09 Fevereiro 2015
Em 1946, os escombros da Segunda Guerra ainda eram perceptíveis nos mais variados cantos europeus, quando o britânico Winston Churchill (1874-1965) fez mais um de seus memoráveis discursos. Na Universidade de Zurique, defendeu enfaticamente a construção dos "Estados Unidos da Europa", uma alternativa com grande potencial de promover a transformação do "continente turbulento e poderoso". Para Churchill, esse seria o caminho possível para que os trabalhadores europeus pudessem recuperar a "alegria e a esperança que fazem viver valer a pena".
A entrevista é de Robinson Borges, publicada pelo jornal Valor, 06-02-2015.
Quase sete décadas depois, o britânico Anthony Giddens, uma das estrelas no panteão da sociologia, recupera o pronunciamento de Churchill para examinar o futuro da União Europeia (UE), onde hoje vivem cerca de 500 milhões de pessoas e que atravessa uma difícil fase em seu processo de integração. "O projeto europeu ainda é vulnerável porque os Estados membros, ou alguns dos principais Estados membros, querem todas as vantagens para si", diz Giddens.
A referência a Churchill está no título de "The Turbulent and Mighty Continent: What Future for Europe?" (continente turbulento e poderoso: o que é o futuro para a Europa, em tradução livre), último livro de Giddens, que recebeu o European Book Prize de 2014. Na obra, o ex-diretor da London School of Economics endereça boa parte de suas críticas à Alemanha - que exerce a "presidência informal da Europa" - e defende tratamento mais generoso para a Grécia. O país, que acaba de eleger um governo de esquerda radical, enfrenta um doloroso ajuste financeiro e pede o alívio da austeridade imposta pela "troika" (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) com apoio irrestrito da chanceler alemã, Angela Merkel. "O perigo em que se encontra a Grécia e a zona do euro é muito grande. Pode haver polarização ainda maior e talvez até o caos político. Não é do interesse de ninguém que a Grécia fique ingovernável", afirma.
Engajado no projeto da União Europeia, Giddens observa que a crise financeira iniciada em 2008 evidenciou grandes fragilidades da zona do euro, como a falta de uma unificação bancária total e a precária integração fiscal. "O euro foi introduzido sem que houvesse os meios necessários para estabilizar e proteger a moeda em períodos de adversidade econômica", diz. Para o professor, no entanto, as reformas devem ir além da estabilização da moeda, cobrindo políticas contra o aquecimento global, os problemas de energia e o desemprego.
Integrante da Câmara dos Lordes do Reino Unido, Giddens, de 75 anos, se notabilizou internacionalmente por desenvolver as bases da Terceira Via, que chacoalhou o debate político no fim dos anos 90 ao propor uma ponte entre esquerda e direita no mundo pós-Muro de Berlim. Sua tese foi difundida pelo ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair.
Eis a entrevista.
O Syriza, partido que ganhou as eleições na Grécia, promete manter a moeda comum europeia, mas o novo premiê, Alexis Tsipras, faz muitas ressalvas à pressão e às ameaças de Bruxelas e de Berlim pela austeridade. Como a Europa lidará com o país de agora em diante?
Defendo que se dispense tratamento mais generoso à Grécia, já que a austeridade infinita acabará solapando seu objetivo, que é revitalizar a economia e fazer com que o país volte a crescer. A austeridade "funciona" por período limitado. É uma alavanca para gerar reformas estruturais. Caso seja mantida indefinidamente, as vantagens começam a se perder, porque gera níveis insustentáveis de desemprego e revolta política. Nesse momento, o perigo em que se encontra a Grécia e a zona do euro é muito grande. Pode haver polarização ainda maior e talvez até o caos político. Não é do interesse de ninguém que a Grécia fique ingovernável. O novo governo tem poder de influência muito maior sobre a zona do euro e até sobre o FMI [Fundo Monetário Internacional] do que pode parecer à primeira vista. Dizem que a Senhora Merkel afirmou estar tranquila com a possibilidade de a Grécia deixar o euro. Não deveria estar, nem qualquer pessoa que queira ver progresso na zona do euro. As pessoas falam disso como se fosse algo simples. Seria algo extremamente arriscado que poderia ter consequências catastróficas, em virtude da probabilidade de fuga de capital, corrida aos bancos e contágio de outros países da zona do euro. Sendo assim, é do interesse geral que haja um acordo e uma mudança de direção política.
O senhor tem observado que os alemães têm vantagens substanciais em manter a moeda comum. Acredita que a Alemanha aceitaria a mutualidade, dividindo responsabilidades com os outros países da zona do euro?
Parte do problema do euro surgiu do fato de que o Pacto de Estabilidade e Crescimento, criado para promover austeridade nos gastos estatais quando do advento do euro, foi essencialmente ignorado. Qual foi o primeiro país a desrespeitar os termos do pacto e conceder empréstimos em excesso? Ora, a Alemanha, junto com a outra nação mais poderosa da União Europeia de então, a França. A Alemanha pressiona outros países a empreender reformas, mas não se esforça para reformar suas instituições. O país obteve enormes benefícios ao aderir ao euro, que tornou suas exportações muito mais competitivas do que seriam caso o país tivesse mantido o marco alemão. Grandes setores da indústria alemã estariam ameaçados se o país voltasse a adotar a moeda nacional. As lideranças alemãs se recusam a aceitar a mutualidade, o compartilhamento das responsabilidades, que uma moeda unificada implica, bem como o fato de que sua situação privilegiada não tem origem num mandato democrático.
Quais são as implicações políticas do programa de afrouxamento monetário europeu (QE) para os alemães e para a zona do euro, pois foi uma decisão à qual Angela Merkel, "presidente informal da Europa", como o senhor afirma, parece ser contrária?
A UE ainda está imersa na crise, cujas causas são econômicas e políticas. Nem todas essas causas surgiram na própria Europa. A economia mundial está perdendo fôlego, mais notadamente a China, que de certo modo impulsionou o desenvolvimento global nas últimas duas ou três décadas. Os Brics, inclusive o Brasil, estão com dificuldades agravadas. No caso da Rússia, pelas sanções impostas ao país pelos EUA e UE após a invasão da Ucrânia. A queda do preço do petróleo está gerando deflação em muitos países, embora possa favorecer a produtividade e a competitividade em algum momento.
Os EUA voltaram a crescer, mas grande parte do lucro foi parar nas mãos do 1% mais rico da população. Todos esses problemas se refletem na Europa. Eles são o pano de fundo para as causas mais locais da persistência da crise, relacionadas à indefinição sobre a permanência no euro e as tensões e os atritos políticos resultantes. O euro foi introduzido sem que houvesse os meios necessários para estabilizar e proteger a moeda em períodos de adversidade econômica. Até agora as soluções não são suficientemente abrangentes.
Não há unificação bancária total e o grau de integração fiscal ainda é baixo. Isso criou uma situação em que a Alemanha, dona da maior e, em alguns aspectos, mais próspera economia, é a maior força política. Como observei em meu livro, informalmente falando, Angela Merkel é a "presidente da Europa", a pessoa a quem todos devem recorrer se querem que algo seja resolvido. Não existe legitimidade direta nessa situação, que é a causa de algumas das tensões e conflitos políticos que se vê por toda Europa.
O senhor também afirma que a recessão é profundamente estrutural e uma simples recuperação da demanda e do consumo não solucionará todos os problemas. O que mais Mario Draghi (presidente do Banco Central Europeu) deve fazer, já que ele disse que faria tudo para salvar o euro?
O Banco Central Europeu [BCE] não é diretamente equivalente a um banco central ortodoxo, porque nem todos os países adotaram o euro. Os poderes do BCE são mais limitados, está mais sujeito a intervenções políticas. Draghi revelou-se uma indicação acertada em vários aspectos, mas se vê constantemente obrigado a forçar os limites das capacidades formais do banco, e até a ultrapassar esses limites, para zelar pelos interesses da zona do euro. Sua declaração, feita há cerca de dois anos, de que o BCE "faria tudo o que fosse preciso" foi essencial para estabilizar a zona do euro naquele momento, ainda que tenha sido apenas uma expressão de intenção.
A preocupação atual com a deflação, aliada às persistentes e altíssimas taxas de desemprego em alguns Estados da UE, obrigaram Draghi a empreender esforços muito maiores no sentido de aumentar o ativismo do banco. Em minha opinião, ele está corretíssimo em agir dessa forma. Essa medida colocou Draghi em conflito com Merkel e o seu governo, que têm visões diferentes das causas e soluções para a crise.
Para as lideranças da Alemanha e a maioria dos cidadãos alemães, a Grécia e alguns outros países do sul europeu são ineficazes, irresponsáveis e corruptos. Por que a Alemanha deveria pagar mais do que já está pagando pela incompetência alheia? Esses países precisam empreender reformas estruturais e aumentar sua competitividade para sair do buraco em que eles próprios se meteram.
O senhor defende novo estágio evolutivo na integração da União Europeia. De que modo a liderança poderia tornar-se mais dinâmica?
As tensões entre Draghi e Merkel em razão do QE devem ser compreendidas nesse contexto. Por causa dessa resistência, o QE foi introduzido muito mais tarde do que deveria, e é bem possível que isso diminua sua eficácia. Draghi e a maioria de seus colegas do BCE merecem aplausos por ter ido em frente apesar dos pesares. Hoje já está claro que a deflação é um perigo real e, sem dúvida, uma das razões pelas quais a liderança alemã acabou por aquiescer.
No entanto, havia tensões e disputas muito palpáveis em andamento, e o pacote que foi apresentado foi um passo comedido rumo à mutualidade, o compartilhamento da dívida. Somente 20% do pacote de estímulo será arrecadado coletivamente. O restante terá de ser fornecido pelos bancos centrais nacionais. O volume de QE, de €1 trilhão, é muito maior que o esperado pelos mercados e certamente terá um impacto significativo sobre o consumo. Acredito que haverá aumento quase imediato da inflação, ainda que não seja um aumento muito pronunciado. Mas essa é apenas uma solução paliativa.
A crise econômica global, ao menos em minha opinião, não foi só uma versão ampliada do ciclo econômico e, sim, um reflexo de problemas e oportunidades estruturais que países do mundo todo têm de enfrentar. Entre eles estão os efeitos, difusos pelo mundo, da desaceleração econômica chinesa, somada aos graves problemas ambientais que assolam o país hoje, o impacto das mudanças tecnológicas, principalmente o advento da economia digital mundial, e o impacto negativo da desigualdade extrema. Serão necessários planejamento e investimento pan-europeus para lidar com essas questões. O aumento dos gastos do consumidor só será suficiente se ativamente direcionado pela intervenção política. Considerando-se o apego dos Estados membros da UE aos seus poderes, por exemplo, no setor estratégico da política energética, essa tarefa não será nada fácil.
Existe a possibilidade de uma nova era federalista na UE, como o senhor defende?
O projeto europeu como um todo ainda é vulnerável porque os Estados membros, ou alguns dos principais Estados membros, querem todas as vantagens para si. Eles querem as vantagens da colaboração e da integração, como no caso do projeto do euro, mas, ao mesmo tempo, continuam se comportando como agentes independentes quando querem. Talvez essa ambivalência pudesse ser contida, embora a duras penas, antes da criação do euro, mas hoje ameaça solapar o projeto europeu. O advento do euro introduziu o federalismo econômico nos países da zona do euro, suas economias são interdependentes. Não pode haver federalismo econômico sem que também haja certo federalismo político. A "Europa alemã" que temos é intrinsecamente instável, e essa é uma das principais causas da instabilidade política que vemos em toda parte.
No médio prazo, ou a zona do euro vai se dissolver, o que teria consequências econômicas e sociais gigantescas, ou ficar mais econômica e politicamente integrada. Depois da intervenção russa na Ucrânia, todos percebem ou deveriam perceber que isso também vale para a política externa. No entanto, ninguém hoje sabe se um processo de maior integração seria possível, já que não há apoio popular suficiente.
Acredito que o retorno a uma maior prosperidade econômica, desde que compartilhada por muitos e vista, ao menos em parte, como resultado da intervenção no nível da UE, faria enorme diferença. Não podemos esquecer que, apesar das dificuldades recentes, o apoio à moeda única na zona do euro ainda é muito grande. As pessoas querem que o projeto dê certo.
Em entrevista recente à "Der Spiegel", o ex-líder soviético Mikhail Gorbachev fala dos perigos das relações estremecidas entre a Rússia e o Ocidente na crise ucraniana e diz que a situação pode piorar. "Os ânimos estão exaltados e, se um dos lados perder as estribeiras, não sobreviveremos aos próximos anos", ele afirmou. O senhor concorda com Gorbachev?
A UE está cercada por um "anel de fogo" que se estende da Ucrânia, no Leste, ao Oriente Médio e o Norte da África. Cerca de três milhões de pessoas ficaram desabrigadas em consequência da guerra civil na Síria, e muitas delas gostariam de chegar ao porto seguro da UE se tivessem chance de fazê-lo. Milhares já morreram tentando fazer a perigosa travessia do Mediterrâneo. Será uma dor de cabeça para as autoridades europeias conciliar o auxílio humanitário e o necessário patrulhamento das fronteiras da UE.
Na Ucrânia, algo parecido com uma guerra total está acontecendo, com o apoio e o envolvimento ativos da Rússia. Não aprovo as ações russas sob nenhum aspecto e, nesse sentido, divirjo de Gorbachev, que recentemente passou a apoiar mais o regime de [Vladimir] Putin do que anteriormente. Ainda assim, concordo com ele sobre os perigos que se apresentam. Duas potências nucleares, Rússia e, estão em confronto aberto. Até mesmo um pequeno incidente pode levar a uma conflagração.
Após a realização de uma manifestação contra o terrorismo em Paris, dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas de Dresden, na Alemanha, para participar da marcha do Pegida, grupo contrário à "islamização" da Europa. Como esse problema deve ser enfrentado?
O pano de fundo dessas mudanças é o impacto da tecnologia digital, principalmente da internet, na vida das pessoas. O mundo está mais integrado do que nunca. Praticamente todos, até as pessoas mais pobres, se tornaram cidadãos globais de alguma forma. Ao mesmo tempo, a internet mostrou-se mais ameaçadora e perigosa do que acreditava a maioria dos comentaristas até recentemente. Ela pode insuflar o extremismo, já que algumas comunidades on-line são compostas exclusivamente de "fiéis verdadeiros", que só interagem com quem compartilha de suas opiniões. Temos de administrar o impacto do "cosmopolitismo cotidiano", a interação constante entre visões de mundo radicalmente diferentes.
As facções estão em alta novamente, na forma de fundamentalismos religiosos e na volta do nacionalismo agressivo em diversas partes do mundo. Atos terroristas estão sendo cometidos por grupos fundamentalistas de várias religiões, embora o fundamentalismo islâmico receba maior destaque, por motivos geopolíticos e pela violência no Oriente Médio. A escala das manifestações a favor da tolerância e da liberdade de expressão realizadas em Paris e no mundo todo após os ataques terroristas foi animadora. Ainda assim, a ascensão do Pegida na Alemanha e a volta do antissemitismo na Europa são tendências preocupantes.
O senhor diz que o mundo está evoluindo rapidamente em muitos aspectos. Brasil, Rússia, Índia, China e outras potências emergentes estão tomando as próprias iniciativas e criando suas alianças mundiais fora do âmbito de organismos antigos como o G-8, o Conselho de Segurança das Nações Unidas e a Otan. Qual é sua opinião sobre o novo equilíbrio internacional de poder? Acredita que será o século asiático?
Duvido que este seja o século asiático. Em vez disso, estamos assistindo ao surgimento de uma ordem multipolar, na qual a hegemonia americana foi reduzida de modo significativo e o poder se difundiu pelo mundo. Por causa da fraqueza da ONU, decorrente de divisões dentro do Conselho de Segurança, o G20 passou a ser uma das instâncias mais significativas da governança global. O Brasil tornou-se um dos elementos principais dessa ordem emergente, e merecidamente. O mundo tinha ficado muito mais integrado, mas a governança global não havia avançado tão rapidamente quanto nossa interdependência. Há grandes perigos, alguns deles sem precedentes.
Entre eles estão as mudanças climáticas causadas pelo homem, que não possuem paralelo na história. É espantoso pensar que estamos alterando o clima do mundo de um modo profundo e irreversível, já que não sabemos como retirar da atmosfera os gases causadores do efeito estufa que levam ao aquecimento global. O ano de 2014 foi o mais quente de que se tem notícia no mundo. Um grande teste para a governança global será a assinatura ou não de acordos com força de lei para reduzir emissões de dióxido de carbono durante as reuniões da ONU que serão realizadas neste ano em Paris. Eu espero e prevejo que o Brasil será um participante de peso nesses debates.
O senhor acha que a transformação dos Estados Unidos em um grande produtor de gás natural e petróleo deu ao país maior influência geopolítica, levando em conta sua relação com a China, a Rússia e o Oriente Médio?
Muito da história do mundo desde a Revolução Industrial pode ser interpretada em termos de brigas em torno da energia - carvão, petróleo e gás. Os conflitos no Oriente Médio e em algumas regiões da África podem ter tido origem nessa questão. Os Estados Unidos, por exemplo, fizeram um acordo com a Arábia Saudita, um dos maiores produtores de petróleo do mundo, em 1944, que resiste até hoje. Os Estados Unidos e o resto do mundo veem o livre fluxo do petróleo da Arábia Saudita, mas como parte da barganha fecham os olhos para a natureza autoritária do país. Hoje, a grande batalha em prospecção é quebrar o domínio desse estilo de acordo e reduzir o poder das companhias de combustível fóssil globalmente. Terá de haver um movimento de grande escala em termos mundiais para as energias renováveis e isso deve avançar logo, caso queiramos ter uma esperança de limitar a mudança climática. O Brasil, mais uma vez, tem estado na frente, considerando o uso de energias alternativas ao combustível fóssil, mesmo que o progresso para limitar o desmatamento tenha diminuído.
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A União Européia faz a força. Entrevista com Anthony Giddens - Instituto Humanitas Unisinos - IHU