Por: André | 09 Março 2015
Narrar a vida, a realidade, dar voz aos sem voz através da ficção, narrar a história de um país e sua gente, narrar como o coração que pulsa, como um rio que transporta histórias e revela profundidades, narrar além da própria vida. A jornalista e escritora mexicana Elena Poniatowska (foto) já está há mais de meio século narrando um México estremecedor. A escritora mexicana defende o jornalismo como uma fonte vital e a ficção como um modo de dar voz e pele a seres excêntricos ou comuns, mas sempre excepcionais. Em 2014, Poniatowska recebeu o Prêmio Cervantes. O jurado da mais alta distinção outorgada nas letras espanholas assinalou que “sua obra se destaca por seu firme compromisso com a história contemporânea.
Autora de obras emblemáticas que descrevem o século XX a partir de uma projeção internacional e integradora, Elena Poniatowska constitui uma das vozes mais poderosas da literatura em espanhol destes dias”. Sua voz é tão forte que, quando se cita uma data e um lugar, 02 de outubro de 1968, Tlatelolco, o nome que surge nesse momento da história do México é o de Elena Poniatowska e seu livro A noite de Tlatelolco. Passaram-se muitos anos, mas é impossível não voltar a esse livro publicado em 1971 e no qual a autora narra o movimento estudantil que mudou a história do México, assim como a brutal repressão que acabou com ele. Por meio de centenas de testemunhos, de artigos de imprensa, de slogans e de vozes de testemunhas, Poniatowska moldou uma reconstrução cronológica alucinante. Jornalismo puro e honesto como já quase não existe mais.
Fonte: http://bit.ly/1FungcL |
Sua vida pode ser inclusive como os personagens de alguns dos seus romances. Elena Poniatowska nasceu em Paris, em 1932, e migrou para o México aos 10 anos de idade junto com sua mãe e sua irmã Kitzia, que fugiam de uma Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial. Com o francês como idioma materno, Poniatowska fez do espanhol a língua de suas histórias. Em 2011, ganhou o Prêmio Biblioteca Breve com o romance Leonora e três anos mais tarde, o Prêmio Cervantes.
Sua obra é extensa, mas nela sempre se combinam o trabalho testemunhal, a narrativa histórica e a biografia romanceada. Nesta entrevista concedida ao jornal Página/12, feita em sua casa no México, Poniatowska aborda os dramas que sacodem o México, em particular o assassinato, em Iguala, dos 43 estudantes da escola normalista de Ayotzinapa. A jornalista e romancista mexicana considera que a desigualdade é responsável por toda esta violência.
A entrevista é de Eduardo Febbro e publicada no jornal argentino Página/12, 06-03-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
O México acaba de viver um dos tantos dramas ligados à violência, que se vêm produzindo há vários anos. Desta vez, no entanto, com o que aconteceu em Iguala em setembro do ano passado, uma forma de consciência coletiva voltou a se formar em torno desse assassinato coletivo.
Em 26 de setembro, vivemos o assassinato, em Iguala, de 43 estudantes de Ayotzinapa, no Estado de Guerrero. É um lugar turístico porque ali está Acapulco, para onde chegam todos os milionários dos Estados Unidos que querem passar um bom tempo na praia. Mas a realidade é outra: é a miséria, a droga, o narcotráfico. Também é a realidade de jovens normalistas, cuja única oportunidade era fazer parte do magistério. Eram 43 e que se viram de repente metidos em uma história de assassinatos e de corrupção por parte do Estado e em nível governamental, na polícia, no Exército.
Este é um governo incapaz de resolver os problemas dos mexicanos mais pobres e abandonados. Pode-se dizer também que estas escolas normalistas têm como finalidade preparar professores e em Iguala são consideradas como berço de guerrilheiros. Dali saíram Genaro Vázquez Rojas, um líder sindical guerrilheiro, e outro também muito importante, Lucio Cabañas, professor rural de Ayotzinapa, líder de um grupo armado no Estado de Guerrero. Ambos escolheram a guerrilha porque, como professores, nunca tiveram resposta para os problemas sociais que afetam Estados como Morelos ou Guerrero, ambos muito conflituosos. Essas escolas rurais sempre foram maltratadas, negligenciadas. São escolas muito pobres e basta ver as fotos das casas onde estavam os rapazes para dar-se conta do terrível vazio, total. Vê-se que dormiam sobre papelão e comiam apenas arroz e feijão.
Para você, a situação global do México está atravessada pela problemática da desigualdade. É essa a chave de toda a violência?
Efetivamente. No México há um abismo entre uma classe social e outra. A fonte da violência está em que não há oportunidades, não há escolas. A fonte de qualquer violência é sempre a falta de educação e, sem dúvida, a fome. Mas, no nosso caso, a falta de educação é muito grande. Há muitas circunstâncias que se combinam, mas o México é um país muito desigual, como o são, em geral, os países petroleiros. A imagem do México no exterior está muito deteriorada justamente porque temos um governo que não está à altura das circunstâncias. O México é um país de enormes desigualdades e de grandes injustiças sociais. Para mim, a violência faz agora parte da desigualdade. Muitas vezes se acredita que os problemas do México só vão se resolver através da violência.
Você sente que se chegou a um limite de todas as coisas?
Eu sinto que o México nunca esteve tão mal como agora. Isso vem desde dezembro, desde 26 de setembro e vem desde quando há uma impunidade absoluta. Há muitíssimos jovens que são assassinados, eliminados. Todos têm que se levantar e dizer com muita raiva que isto não pode continuar em nosso país. Devemos dizer que no México houve marchas admiráveis com pessoas que colocam a vida e a segurança pessoal em jogo para participar dessas manifestações. Os jovens estão dispostos a sair para protestar, a sair para dizer a verdade e enfrentar o poderoso, o cacique.
Eu não acredito nos partidos políticos. Para mim, os partidos políticos não funcionam. Eu acredito nas pessoas e na sua reação. Os partidos políticos deveriam procurar candidatos entre os jovens limpos. Devemos ir às universidades, ao politécnico, à UNAM (Universidade Autônoma do México), às escolas de ciências políticas. Aí se deve buscar pessoas jovens com ideias novas. No México, recorremos sempre ao mesmo. São sempre os mesmos nomes até que morrem, e as mudanças não chegam. De fato, no México, houve muito poucas mudanças.
Você acredita que pode haver no México como uma espécie de convergência entre o que ainda persiste do movimento zapatista, o que se produz como movimento pela paz com o assassinato do filho do poeta Javier Sicilia e toda esta indignação e protestos que se dão agora com o que aconteceu com os 43 estudantes da escola normalista? Há várias décadas o México protagoniza poderosos movimentos de protesto civil.
Bom, há uma espécie de união, mas o problema está em que essas forças de protesto não são simultâneas, vão acontecendo. São forças que se iniciam em anos diferentes, com diferenças de 10, 20 ou 30 anos entre um movimento e outro. O que os zapatistas fizeram em Chiapas com o Subcomandante Marcos foi colocar sobre o tapete das discussões o terrível problema de 10 milhões de indígenas que pareciam párias ou pedintes em seu próprio país. Viviam em um Estado como o de Chiapas, que é muito rico, e não tinham luz, água nem nada. Ter posto o problema dos indígenas na mesa foi muito importante. Isso se conseguiu em 1994 com um levantamento e a guerra.
Eu vejo seguidamente os estudantes, os jovens, e eles estão muito conscientes do problema indígena e continuam pedindo o cumprimento dos acordos de San Andrés assinados entre o governo e os zapatistas. Eu creio que hoje, no país, há muitíssima indignação. Ela existe em universidades privadas, como a Universidade Iberoamericana, onde há estudantes com recursos econômicos. Contudo, dali saiu o grito de rebelião e o grito de rechaço a uma imagem de corrupção e contra a impunidade total. Ali surgiu o movimento estudantil de oposição ao hoje presidente Enrique Peña Nieto. Eu sonho com que os jovens tenham a oportunidade que não têm hoje e que todos os mexicanos vão dormir tendo comido bem e mais ou menos a mesma coisa.
Sua obra literária reúne personagens entranháveis, muitas vezes com uma identidade comum que os torna modelos de um setor da sociedade ou emblemas da história contemporânea.
Eu escrevo romances, mas não tenho uma regra ou personagens estruturados. Pense que eu sou jornalista desde 1943, quando me iniciei no jornal El Excelsior. Vou completar 83 anos e, finalmente, o que eu fiz foi trabalhar, ser repórter desde muito jovem. É um trabalho duro, difícil, porque o repórter sempre é maltratado. Os repórteres são tratados como moscas que estão estorvando. Deve-se esperar muito. Eu esperei muito.
A antessala, a espera eterna do repórter, seria como o lugar de gestação da literatura.
A antessala é uma forma de aprender a ser paciente e modesto. Os escritores acreditam que inventaram a pólvora, mas são os jornalistas que recolhem a pólvora. Mas desse trabalho cotidiano às vezes surge uma ideia e diz-se “isto que acabo de viver daria um conto ou seria a base de um romance”. Minha obra é fruto do trabalho de longos anos. Eu leio e escrevo ficção com muito prazer, mas o que fiz durante toda a minha vida, o centro da minha vida, foi o jornalismo. Nunca pretendi conquistar nada. A única coisa que quis é dar voz às pessoas que nem sequer sabem ler e que, em geral, não aparecem nos jornais. A narração é ocupar-se de pessoas que, na minha opinião, são fascinantes pelo inesperado, pela originalidade. A narração é recolher as vozes, plasmar certas expressões. Seguramente, nos meus livros há idealismo, porque há muitas pessoas que são mais atrativas que outras pelo que fazem. Sempre gostei dos personagens apocalípticos, sempre gosto dos Rasputin e das pessoas que fogem do comum.
Diante de realidades tão fortes como a do México, a ficção não lhe parece, às vezes, um luxo?
Não, porque a ficção também faz parte da vida.
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“A violência faz parte da desigualdade”. Entrevista com a escritora mexicana Elena Poniatowska - Instituto Humanitas Unisinos - IHU