26 Março 2015
"A paixão nunca é uma linha sem solavancos", e Dom Óscar Romero era impulsionado "por um amor desequilibrado pelos pobres, pelos oprimidos, pelos violentados". Com uma chave de leitura de duas voltas, psicanalítica e geopolítica, o bispo Vincenzo Paglia, postulador da causa de beatificação, responde às perguntas do Huffington Post e presta homenagem à figura histórica do mártir salvadorenho, explorando a sua complexidade e atualidade, no 35º aniversário da morte, ocorrida no dia 24 de março de 1980.
A reportagem é de Piero Schiavazzi, publicada no sítio TheHuffingtonPost.it, 24-03-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Precursor do pontificado de Francisco, se tivesse vivido hoje, Romero provavelmente seria cardeal. Mas, em vez do barrete vermelho, ele está prestes a receber a auréola da santidade. Evento destinado a marcar uma passagem epocal no caminho das lideranças latino-americanas, da época dos comandantes máximos às dos santos revolucionários, ascetas e pragmáticos. No rastro envolvente do papa argentino.
Mas Óscar Romero – essa é a característica mais original da entrevista – não representa apenas um símbolo do Ocidente, no momento em que as Américas reencontram a própria unidade com a paz entre Cuba e Estados Unidos. A parábola da sua estrela se volta, ao contrário, para o Oriente, onde o terrorismo fundamentalista torna-se Estado e torna-se "de Estado", exportador de esquadrões da morte, como aquele que, na manhã de 35 anos atrás, ensanguentou a catedral de San Salvador.
Como ícone da já próxima beatificação, o bispo assassinado no altar levanta a hóstia como um emblema da sacralidade do corpo, diante da brutalidade dos novos carrascos. Um "habeas corpus" para o milênio, confiado ao testemunho de um herói moderno, que vive para o seu Deus e convive com os próprios medos.
Frágil e forte, combatente e combatido, como evidenciam as palavras de Dom Paglia, que nos levam de volta para a atmosfera dos anos 1980 e, ao mesmo tempo, nos projetam de volta para o futuro da Igreja de Bergoglio.
Eis a entrevista.
Às vésperas do martírio, Romero mostrou o mesmo pressentimento de Jesus no Getsêmani. A visita do dia anterior, na casa de amigos, evoca uma atmosfera de última ceia. Junto ao heroísmo, o medo também é uma prerrogativa dos santos?
Romero não era um herói, mas um pastor que – seguindo o exemplo de Jesus – optou por estar perto do seu povo, mesmo às custas da vida. Quatro semanas antes de ser morto, ele escreveu no Diário: "Sinto medo da violência na minha pessoa. Avisaram-se de sérias ameaças precisamente para esta semana. Temo pela fraqueza da minha carne, mas peço ao Senhor que me dê serenidade e perseverança. (…) O padre (Azcue, um jesuíta, seu diretor espiritual) me deu ânimo dizendo-me que a minha disposição deve ser a de dar minha vida por Deus, seja qual for o fim da minha vida. (…) Jesus Cristo assistiu aos mártires e, se é necessário, O sentirei muito perto ao lhe entregar o meu último suspiro". É difícil compreender a sua escolha, como a dos mártires cristãos, sem a fé que enche de força a fraqueza humana.
Bergoglio interpreta em chave realista, não só cromática, o laço entre púrpura e sangue. Nos seus primeiros consistórios, ele deu o barrete a dois prelados que remetem à biografia de Romero. O arcebispo de Cotabato, nas Filipinas, objeto de um atentado a bomba enquanto celebrava a missa. E o de Morelia, no México, "el cardenal insurgente", que luta com o povo contra os narcotraficantes. Se ele tivesse vivido hoje, no tempo de Francisco, na sua opinião, Romero já seria cardeal?
Eu responderia que, sem dúvida, haveria uma compreensão profunda entre Romero e Francisco. Ou, melhor, acrescentaria que não é por acaso que a beatificação de Romero ocorra justamente no pontificado do Papa Francisco, primeiro papa latino-americano e grande defensor de uma "Igreja pobre e para os pobres". Tantas palavras e tantos gestos de Francisco já estavam em Romero, um pastor que escolheu viver no meio do povo de Deus. E se poderiam aplicar muito bem as palavras que o Papa Francisco dirigiu aos novos cardeais: não se deixar dominar pelo medo de perder os salvos; ao contrário, acolher a audácia de salvar os perdidos.
A beatificação de Romero leva aos altares o istmo centro-americano, região frágil e nevrálgica. Um pavio que se estende naquele grande barril de esperanças "sob pressão" que é a América Latina. Depois da época dos comandantes máximo, o testemunho da revolução passa para os santos?
Com efeito, sempre me impressionou a fama de santo defensor dos direitos dos pobres que Dom Romero gozou e conservou ao longo desse anos, tanto entre os fiéis, quanto entre os homens de boa vontade. Naquele pequeno país, concentravam-se, no tempo de Romero, uma série de fortes tensões políticas, sociais, culturais e também teológicas. Romero, hoje, é testemunha para toda a América Latina de um cristianismo conciliar que consegue dar uma esperança nova não só para aquele continente, mas para a Igreja universal.
O senhor contou que a Romero foram imputados problemas de caráter e de desequilíbrio. Uma certa dose de estranheza, porém, não é, no fundo, um ingrediente da santidade? Como se ser tocado por Deus abalasse, além da alma, também a psique...
Eu sempre defendi a causa de beatificação de Romero pelo seu martírio. Ele teve um caráter nada simples. Tinha os seus medos e também os seus problemas de natureza psicológica. Além disso, encontrou-se em um contexto complexo que nem sempre era fácil de analisar. Mas a sua paixão pelo povo e pela Igreja – e a paixão nunca é uma linha sem solavancos – levava-o a um amor "desequilibrado" pelos pobres, pelos oprimidos, pelos violentados.
O senhor foi muito próximo de João Paulo II: que explicação foi dada, no fundo, para além da anedota conjuntural, para a distância entre dois homens que tinham tudo para entrar em empatia?
Lembro-me da primeira vez que falei de Romero para o Papa João Paulo II: foi no dia 23 de março de 1982. Ele me ouviu com grande atenção. Eu estava junto com o padre Jesus Delgado, ex-secretário de Romero. O arcebispo não gozava de boa fama em Roma... Todas as cartas que chegavam eram contra ele. Em certo sentido, se poderia dizer que ele vinha para Roma sozinho contra todos. O Papa João Paulo II compreendeu e mudou, imediatamente, o seu julgamento. E me lembro das suas palavras: "Romero é nosso, é da Igreja". O resto é conhecido: tendo chegado em El Salvador, mudou o programa para ir logo visitar o túmulo de Romero e, na celebração pelos novos mártires, quis escrever de próprio punho a recordação de Romero, que nem sequer havia sido mencionado.
Há uma mensagem que vai além do marco histórico-geográfico e parece ser muito atual. Romero exigia a restauração da democracia "substancial", sequestrada pelos poderes fortes e intimidada pela ameaça terrorista. Francisco não perde uma ocasião para lembrar que esse, hoje, tornou-se um problema universal...
Eu acredito que a beatificação de Romero responde a duas grandes perspectivas da história contemporânea. A primeira diz respeito à Igreja e ao pontificado do Papa Francisco. A beatificação de Romero leva aos altares o "primeiro mártir" do Concílio Vaticano II. Com a sua morte, os assassinos queriam silenciar a Igreja do Vaticano II e, em particular, a interpretada pela Igreja latino-americana com a escolha prioritária dos pobres. Romero bem-aventurado significa confirmar a profecia do Vaticano II, o Concílio que Paulo VI resumiu com a imagem evangélica do Bom Samaritano que se inclina sobre o homem meio morto da sociedade contemporânea.
Nessa linha destaca-se também a perspectiva que diz respeito à atual situação internacional. O crescimento de uma violência generalizada que tem no terrorismo o seu ápice é contrastado de maneira alta pelo martírio de Romero: a vida – o martírio de Romero diz ao mundo – nunca deve ser tirada de ninguém, mas apenas doada pelo bem dos outros. Em suma, a violência terrorista encontra em Romero a contestação mais radical.
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''Em Francisco, eu revejo Romero.'' Entrevista com Vincenzo Paglia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU