntas, febre alta e sintomas similares ao da gripe. Em casos mais graves, como da dengue hemorrágica, a pessoa pode morrer. Anualmente são 20 mil mortes provocadas pelo Aedes aegypti – o equivalente à devastação de quatro Caibatés.
Especialistas do mundo todo trabalham na produção de uma vacina que combata o vírus da dengue. Outros buscam meios de aproveitar os próprios mosquitos, como o teste realizado no município de Manacapuru, no Amazonas. A estratégia consiste em atrair as fêmeas dos mosquitos até pequenos baldes tratados com um inseticida de alta potência que mata as larvas do inseto, mas não os mosquitos adultos. “Nós não descobrimos a pólvora, mas esse procedimento vai ajudar nas técnicas que já conhecemos”, reconhece Gonçalo Ferraz, professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e um dos autores do teste. “O importante é que conseguimos atingir um maior número de criadouros. Os agentes sempre têm dificuldades de encontrar as acumulações pequenas de água.”
Enquanto a solução definitiva ainda não chega, a endemia, que já atinge mais de 100 países, continua a se expandir. No Brasil, o crescimento da doença no primeiro trimestre de 2015, se comparado com o mesmo período do ano passado, é de 240%. Dos 460 mil casos, mais da metade está concentrado no estado de São Paulo. Além dele, Mato Grosso do Sul, Goiás e Acre também apresentam incidência epidêmica. Os motivos são diferentes, segundo as secretarias. No estado goiano, a interrupção de serviços básicos em alguns municípios, como a coleta de lixo, é um dos fatores que provocaram o surto, informou a superintendente estadual de Vigilância em Saúde, Maria Cecília Brito, ao jornal Folha de S. Paulo.
Os autores do Mapa Global de Vulnerabilidade ao Vírus da Dengue enfatizam a necessidade de traçar um plano antecipado para enfrentar os desafios. “Sempre há incerteza nas projeções, mas é importante ser pró-ativo no planejamento de futuras necessidades, fornecendo informações para as comunidades sobre a forma de protegerem a si mesmos e suas comunidades”, concluiu Sarah Dickin, da United Nations University.
Para conter o avanço do Aedes aegypti na região Noroeste do Rio Grande do Sul, uma força-tarefa da Vigilância Ambiental em Saúde aplica periodicamente inseticidas com veículos para bloqueio químico e máquinas costais, especialmente nos municípios de São Miguel das Missões, Mato Queimado, Cerro Largo, Rolador, Santo Ângelo e, claro, Caibaté. Ainda assim, novos casos seguem aparecendo. “O medo é grande, né? E o pior é que, agora, é a minha irmã que tá com dengue”, lamenta Darci, que num domingo desses acordou com dores por todo o corpo – diagnosticado como um gripão.
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O clima e o mosquito. A dengue em Caibaté, RS - Instituto Humanitas Unisinos - IHU