30 Outubro 2017
“O caminho de releitura da reforma protestante realizado neste ano comemorativo assumiu um forte valor ecumênico e de reconciliação, ajudando as Igrejas a passarem ‘do conflito à comunhão’”.
A opinião é do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por Avvenire, 29-10-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na nossa leitura da história, sempre precisamos que cada “virada epocal” seja marcada por uma data, um lugar e um evento precisos, e – quando estes não são suficientemente definidos ou significativos, eles são coloridos com ênfases e aspectos nem sempre verificáveis.
Assim, o lento processo que leva a uma realidade inimaginável até pouco tempo antes se cristaliza em um ponto preciso da história, até fazer com que ela assuma conotações lendárias. Aconteceu assim com a Reforma protestante.
Já é opinião predominante entre os historiadores que a imagem tão nítida do monge agostiniano Martinho Lutero – que, na manhã de 31 de outubro de 1517, afixou no portão da igreja do Castelo de Wittenberg uma folha contendo 95 teses –, com toda a probabilidade, é um evento que nunca ocorreu nas modalidades que a iconografia clássica descreveu durante séculos.
Porém, hoje, a 500 anos exatos daquele dia, encontramo-nos justamente fazendo memória de tudo o que aquela imagem encerra: um profundo e sofrido desejo de reforma evangélica da única Igreja de Deus. Na verdade, a Igreja sempre sentiu nos seus membros a necessidade, o anseio de conversão, de reforma; mas, se, no primeiro milênio, essa “reforma” tem um significado essencialmente individual e espiritual de conversão interior, no segundo milênio, ela foi invocada como renovação da Igreja, da sua forma institucional, como retorno à primitiva forma ecclesiae: um ato de obediência ao Espírito e “ao que o Espírito diz à Igreja”.
Mas o que pode indicar o termo “reforma”, reformatio? No cristianismo, que é recepção da revelação, lhe é dada uma forma canônica, mais do que exemplar: a forma Evangelii, a forma da vita Jesu, a forma ecclesiae. Portanto, a reforma é uma ação para levar novamente à forma canônica aquilo que, com o passar do tempo, foi obscurecido, ferido ou até mesmo se perdeu: é ação de conversão, de retorno.
Acima de tudo, esse movimento deve ser incessante, “até que o Senhor venha”: justamente na expectativa daquele dia da parusia, a Igreja, a noiva, deve se embelezar para o seu esposo (cf. Ap 21, 2), deve se reformar para estar de acordo com a forma em que o Noivo espera. Nesse sentido, a reforma da Igreja é epiclese da parusia.
Mas o termo “reforma”, especialmente no segundo milênio no Ocidente, teve o significado de retorno à primitiva forma perdida ou muito contradita. A tradição cristã sempre olhou para os sumários dos Atos dos Apóstolos (At 2, 42-45; 4, 32-35; 5, 12-16), nos quais é apresentada a Igreja nascida do Pentecostes, como descrição da Igreja desejada pelo Senhor e moldada pelo Espírito Santo, portanto, como a sua forma canônica em todos os tempos da história.
A descrição da comunidade primitiva inspirou constantemente a vida cristã, embora sempre seja necessário reiterar que somente o Senhor Jesus pode reformar a Igreja, assim como só Deus pode fazer o dom da conversão, como afirmava Santo Agostinho: “Justamente aquele que te formou será também o teu reformador”.
Sim, a Igreja, como instituição humana, como organismo na história, deve ser reformada e purificada, para se adequar à vontade do seu Senhor. Só uma surdez institucional a reivindicações de reforma presentes na Igreja do Ocidente desde o início do segundo milênio levaria a vontade reformadora de Lutero aos resultados dilacerantes que conhecemos: a reforma tão desejada, por causa do seu atraso, se tornaria cisma, ruptura, divisão irreparável da Igreja Católica.
Depois dos acontecimentos da Reforma protestante, de fato, haverá uma Reforma católica (longamente definida como Contrarreforma) devida ao Concílio de Trento e, sobretudo, aos santos reformadores e às suas fundações religiosas.
No entanto, a palavra “reforma” não gozaria de boa fama na Igreja Católica depois do grande cisma do século XVI, definido ainda em 1937 pelo Dictionnaire de théologie catholique como “a revolução protestante”. Presente no coração do século passado, como título de um livro decisivo de Yves Congar – “Verdadeira e falsa reforma da Igreja” – o termo “reforma” se repete apenas duas vezes nos documentos conciliares, e ambas as vezes no decreto sobre a unidade dos cristãos, Unitatis redintegratio.
Existe tamanha desconfiança em relação a esse termo que o texto oficial em latim da encíclica Ecclesiam suam, de Paulo VI (1964), traduz o vocábulo italiano “reforma” presente no manuscrito do papa com o mais neutro “renovatio”.
A partir do Vaticano II, no entanto, o termo “reforma” foi reintroduzido no debate eclesial católico, embora raramente apareça nos textos do magistério papal. O seu uso com o Papa Francisco tornou-se mais frequente, quase como um termo programático do seu pontificado: reforma, poderíamos dizer com o Concílio de Constança (1414-1418), “in fide et in moribus, in capite et in membris”, isto é, reforma de toda a Igreja, do papado a cada batizado.
Assim, o caminho de releitura da reforma protestante realizado neste ano comemorativo assumiu um forte valor ecumênico e de reconciliação, ajudando as Igrejas a passarem “do conflito à comunhão”. Estamos, talvez, assistindo àquilo que é desejado pelo já ultracentenário teólogo jesuíta francês Joseph Moingt, no livro que reúne os seus escritos dedicados à urgente reforma da Igreja? O título resume bem o anseio de cada reformador e de cada reivindicação reformadora: o Evangelho salvará a Igreja.
Sim, através da sua obediência ao Evangelho, da sua tentativa, a cada dia, de reforma, a Igreja aguardará a parusia com maior fidelidade ao Senhor, para ser a noiva bela, pronta para o seu Noivo, Jesus Cristo, o Senhor.
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Para a Igreja, sempre é tempo de Reforma. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU