Por: Cesar Sanson | 04 Fevereiro 2015
“Vimos que a opção da presidente Dilma de construir uma política neoliberal logo no início de2015 é expressão do esgotamento de um modelo. Da mesma forma, o avanço da mobilização social no país desde junho de 2013 (o ano passado foi de muitas mobilizações e 2015 tende a ser também) é outro sintoma do esgotamento desse mesmo modelo”. Foi assim que Guilherme Boulos, dirigente do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), definiu o momento político em que se encontra o país, em entrevista ao Correio da Cidadania, 03-02-2015.
Na conversa, que visa analisar um complexo início de ano, Boulos lembrou do clima eleitoral, quando um discurso à esquerda de Dilma se beneficiou do medo da volta do PSDB ao poder central, com um neoliberalismo “puro sangue”. Para surpresa de muitos, mas não todos, os tão denunciados “retrocessos foram encarnados pelo novo mandato petista”, que incorporou por inteiro o programa imputado apenas a um eventual mandato de Aécio. Assim, o líder do principal movimento de moradia do país não espera grandes avanços em nenhuma área social, inclusive a da moradia.
“O movimento buscou propor, ao dialogar com o governo e a presidenta no ano passado, modificações importantes no Minha Casa Minha Vida. Mas, lamentavelmente, não temos nenhuma perspectiva de que as modificações ocorram, no sentido de o programa ser menos voltado ao lucro das construtoras, e mais voltado à qualidade das habitações e à gestão popular e direta dos projetos. Todas as sinalizações do governo são de que o programa, quando começar a andar, virá com os mesmos vícios das edições anteriores”, criticou.
Além de prever um ano de fortes mobilizações sociais, no esteio dos últimos dois, Guilherme Boulos também tratou das articulações com centrais sindicais e outros setores governistas para o que pode vir a ser uma ampla “Frente de Esquerda”. Nesse sentido, deixou claro que de modo algum tal iniciativa visa buscar conciliações e caminhos institucionais, mas uma agenda comum de lutas do interesse das classes populares.
“Não podemos ter peio de sentar com setores governistas e de relação histórica com o PT. A contradição não é nossa. É dos setores que apoiam o governo e que estão sendo forçados pelos ataques do próprio governo a se mobilizar. É um fator positivo na conjuntura. É fundamental que cada ataque do governo seja respondido à altura pela mobilização popular. Uma frente dessa natureza é, para nós, uma necessidade”, explicou.
Eis a entrevista.
Como encarou a vitória de Dilma para um segundo mandato e, especialmente, o rumo que se insinua, a partir das escolhas ministeriais da presidente?
As eleições do segundo turno foram extremamente polarizadas e também tiveram um componente de mobilização social que não víamos há vários anos. Houve, em dado momento, um alinhamento do setor mais tradicional da direita e até setores da extrema-direita em torno da candidatura do Aécio Neves. Numa parte importante da sociedade e dos trabalhadores, gerou-se um receio quanto ao risco de um maior retrocesso.
É importante pontuar que as políticas dos 12 anos de governos do PT foram essencialmente conservadoras, não foram políticas que enfrentaram os grandes desafios, no sentido de buscar saídas para um projeto popular de país. As reformas estruturais não foram pautadas. De todo modo, houve um receio, naquele momento, de que uma vitória do Aécio representasse um retrocesso nos pequenos avanços do período, como o maior investimento social, em favor de uma política neoliberal puro sangue, de ataque frontal aos direitos trabalhistas.
No entanto, mal acabaram as eleições e vimos aquele risco de retrocesso ser encarnado pela própria Dilma, embora na eleição tenha guinado à esquerda em seu discurso. Mas ela não deu qualquer sinalização aos setores de esquerda que lhe deram apoio, crítico ou não, no segundo turno, e deu todas as sinalizações ao mercado, realizando integralmente o programa defendido por Aécio Neves: aumentos sucessivos de taxas de juros (já há três meses), aumento do combustível, declaração de abertura de capital da Caixa Econômica Federal, indicação de um dirigente do Bradesco pra conduzir a economia do país e, mais recentemente, ataques diretos a direitos trabalhistas, como seguro-desemprego e pensões, além de cortes em investimentos sociais. Tal cenário caracteriza como a Dilma encarnou o retrocesso.
Portanto, para nós, do MTST, está bem claro que 2015 será um período de grandes mobilizações contra esses ataques que querem fazer os trabalhadores pagarem pela crise, ao lado de uma plataforma de esquerda e popular, que pedirá avanços para o Brasil.
Como liderança do MTST, como acredita que deva caminhar o tema habitacional neste governo, especialmente em um ano que promete grave e profunda recessão?
Pois é. O programa Minha Casa Minha Vida 3, que pretende construir 3 milhões de casas, já foi lançado duas vezes, e não foi iniciado até agora. Foi lançado em junho passado, depois no discurso de posse, mas até agora não se deu 1 real para o programa. O Ministério das Cidades, que opera o programa, é o segundo que mais sofreu cortes no contingenciamento da tesoura do Levy, atrás apenas da Educação. Assim, a primeira questão é a dúvida sobre o fato de haver, ou não, recursos para viabilizar o programa.
Porém, mesmo que tais recursos sejam empenhados, e nós acreditamos que em algum momento serão, porque há um grande interesse das construtoras, do capital da construção civil e do setor imobiliário no andamento do programa, tudo será feito de acordo com os interesses desses mesmos grupos.
O movimento buscou propor, ao dialogar com o governo e a presidenta no ano passado, modificações importantes no programa Minha Casa Minha Vida. Mas, lamentavelmente, não temos nenhuma perspectiva de que as modificações ocorram, no sentido de o programa ser menos voltado ao lucro das construtoras, e mais voltado à qualidade das habitações e à gestão popular e direta dos projetos. É o contrário. Todas as sinalizações do governo são de que o programa, quando começar a andar, virá com os mesmos vícios das edições anteriores.
O que tem a dizer sobre as manifestações e protestos que mudaram a tradicional cara pacata de anos que se iniciam, e tomam conta de 2015?
2015 foi o ano que começou antes do carnaval. E com muita intensidade. Começou com as respostas aos ataques feitos pelos próprios governos. O tema das tarifas de transporte está no país todo, pois em todas as capitais e grandes cidades houve aumento, o que tem gerado, e deve continuar gerando, mobilizações contra esse que é um ataque à economia popular.
Ao mesmo tempo, começam a surgir mobilizações quanto ao tema da água, particularmente em São Paulo, por conta da política desastrosa do governo Alckmin – mas tende também a afetar outros estados do Sudeste. Tem também a moradia. Com o não lançamento do Minha Casa Minha Vida 3, temos um vácuo. Não se pode contratar, pois os recursos do programa 2 acabaram e o 3 ainda não foi lançado. Ou seja, temos um período sem contratações de habitação popular no país, o que tende a acirrar tensões.
O MTST já realizou três mobilizações neste ano e realizará mais. Além do mais, teremos a mobilização encabeçada pelas centrais sindicais, mas também com o apoio do conjunto do movimento social brasileiro contra o ataque aos direitos trabalhistas. Na semana passada, já tivemos um dia de luta nesse sentido e teremos outros nas próximas semanas.
É fundamental que cada ataque do governo seja respondido à altura pela mobilização popular. O MTST e outros movimentos temos construído o enfrentamento a essa linha de fogo, pra não deixar os ataques sem resposta.
Portanto, vocês têm clara a necessidade de atuarem em conjunto com outros segmentos, inclusive pelos interesses do próprio movimento de moradia.
Sem dúvida. A própria pauta do MTST não é estritamente pela moradia. No ano passado deixamos isso muito claro, com mobilizações em torno de vários outros temas urbanos. O MTST é um movimento de luta por reforma urbana e transformação da sociedade. Mesmo o sem teto que luta por uma casa precisa de água na torneira e pega transporte público pra ir trabalhar todo dia. Portanto, são pautas articuladas.
Mas não é só. Temos participado e estimulado a construção de uma frente ampla pelas reformas populares e contra os ataques aos direitos sociais no país, para que a luta seja travada em maior escala.
Nesse sentido, como explica e o que pensa da estratégia de aproximação e formação de uma agenda comum de lutas entre os novos movimentos e partidos e a esquerda mais institucional e governista?
Para nós, é essencial, numa frente articulada, saber a plataforma que se defenderá e a forma de mobilização a ser adotada. A frente que queremos construir é com plataforma caracterizadamente de esquerda, em favor de reformas populares e estruturais, e contra o ataque aos direitos trabalhistas, inclusive do próprio governo petista. É uma frente voltada ao processo de mobilização, não para costuras institucionais. Uma frente dessa natureza é, para nós, uma necessidade.
Não podemos ter peio de sentar com setores governistas e de relação histórica com o PT. Para nós do MTST isso não é um problema, porque temos segurança da nossa posição, que demonstramos no dia a dia, tanto nas mobilizações como nos discursos e posições políticas do movimento, de completa autonomia e crítica a qualquer governo.
Pensamos que quanto mais amplo for e quanto mais setores pudermos juntar numa plataforma unificada de esquerda, mais poderemos avançar em políticas sociais pelo país.
Acredita que entidades como a CUT, por exemplo, que começam a ir às ruas, mas cujas pautas e atuação nos últimos anos foram visivelmente rebaixadas diante do atrelamento ao governismo, possam de fato intensificar uma postura mais reivindicatória e de enfrentamento, em função da grave recessão que se anuncia?
É o processo que vai mostrar. Essa contradição não é nossa. É dos setores que apoiam o governo e que estão sendo forçados pelos ataques do próprio governo a se mobilizar. Da parte do MTST, não existe contradição alguma. No entanto, a atuação do governo petista no final de 2014 e começo de 2015 tem sido tão ofensiva às pautas dos trabalhadores que forçou os próprios setores historicamente ligados ao governo a darem resposta e se mobilizarem.
É um fator positivo na conjuntura. Não é problema. Seria um problema maior se, mesmo com tais ataques, esses setores ficassem parados, contendo suas bases. Temos de ver esses fatos, pelo ponto de vista mais amplo da conjuntura, como fatores positivos, a serem potencializados. O limite disso tudo é o processo que irá revelar.
Finalmente, com tantas crises que se anunciam, algumas dentre as mais graves da história do país, como o desabastecimento de água, energia, além das pautas mais discutidas nessa entrevista, você se arrisca decretar o esgotamento do modelo político e de desenvolvimento econômico adotado pelo país nas últimas décadas?
Para nós, existe uma análise consolidada de que o modelo petista de governabilidade se esgotou. O petismo produziu, particularmente nos primeiros seis anos de Lula, uma tentativa de amplo processo de conciliação de classes na sociedade. Consegue-se tal conciliação por um período, e com relativo sucesso, se tivermos as forças sociais desmobilizadas e, fundamentalmente, crescimento econômico.
O que permitiu ao Lula produzir lucros recordes ao setor financeiro, às empreiteiras, ao agronegócio, enfim, uma bonança inédita ao grande capital, ao mesmo tempo em que se ampliaram o salário mínimo e o crédito aos trabalhadores, além de programas sociais como o Bolsa Família e o próprio Minha Casa Minha Vida? Foi o período de crescimento econômico. Entre 2003 e 2010, a média de crescimento era de 4% ao ano.
O problema é que veio a crise de 2008, com forte queda na exportação de produtos primários, particularmente para a China. Os preços caíram, a economia chinesa desacelerou e esse crescimento foi para o buraco. A média de crescimento dos 4 anos de Dilma foi de 1,5% ao ano. Diminuiu-se a margem de manobra para a conciliação, o que força o governo a tomar opções mais claras e drásticas. Ao mesmo tempo, isso gera reações e resistências em setores organizados da sociedade.
Vimos que a opção da presidente Dilma de construir uma política neoliberal logo no início de 2015 é expressão do esgotamento de um modelo. Da mesma forma, o avanço da mobilização social no país desde junho de 2013 (o ano passado foi de muitas mobilizações e 2015 tende a ser também) é outro sintoma do esgotamento desse mesmo modelo.
O papel de uma esquerda socialista e combativa no país é apontar a perspectiva para um novo modelo político e econômico. E temos clareza de que isso não será alcançado por meio de disputas institucionais. Será alcançado por meio de construções de processos sociais, amplas mobilizações e intensificação das lutas populares no país.
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‘O modelo petista de governabilidade se esgotou’. Entrevista com Guilherme Boulos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU