26 Janeiro 2015
A mais recente coletiva de imprensa a bordo do avião papal, dada no retorno de Manila na segunda-feira passada, foi uma sensação total. Ela gerou um punhado de frases singulares, entre estas está a de que os católicos não têm que se “reproduzir como coelhos” e o seu desejo de mandar um par de burocratas corruptos argentinos “para o lugar onde o sol não brilha”.
Houve, no entanto, dois momentos que se perderam, de alguma forma, entre as perguntas e respostas. Ambos são importantes para se compreender aquilo que é, cada vez mais, um traço definidor deste papa: o seu sentido de urgência.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 25-01-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Um destes tem a ver com um livro; o outro, com uma viagem.
Como em uma outra ocasião, Francisco fez uma digressão para invocar um romance apocalíptico de 1907 escrito por um britânico convertido ao catolicismo depois de ter sido anglicano. O livro se chama “O Senhor do Mundo”. A obra apresenta uma visão distópica de um conflito final entre o humanismo secular e o catolicismo, com o confronto acontecendo nos campos do Armageddon.
Robert Hugh Benson, seu autor, retrata um mundo em que o marxismo e o secularismo vingaram, culminando numa figura “salvadora” carismática, cada vez mais reconhecível como o Anticristo, que surge para liderar um governo mundial. Ataques contra símbolos cristãos e fiéis acontecem aos montes, e a eutanásia é amplamente praticada.
Francisco elogiou o romance em novembro de 2013, no contexto de uma homilia em que denunciou aquilo que chamou de “progressivismo adolescente”. Ele retornou ao “O Senhor do Mundo” na última coletiva dada a bordo do avião papal, dizendo: “Aconselho que leiam o livro” porque ele explica o que o papa quis dizer ao se referir à “colonização ideológica” durante uma sessão com 20 mil famílias filipinas em Manila.
Alguns acham o romance presciente, outros um pouco “fora da realidade”. Para propósitos analíticos, o que importa é o seu aguçado sentido de que o mundo está chegando a um ponto de inflexão e não há muito tempo disponível para se consertar as coisas.
Isto não significa dizer que Francisco acredita que o dia do juízo final está a virar a esquina. No entanto, a sua afeição pelo romance parece estar acompanhada da crença de que a humanidade está fazendo algumas escolhas definitivas, hoje – da economia ao meio ambiente –, e que, se fizermos as escolhas erradas, as consequências poderão ser muito piores do que podemos imaginar.
Tudo isto nos leva a uma segunda intuição interessante ocorrida na coletiva de imprensa de segunda-feira, que foi a visão geral de Francisco sobre a programação de suas próximas viagens.
Além da vigem de setembro aos Estados Unidos, Francisco disse que planeja visitar três países latino-americanos este ano – Equador, Bolívia e Paraguai – e mais três no próximo ano, incluindo Chile, Argentina e Uruguai, com o Peru sendo provavelmente encaixado em uma destas viagens.
O pontífice também informou que pretende visitar duas nações africanas no fim de 2015, dizendo que estes possivelmente serão a Uganda e a República Centro-Africana.
Esta é uma série ambiciosa de planos, com a intenção de ir à República Centro-Africana destacando-se como especialmente audaciosa.
O país está ainda em conflito interno, com ataques ocorrendo entre muçulmanos e cristãos. Por causa da violência, a República Centro-Africana está atualmente proibida de receber viagens, numa decisão tomada pelo Conselho de Segurança da ONU, decisão recentemente estendida até o fim de janeiro de 2016.
Tecnicamente, Francisco não estaria violando esta proibição ao chegar em novembro ou dezembro ao país, já que a proibição contém uma isenção quando for uma “obrigação religiosa”. Podemos nos perguntar, no entanto, por que o pontífice não iria preferir esperar que os ataques cessem.
Como nas Filipinas na semana passada, quando o papa estava programado para voar durante uma tempestade tropical com a finalidade de visitar os sobreviventes do supertufão de 2013, imagina-se que os assessores e o pessoal da segurança irão persuadir Francisco a repensar esta viagem.
Com base em sua insistência na semana passada em seguir adiante como plano, Francisco pode não estar em clima de voltar atrás nesta proposta de cancelar a programação.
Desde a sua eleição há dois anos, Francisco lançou um turbilhão de iniciativas: desde a reforma do Vaticano a documentos importantes, de iniciativas diplomáticas ousadas a encontros e gestos espontâneos. Às vezes, parece como se ele estivesse tentando implementar, em seus dois primeiros anos, atividades que levariam décadas na maioria dos outros papados, levantando a interrogação do porquê ele está com esta pressa.
Dada as repetidas referências ao livro “O Senhor do Mundo”, a sua pressa pode não estar relacionada somente com o palpite de que, aos 78 anos, ele teria pouco tempo para agir, ou de que ele fora eleito para um mandato de reforma.
Pouco antes da aposentadoria em novembro passado, o Cardeal Francis George, da Arquidiocese Chicago, disse nem entrevista ao sítio Crux que gostaria de perguntar a Francisco sobre a sua “visão escatológica de que o anticristo está entre nós”, e se isto explica o ritmo intenso do papa.
(Na teologia católica, “escatologia” é o estudo do fim dos estágios da vida humana e da história, caracterizando o que é às vezes dito como os “quatro fins”: morte, juízo, inferno, paraíso.)
“Ninguém parece interessado nisso, mas eu acho fascinante”, disse George. “Em relação ao papa, espero que antes de morrer eu tenha a oportunidade de lhe perguntar: Como quer que a gente entenda o seu ministério, qual seria a chave de seu ministério?”
Com efeito, Francisco pode já ter respondido à pergunta do Cardeal George.
O comentário de segunda-feira sobre “O Senhor do Mundo” sugere que a sua resposta possa ser algo como: “Sim, Virgínia, há um demônio, um anticristo, e um fim dos tempos (...) e se quisermos evitar o pior, é melhor começarmos a fazer algo”.
Católicos africanos na linha de fogo
Nos últimos dias, o Níger se tornou o mais recente epicentro da violência islâmica radical.
Níger é um país com 17 milhões de habitantes localizado na África ocidental, com esmagadora maioria muçulmana onde uma minúscula comunidade de 22 mil católicos encontra-se na linha de fogo por causa da reação muçulmana à revista satírica francesa Charlie Hebdo, com suas representações zombeteiras de Maomé.
Segundo relatos divulgados pela imprensa, 15 pessoas foram mortas numa onda de ataques recentes, com mais de 130 feridos. Cerca de 45 igrejas, um orfanato e uma escola cristã teriam sido destruídas em Niamey, capital do Níger.
Em resposta aos ataques, toda a atividade católica no Níger foi suspensa, incluindo a celebração de missas dominicais. Dom Michael Cartateguy, arcebispo de Niamey, disse à Rádio Vaticano na quinta-feira que 12 das 14 paróquias do país foram completamente saqueadas.
“Não deixaram nada; tudo foi queimado”, disse Cartateguy.
O prelado falou que os católicos no Níger estão enfrentando tempos difíceis para entender o que está acontecendo, após anos de coexistência pacífica.
“Não temos nada contra a comunidade muçulmana; pelo contrário”, disse o religioso. “O que temos de fazer é fortalecer, ainda mais, os laços de unidade e fraternidade que já temos construído”.
Ao ver a reação e a solidariedade global que se seguiu aos ataques de 7 de janeiro em Paris, alguns líderes católicos na África disseram que gostariam de ver a mesma mobilização mundial em memória das vítimas africanas.
Há duas semanas, 23 pessoas foram mortas na Nigéria por três mulheres-bomba suicidas, uma supostamente tendo apenas 10 anos de idade. Na semana passada, centenas de pessoas foram assassinadas enquanto militantes do Boko Haram tomavam o poder numa cidade do estado de Borno, na Nigéria.
Dom Ignatius Kaigama, da Arquidiocese de Jos, localizada na região central da Nigéria onde o Boko Haram é ativo, acusou o Ocidente de expressar uma reação muito maior pelas mortes de 12 pessoas em Paris do que pelos milhares de africanos assassinados na Nigéria e em países vizinhos.
“Não se esqueçam de que estamos aqui, de que nós sofremos, que muitas pessoas foram mortas, que muitos precisaram se retirar de suas terras, que as pessoas não têm um lugar para morar”, disse Kaigama.
Disse que as vítimas do Boko Haram precisam do mesmo espírito de solidariedade que as vítimas do ataque ao Charlie Hebdo receberam.
“Precisamos que este espírito [de solidariedade] esteja presente entre nós”, falou Kaigama. “Não só quando um ataque acontece na Europa, mas quando ele acontece na Nigéria, no Níger, em Camarões”.
Em entrevista dada ao sítio Crux em setembro, o Cardeal Timothy Dolan, de Nova York, pediu que o Papa Francisco se mostre tão solícito quanto possível em ajudar os prelados como Kaigama.
“Trabalhemos com Ignatius Kaigama em Jos, pois ele precisa de nós”, disse Dolan. “Precisamos apoiar os bispos que estão em lugares difíceis”.
Este contexto torna o desejo do pontífice de visitar a República Centro-Africana muito mais dramático, com facções armadas em ambos os lados da divisão muçulmano/cristão sendo acusadas de crimes de guerra e de violações dos direitos humanos.
Esta viagem dá a Francisco uma oportunidade de não só agir como um pacifista, mas também de deslegitimar o extremismo religioso e a violência, independentemente de onde venham – inclusive lugares onde os cristãos não são as vítimas, mas os perpetradores. Um líder de uma milícia cristã na República Centro-Africana, por exemplo, foi detido pelas forças de paz da ONU em janeiro e acusado por assassinato, estupros e saques.
A urgência neste caso pode explicar por que Francisco quer fazer a visita ao continente africano. Dado o que mostram os exemplos do Níger e da Nigéria, dificilmente a viagem papal estaria limitada somente à República Centro-Americana.
Depois da viagem papal, brilha a estrela de um cardeal filipino
Apresento aqui um pensamento final sobre a estada do Papa Francisco nas Filipinas, que terminou com um recorde histórico de pessoas participando de uma missa papal. Estima-se que 6 a 7 milhões de filipinos desafiaram uma tempestade tropical para participar na liturgia final do papa no país.
Além de outros aspectos que mereceriam destaque, a viagem produziu um novo candidato a ser o melhor anfitrião de uma visita papal: o Cardeal Luis Antonio “Chito” Tagle, 57 anos, arcebispo de Manila, apelidado de o “Francisco asiático” por causa de suas semelhanças filosóficas com o pontífice argentino.
Do ponto de vista logístico a estada ocorreu muito bem, o que não é pouca coisa dadas as grandes multidões e do clima atmosférico ameaçador. Aqui, Tagle merece algum crédito por fazer as coisas acontecerem.
Afora isso, Tagle foi ubíquo durante a visita papal por, entre outras coisas, estar sempre presente no briefing diário concedido pelo porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi.
Isto é algo que os anfitriões, em sua maioria, não se importam em fazer, o que permitiu a Tagle dizer algumas coisas interessantes. Na sexta-feira, por exemplo, o presidente filipino Benigno Aquino usou o seu discurso de acolhida ao Papa Francisco para proferir um ataque um tanto desnecessário contra os bispos locais, ainda que ele – o presidente – tenha isentado Tagle da acusação, chamando-o de uma “alma gêmea”.
As reações à fala quase se tornaram a principal história na imprensa local, até que Tagle se manifestou num briefing dizendo que Francisco ficaria na cidade mais alguns dias apenas, enquanto que eles teriam bastante tempo para falarem sobre Aquino.
A manifestação parece ter funcionado, e no sábado de manhã a discussão sobre a fala do presidente tornara-se quase uma nota de rodapé na imprensa.
Quase sempre os anfitriões fazem alguns discursos para o papa: um para recebê-lo, e outro para despedi-lo; geralmente estas falas são esquecidas tão logo elas são pronunciadas. Tagle, no entanto, usou a sua plataforma para deixar uma impressão real, o que não é tarefa fácil quando se tem alguém como Francisco atraindo a atenção de todos.
Durante uma sessão na catedral de Manila na sexta-feira, Tagle ressaltou que o prédio havia sido danificado e destruído várias vezes ao longo dos anos, incluindo um terremoto no século XIX e um bombardeio durante a Segunda Guerra.
“Esta catedral foi destruída várias vezes, mas ela se recusa a desaparecer”, disse Tagle. “Ela corajosamente se ergue das ruínas – exatamente como o povo filipino”.
Tagle relacionou a presença do papa a um antídoto contra as catástrofes mais recentes no país, incluindo um tufão e um terremoto que atingiu a nação em 2013.
“Agora, enquanto muitas pessoas simples do nosso país estão começando a se reestruturar após estes desastres, o senhor, Santo Padre, vem até nós”, disse ele. “Trazes fogo não para destruir, mas para purificar. Trazes um terremoto não para destruir, mas para despertar”.
Estas palavras pareceram capturar o sentimento de milhões de filipinos.
No domingo, Tagle falou novamente, durante a despedida ao Papa Francisco na missa histórica.
Ele disse, despedindo-se do papa: “Todos os filipinos querem ir consigo!” Os que assistiam soltaram uma risada, ao que Tagle imediatamente sorriu e acrescentou: “Mas não para Roma”.
Não para Roma, disse ele, mas sim “para as periferias: para os barracos, para as celas das prisões, para os hospitais, para o mundo da política, das finanças, artes, ciências, da cultura, educação e comunicação social”.
Eles querem seguir Francisco nestes lugares, disse Tagle, para “trazerem a luz de Jesus”.
Ao final, Tagle conduziu a multidão a entoar alguns cantos de despedida ao papa, e foi possível perceber a partir da resposta que as pessoas estavam com ele, vendo nele não simplesmente um burocrata da Igreja, mas, em certo sentido, um representante.
Qualquer um que tenha assistido a performance do Cardeal Tagle provavelmente saiu com a impressão de que se estava olhando para o futuro do catolicismo na Ásia, e talvez que se estava diante de um candidato a desempenhar um papel ainda maior na Igreja.
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Crenças apocalípticas podem explicar por que Francisco está com pressa. E mais: Católicos africanos em linha de fogo, e brilha a estrela de um cardeal filipino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU