21 Janeiro 2015
Talvez Francisco tenha errado ao ameaçar o soco contra quem insulta as religiões, mas o precedente existe, e o soco deveria ser – acredito eu – uma norma que vete e puna quem zombar das religiões. Você pode criticá-las, certamente, mas não insultá-las. Este é o soco.
A opinião é de Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, 18-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O terrorismo do Califado e da Al-Qaeda combate ao mesmo tempo contra os muçulmanos que seguem as máximas do Alcorão e não insultam as outras religiões e contra o Ocidente e os seus valores de liberdade. Trata-se, portanto, de uma guerra dupla, liderada por células do terrorismo que se organizam livremente, às vezes estão em contato entre si, outras vezes esses contatos se limitam a cerca de 20 pessoas ou pouco mais. É uma nuvem de poeira, e isso aumenta o seu perigo. A nuvem de poeira do terror, de fato, requer uma estratégia, uma "intelligence" centralizada, um comando não apenas militar, mas também judiciário, social, econômico.
O valor principal do Ocidente é a liberdade: liberdade de expressão, de religião, de movimento migratório e de comportamentos. É por isso que, para enfrentar essa guerra, para tornar inofensiva essa nuvem de poeira, o comando central deve necessariamente se estender para esses setores, entre as quais está incluído também o princípio fundamental de um limite para as provocações que podem provocar reações violentas e transformar a nuvem de poeira terrorista em um verdadeiro exército que combina, ao mesmo tempo, a táticas da nuvem de poeira e a estratégia centralizada do recrutamento, da preparação militar, do financiamento e da escolha dos alvos.
A Europa é um dos palcos dessa guerra. A resposta militar, diplomática, antiespionística requer, portanto, um comando único. Esse, paradoxalmente, é o aspecto positivo do que está acontecendo: a unidade política da Europa não é uma utopia, mas está se tornando e deve se tornar uma realidade. É preciso que a opinião pública tome consciência disso.
É preciso que as instituições europeias se transformem para corresponder a uma necessidade e, acima de tudo, é preciso que os governos nacionais estejam prontos para cessões de soberania que o comando único comporta.
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Essa guerra tem uma conotação religiosa: o Islã está dividido em dois, o cristianismo é o primeiro alvo dos fundamentalistas, os judeus são o outro alvo, mas há um terceiro, que não deve ser ignorado, e é o Estado laico. De fato, se olharmos com atenção para o que está acontecendo, o fundamentalismo religioso tem como primeiro objetivo o de abater o Estado laico, ou seja, a defesa da liberdade.
Alguns lembraram que a França é o país de Voltaire. Eu diria que a Europa é o país de Voltaire. Os seus ensaios, os seus contos, o seu teatro, os seus artigos na Encyclopédie eram dirigidos contra o Infame. Ele nunca especificou quem era o Infame, na maioria dos casos eram os jesuítas da época que guiavam o pensamento reacionário.
Esse foi Voltaire. Junto com Diderot, foram os dois defensores da liberdade, que contribuíram para o nascimento das Constituições e das Repúblicas do futuro.
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O Papa Francisco é um liberal? Perguntei-me várias vezes isso e ainda mais me pergunto hoje, depois da história do soco por ele ameaçado contra quem insultar a sua mãe, isto é, a Igreja, as religiões. Francisco é sustentado pela fé. Pode um homem de fé ser liberal?
Certamente sim, a história da Europa e da Itália está cheia de pessoas de fé e liberais, mas um pontífice liberal nunca houve na Igreja de Roma antes de Francisco. De muitas partes, ele foi acusado de ser comunista, mas a acusação não se manteve de pé depois da resposta dada por ele: eu prego o Evangelho. E o que diz o Evangelho sobre o tema da liberdade? O que diz a doutrina da Igreja Católica?
Há um ponto de fundo na doutrina e nas páginas da Bíblia que relatam a criação: o Criador nos reconheceu o livre-arbítrio, a liberdade de consciência para escolher conscientemente o bem e o mal.
O bem comum, para um liberal, é o Bem, porque nós, pessoas humanas, somos uma espécie sociável, e o bem comum, a "Caritas", o "agape" são – deveriam ser – as nossas características distintivas.
O Papa Francisco prega essas coisas que, para um liberal, são igualmente verdades. E as pratica, considerando que um dos maiores pecados é se apropriar de Deus contra o dos outros. "Deus não é católico", me disse Francisco em um dos nossos encontros. "É ecumênico, é um Deus único que cada religião lê através das próprias Sagradas Escrituras", sabendo, porém, que o Deus é único, não tem nome, não tem figura.
Mas o papa não se esquece de que, por muitos séculos da sua história, os católicos também cometeram esse pecado. Com as Cruzadas, com a Inquisição, com a noite de São Bartolomeu, com a guerra dos camponeses, com a venda das indulgências. Não basta pedir desculpas por esses pecados. A Pontífice Romano deve despojar a Igreja de todo poder temporal e construir uma Igreja missionária, que não se proponha o proselitismo, mas a pregação do bem comum. E é isso que o Papa Francisco está construindo desde que foi eleito pelo conclave.
Na viagem de avião entre o Sri Lanka e as Filipinas, Bergoglio, porém, disse uma frase que provocou um debate acalorado: "Quem quer que insulta a minha mãe espere um soco". A quem ele se referia era evidente; não aos terroristas ou não apenas a eles, que fizeram coisas bem mais graves, mas, provavelmente, ao jornal Charlie Hebdo, que insulta Maomé e, portanto, a religião por ele representada. Cristo disse, segundo os Evangelhos, para dar a outra face a quem lhe insulta. Francisco, ao contrário, ameaça-o com um soco. É um erro? Uma contradição?
Provavelmente, é um erro. Para mim, pessoalmente, o Charlie Hebdo é um jornal que não agrada, de fato, e eu não vestiria nenhuma insígnia onde esteja escrito "Eu sou Charlie". Infelizmente, alguns deles pagaram com a morte aquela sátira deliberadamente provocativa, e eu lamento muito, mas não sou "Charlie".
E o papa? Ele também chorou pelos mortos e rezou por eles, mas, se insultarem a mãe, isto é, as religiões, ele ameaça com um soco. Ele se esqueceu de dar a outra face?
Cristo deu esse ensinamento, mas, quando considerou oportuno, Cristo tomou o bastão e bateu sem economizar naqueles que vendiam mercadorias roubadas no Templo, corrompiam os rabinos do Sinédrio e faziam de tudo. Lembro-me que, na nossa última conversa do dia 10 de julho passado, o papa me disse: "Como Jesus, eu vou usar o bastão contra os padres pedófilos". Jesus era doce e manso, mas, quando considerava necessário, usava o bastão.
Talvez Francisco tenha errado ao ameaçar o soco contra quem insulta as religiões, mas o precedente existe, e o soco deveria ser – acredito eu – uma norma que vete e puna quem zombar das religiões. Você pode criticá-las, certamente, mas não insultá-las. Este é o soco. Voltaire não concordaria, mas não podemos pedir que Francisco seja voltairiano. (…)
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O soco de Francisco e a lição de Voltaire. Artigo de Eugenio Scalfari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU