PEC da Segurança Pública, em vez de solucionar questões de fundo, federaliza os problemas das polícias. Entrevista especial com Gabriel Feltran

Para o pesquisador do tema, um efetivo controle externo e social sobre as atividades policiais é o que garantiria uma maior eficiência na atuação dessas corporações que, não raras vezes, são o cerne do problema da segurança pública

Foto: Pedro Guerreiro | Agência Pará

Por: IHU e Baleia Comunicação | 06 Janeiro 2025

Em abril de 2019 militares do Exército dispararam 257 tiros na direção de um carro dirigido por um músico negro na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Ao todo, 62 disparos acertaram o veículo e nove o corpo do condutor, que morreu na hora juntamente com um catador de latinhas que estava no mesmo local. Nesta semana o Superior Tribunal Militar – STM, última instância jurídica penal dos militares, reduziu a condenação inicial dos participantes do crime que era em torno de 30 para três anos em regime aberto.

O caso que abre esta entrevista não é objeto de debate do entrevistado, mas ilustra, ao menos, dois aspectos cruciais da segurança pública no Brasil: a militarização e alta letalidade das forças de segurança. “Todos os especialistas que estudam segurança pública há muitos anos e participam do debate público sobre o assunto, vêm mostrando que o nosso modelo segurança pública produz uma muitíssima alta de letalidade policial, um nível de conflitividade violenta enorme nas cidades e uma, inclusive, vitimização policial alta com uma imensa corrupção policial, porque o policial está achacando cotidianamente os mercados ilegais”, descreve Gabriel Feltran, em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

As “soluções” para este estado de coisas poderia estar na PEC da Segurança Pública, apresentada recentemente pelo governo federal, assinada pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, e por Lula. Isso, porém, não ocorre. “O que a PEC faz é colocar a Polícia Rodoviária Federal – PRF como a polícia ostensiva federal, que receberia muito mais recursos a partir de agora e se tornaria uma polícia militar federal. Ou seja, a PEC, em termos de conteúdo, o que ela faz é militarizar a indução federal das políticas de segurança, caminhando no sentido oposto, na contração de tudo aquilo que os especialistas e aqueles que acreditam em uma segurança pública menos corrupta e mais eficaz, baseada em evidências, sempre apontaram”, critica o entrevistado.

A saída para esta encruzilhada está em garantir maior transparência e controle público sobre as polícias. “Isso tem que ser revertido, não apenas por valores e direitos humanos, mas porque isso produz uma perda de soberania estatal sobre a segurança pública. Quem define a vida e a morte é o soberano na teoria política. Se permitirmos que grupos criminais, fardados ou não, produzam morte, decidam quem vive e quem morre, quem vai ou não ser julgado, o Estado perde sua soberania e a capacidade de regular seu território”, afirma.

“Por último e como outro elemento para um pilar de segurança pública eficiente, republicana, democrática, trabalharíamos com a ideia do controle externo da atividade policial. Algo que é fundamental, básico, constitucional e previsto por lei, mas que não é feito no Brasil. As polícias fazem o que querem no país, não há controle. Os policiais se candidatam, usam farda para fazer campanha política, faz discurso político, se filia a organizações políticas, sendo policial se utiliza do saber estatal da segurança para ganhar dinheiro de forma privada, sem contar na corrupção policial”, complementa.

Gabriel Feltran (Foto: Arquivo pessoal)

Gabriel Feltran é professor no Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), professor pesquisador do CNRS vinculado à CEE Sciences Po. Pesquisador visitante na Universidade de Oxford e Goldsmiths College (2019), professor visitante na Universidade Humboldt (KOSMOS Fellow 2017), no CIESAS México (2015). Autor dos livros Stolen Cars: A Journey Through São Paulo's Urban Conflict (série Wiley SUSC, 2022); The Entangled City: crime as urban fabric in São Paulo? (Manchester University Press, 2020) e da série documental PCC: Poder Secreto (HBOMax 2022) que adapta seu livro em português, intitulado Irmãos: uma história do PCC (2018).

Confira e entrevista.

IHU – O que é a proposta da PEC da Segurança Pública?

Gabriel Feltran – A PEC da Segurança Pública é uma alteração constitucional que altera a Constituição Federal, propondo mudanças na forma de coordenação federal das políticas de segurança. A primeira e mais importante é considerar que o governo federal passa a ser responsável pela Segurança Pública tanto quanto os estados que hoje são os entes federativos responsáveis pela segurança. São os governadores que, em tese, controlam a segurança pública em cada estado. Isso faz com que cada estado atue de modo relativamente independente na segurança pública.

A PEC tem como principal alteração incluir segurança pública nas prerrogativas da União. Essa é a primeira e mais importante medida e ela não é, em si mesma, negativa. É algo que todos os especialistas pedem, assim como existe o Sistema Único de Saúde – SUS, que faz a indução federal das políticas de saúde que depois vão ser implementadas no nível municipal, nós também sempre pedimos que as políticas de segurança fossem organizadas no Sistema Único de Segurança Públicas – SUSPE, que faria com que essas políticas de segurança que hoje são feitas com muita autonomia nos estados, elas tivessem uma coordenação federal e uma mesma linha de atuação.

Nessa medida a PEC avança com a implementação do SUSPE, que é algo que deveria ter sido feito há muito tempo. Agora, se desse ponto de vista formal temos um passo adiante reconhecido por especialistas como Luiz Eduardo Soares, Daniel Hirata, Joana Monteiro e outros, que são pessoas que respeito muito, o conteúdo do que vem junto com essa PEC é um desastre absoluto na minha leitura. Porque todos os especialistas que estudam segurança pública há muitos anos e participam do debate público sobre o assunto, vêm mostrando que o nosso modelo segurança pública, que é militarizado, baseado em polícia ostensiva, em polícia militar, que desprivilegia a polícia judiciária – investigativa – e que produz uma guerra militar contra o crime, produz uma muitíssima alta de letalidade policial, um nível de conflitividade violenta enorme nas cidades e uma, inclusive, vitimização policial alta com uma imensa corrupção policial, porque o policial está achacando cotidianamente os mercados ilegais.

Todo o conteúdo ostensivo, militarizante, ineficaz e corrupto da atuação das nossas forças policiais são reforçados com essa PEC na medida em que, junto com essa de ideia de coordenação federal da segurança pública, essa PEC propõe a criação de uma polícia ostensiva federal. O que seria feito em detrimento da polícia judiciária federal, por isso que rapidamente os delegados da Polícia Federal, por meio das suas associações já se manifestaram contra essa PEC. O que a PEC faz é colocar a Polícia Rodoviária Federal – PRF como a polícia ostensiva federal, que receberia muito mais recursos a partir de agora e se tornaria uma polícia militar federal. Ou seja, a PEC, em termos de conteúdo, o que ela faz é militarizar a indução federal das políticas de segurança, caminhando no sentido oposto, na contração de tudo aquilo que os especialistas e aqueles que acreditam em uma segurança pública menos corrupta e mais eficaz, baseada em evidências, sempre apontaram. E caminha na direção de uma ineficiência que vemos há 40 anos no modelo de segurança pública que temos, agora amplificado para o nível federal.

IHU – A segurança pública não é papel dos estados? Quem se beneficiaria com uma proposta dessas?

Gabriel Feltran – Os estados perderiam autonomia para implementar suas políticas de segurança pública, eles teriam que remeter às diretrizes federais, o que é muito positivo porque a autonomia desses estados nunca produziu segurança pública de qualidade. Mas uma multiplicidade de polícias com uma tendência militarizante-estrutural, com uma dificuldade enorme de produção de dados, uma corrupção local muito forte, a produção de uma disputa de poder que vem da base para cima. Hoje, o policiamento de rua tem mais poder sobre a secretaria de segurança pública do que o governador, porque está captando muito dinheiro na base, pelo achaque aos comércios ilegais e se tornando muito forte na corporação. Então, temos milhares de problemas que uma coordenação federal poderia ajudar a solucionar. Isso se fosse no sentido de uma indução federal de outro modelo de política pública, que se impusesse um modelo eficiente baseado em dados e, ao mesmo tempo, que controlasse externamente a corrupção e a violência policial. O que vemos é o oposto, é a federalização do que vem acontecendo no Brasil, justamente desse modelo corrupto, ineficiente, que não entrega segurança pública para ninguém.

Uma polícia classista

Entregou segurança pública durante algum tempo para as classes médias e para as elites, embora nunca tenha entregue segurança pública para o mundo popular. Agora, deixou já, há bastante tempo, de entregar segurança pública para as classes médias e as elites, a ponto de todo mundo necessitar nessas classes de segurança privada, de seguro do carro, de grade, de câmera, de reconhecimento facial e um aparato que, na verdade, vai dar dinheiro para esses mesmos policiais corrompidos de diferentes maneiras. Inclusive nessa relação muito promíscua das forças de segurança pública com a segurança privada, que vai vender a segurança que deveria ser entregue como política pública para a classe médias e as elites. A pessoa não tem a segurança pública que tem direito e ainda por cima tem que comprar a segurança privada das mesmas pessoas, porque são os donos da companhia de segurança privada que deveriam entregar segurança pública.

Quem se beneficia são esses policiais mercantilizados, que transformaram aquilo que deveriam fazer em modo de ganhar dinheiro, que ganham dinheiro de três fontes. Além dos fundos públicos investidos em segurança, ganham dinheiro da segurança privada e do achaque corrupto aos mercados ilegais – nenhuma dessas três fontes é pequena hoje. O investimento público da segurança pública aumentou consideravelmente nos últimos dez anos, a segurança privada se expande rapidamente no mesmo período e como os mercados ilegais, sobretudo o mercado de cocaína de exportação, também se ampliou bastante na última década, o valor dos acertos, achaques, acordos e pagamentos que se fazem dos criminosos para policiais e outros agentes da ordem corrompidos, para proteger esses mercados ilegais de drogas também aumentou muito.

Em suma, queríamos que outro modelo de segurança pública fosse implementado, baseado em quatro pilares, que discutiremos daqui a pouco, e que acabasse com esse ciclo vicioso de uma segurança pública que produz mais crimes, como temos visto nos últimos 40 anos no Brasil. Um modelo de segurança pública que é parte do problema e não da solução. Queríamos reverter esse problema pedindo uma indução federal de outro modelo de segurança pública, mas o que vemos é o oposto. Em vez de ter outro modelo tentando melhorar as coisas a partir do governo federal, o que vemos é esse mesmo modelo corrupto, espalhado de diferentes maneiras pelos estados, agora ganhando coordenação federal e se construindo como diretiva de uma segurança pública federal.

Claro que, como esse modelo que está ganhando dimensão federal é todo militarizado e que está propondo a criação de uma nova polícia militar federal, na contramão de tudo o que deveria ser feito, o mundo militar em geral sai muito fortalecido também, assim como as Forças Armadas, que têm prerrogativa de governar as polícias em uma situação excepcional.

IHU – Pode nos traçar um panorama sobre o debate da segurança pública no Brasil? Isso porque essa pauta tende a uma certa vulgarização do tema, que é em tudo complexo.

Gabriel Feltran – São quatro eixos de problemas que o modelo de segurança pública, baseado no que chamávamos de delinquência, não consegue mais resolver quando não há mais o mesmo problema, quando passamos para esse universo das facções, do que é chamado de crime organizado.

1.- Delinquência

No modelo da delinquência temos pessoas isoladas, normalmente jovens, desviantes, que por uma série de razões, como familiares e sociais, estão desintegrados da vida social, e que cometem pequenos crimes. Os delinquentes estão associados a um tempo no qual essas pessoas são aquelas que vão invadir uma casa, roubar televisão, videocassete – anos 1980 –, que vão quebrar orelhão, ter atitudes incivis, que vão instituir pequenas gangues e arrumar problemas durante a noite. Esse é o problema de segurança pública que temos no Brasil até os anos 1980, a delinquência. Esses grupos estão isolados e são uma franja marginalizada da população que, através de uma política repressiva, podem ser controlados. Como são isolados e marginais, coloca-se uma opressão – como fizemos muito no Brasil –, polícia ostensiva e uma repressão ilegal com grupos de justiceiros, esquadrões da morte ou matadores, ligados à polícia ou não, mas de alguma forma controlados pelos comerciantes locais. Com isso se controla essa delinquência. Mesmo que não fosse no passado uma política sustentável, como ela demonstrou, mesmo que não fosse legal ou moral, era algo efetivo, se controlava o delinquente. Por meio da repressão neutralizava a ação desses grupos pequenos e isolados, que não eram ligados ao mercado naquela época.

Quarenta anos depois, nos anos 2020, todos esses meninos que eram desviantes, delinquentes e menos integrados, que tinham dificuldade de aceitar as regras do bom convívio social, hoje são funcionários contratados por megaempresas criminais que hoje fazem regulação de mercado global: cocaína, veículos, autopeças, contrabando e armas de fogo. Todos esses são mercados transnacionais, inteiramente globalizados, que contratam esses jovens no nível dos bairros, que estão desintegrados e não estão conseguindo se colocar nem na escola, nem na formação profissional ou no trabalho e são recrutados por esses mercados ilegais, que oferecem muito mais remuneração e pertencimento simbólico para eles do que os mercados sociais e a vida aceita. Portanto, há uma mudança de natureza do fenômeno criminal. O que era delinquência ontem, hoje é mercado ilegal transnacional, o que eram sujeitos isolados e desviantes ontem, hoje são sujeitos integrados a mercados ilegais e a organizações criminosas que regulam esses mercados – que no Brasil se chamam facções.

A diferença é que antes era possível reprimir o delinquente e sumir com ele, mas hoje não pode mais reprimir os delinquentes da mesma maneira, porque se mata esse menino, no dia seguinte tem outro trabalhando no lugar dele. Ele ocupa uma posição no mercado, posição essa que muita gente está querendo ocupar na medida em que estruturalmente temos um desemprego muito grande e uma parcela da população que estruturalmente não está integrada. A polícia vai lá e prende o menino que é o delinquente. No dia seguinte, o mercado que ele ocupava na esquina é ocupado por outro menino, e ele vai para cadeia, que tem facção, e será formado para deixar de ser um pequeno delinquente e se tornar um operador profissionalizado desses mercados ilegais. Depois, a polícia prende o outro menino que ficou no lugar dele.

Política do encarceramento

Então, temos dois presos e um trabalhando na esquina e um trabalhando na esquina, porque eles vão ser substituídos. E estamos fazendo isso há 40 anos. Saímos de 150 mil presos há 30 anos atrás e chegamos a cerca de 850 mil presos hoje no Brasil. Além disso, essas pessoas saem em um dado momento da cadeia. Então, temos 5 milhões de ex-presidiários no Brasil hoje, pelas estimativas que o nosso grupo faz – e esse nem é um dado que temos oficialmente no país. Reprimindo a criminalidade, mantendo esse modelo repressivo que não pensa a dinâmica criminal contemporânea, que não a entende, estamos produzindo criminosos ao invés de produzir segurança pública.

Ciclo vicioso

Com isso, chegamos a um segundo problema. Quanto mais se produz criminosos, percebe-se que a segurança está piorando. Então se diz que os criminosos estão ficando muito fortes e que precisamos de mais investimentos para fazer a mesma coisa: ostensividade e repressão. Isto é, é preciso ir para cima da bandidagem que está cada vez mais ousada. O que se faz? Jogamos mais dinheiro nesse modelo, produz-se mais ladrão, bandido, traficante e policial corrupto. E mantemos esse ciclo vicioso que existe no Brasil há 40 anos e que alimenta esse problema de criminalidade, ao invés de oferecer segurança pública para a população.

Quais são os quatro pilares que vemos no problema da segurança pública e que poderiam ser a reversão desse ciclo vicioso.

Em primeiro lugar, os mercados ilegais. Eles têm que ser pensados como estruturantes de tudo o que há de problema de segurança pública no Brasil e, portanto, é preciso haver regulação estatal desses mercados ilegais. Então tem que legalizar tudo? É o contrário de legalizar tudo que vamos diminuir controle estatal que hoje existe sobre o mercado de drogas etc. O que estamos falando é aumentar muito a regulação desses mercados e, para isso, é evidente que seus operadores terão que estar regulados pelo Estado e, portanto, em alguma medida, oficializado. O exemplo mais bem-sucedido de mercado ilegal que temos no Brasil são as autopeças, que foi feito pela Lei dos Desmanches em São Paulo, pelos anos de 2010. Ou seja, a passagem do desmanche clandestino que vendia peças roubadas para o desmanches oficiais, que serão fiscalizados pelo Estado e que vão vender peças automotivas de origem conhecida e não desconhecida, o que faz reduzir bastante o roubo e o furto de veículos em São Paulo após essa implementação. Essa é a primeira e fundamental. Vai acontecer? Não, pelo menos em curto prazo, mas é preciso que se saiba que isso estaria na base da construção de uma segurança pública melhor para o Brasil.

2.- Homicídios

O Brasil tem mais de 40 mil homicídios e esse número vem baixando no país. Não por trabalho da segurança pública, que tem poucas iniciativas e sempre muito locais para a redução de homicídios, mas, sobretudo, porque o mundo criminal está organizado nacionalmente e está reduzindo os conflitos internos e por isso os homicídios vêm baixando. Da mesma maneira que os homicídios subiram também sem nenhuma ação relevante dos governos, mas pela confrontação de diferentes facções no seu processo de expansão pelo país. O pico é em 2017, quando tivemos 63 mil homicídios registrados oficialmente no país. Embora as taxas de homicídio vão caindo por acertos do próprio universo criminal, vamos ampliando bastante a letalidade policial nos últimos anos no Brasil. Ou seja, a polícia vai matando mais, enquanto os dados de homicídios vão diminuindo. Está tudo errado do ponto de vista das ações governamentais.

O mais importante: esses homicídios não são esclarecidos pelo governo. Quem esclarece homicídio no Brasil é facção. Começamos a investigar, segundo dados do Sou da Paz, 37% dos homicídios – abrimos inquérito apenas para 37%. Isto é, 63% dos homicídios (seis a cada dez) não tem nenhuma investigação, o que significa que esse cara pode matar à vontade. Entre esses seis sobre dez, estão os homicídios dos policiais que não têm nenhuma investigação, isto é, os policiais no Brasil têm mandato para matar; ele pode matar quem quiser que não vai haver nenhuma investigação.

Construção da soberania

Isso tem que ser revertido, não apenas por valores e direitos humanos, mas porque isso produz uma perda de soberania estatal sobre a segurança pública. Quem define a vida e a morte é o soberano na teoria política. Se permitirmos que grupos criminais, fardados ou não, produzam morte, decidam quem vive e quem morre, quem vai ou não ser julgado, o Estado perde sua soberania e a capacidade de regular seu território. A violência letal é a base de toda e qualquer construção estatal e de toda e qualquer construção soberana de um Estado de Direito, é preciso que a lei organize a violência e não que o crime organize a violência. A violência tem que ser legítima e não pode ser criminal. O ator que se legitima como aquele que regula a violência se torna um ator legítimo politicamente. Por isso que as facções são legítimas no universo que elas regulam a violência, de modo considerado justo pelas pessoas. É preciso reverter o problema dos homicídios no Brasil, sobretudo a partir de uma ação de polícia judiciária de investigação, ligada a um sistema de justiça que permite que ampliemos muito a resolução de homicídios por meio do Estado e não das facções.

Vejamos o que aconteceu no caso Marielle [Franco], que foi um homicídio esclarecido no Brasil. A dinâmica do homicídio era totalmente opaca, de repente soubemos quem matou, os que mataram eram matadores profissionais ligados à polícia – ex-policiais – e depois veio a investigação e fomos saber que, simplesmente, o chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro estava envolvido diretamente no homicídio – aquele que deveria investigar era o mandante do homicídio. E, como sempre, o poder econômico está por trás desse policial, participando também da organização do homicídio, nesse caso os Brasão, situados entre o mundo legal e ilegal. Então, toda a dinâmica de construção de poder do mundo policial e econômico aparece claramente quando estamos investigando esse homicídio.

Por isso que temos que investigar todos os homicídios no país e esclarecer cerca de 70% deles, que seriam taxas possíveis de serem feitas com a estrutura que existe. E chegaríamos a uma capacidade de punir os autores e evitar que novos crimes assim acontecessem. Teria um efeito de redução de homicídios e de controle do Estado sobre a política de segurança pública.

3.- Mundo prisional

O mundo prisional é hoje faculdade de criminalidade. O mundo prisional em expansão no país é completamente controlado por facções, ou seja, nós pegamos jovens recrutados pelos mercados ilegais lá na ponta e jogamos eles na faculdade criminal e eles saem das prisões muito mais formados na criminalidade do que estavam. Um desastre, de novo, que precisa ser refeito. Ao invés de basearmos nossa política de segurança em ostensividade e flagrante, tínhamos que basear em investigação que fosse efetiva para produzir punição para quem precisa e proteção para aqueles que estão sendo explorados nas madrugadas e nos mercados ilegais e que, com isso, não têm condições de desenvolver suas trajetórias de vida.

Focar na punição em crimes violentos e não no crime não violento. O comércio do tráfico de drogas, por exemplo, é um crime não violento em grande parte do país, apenas em algumas regiões do país muito midiatizadas, como nas favelas na Zona Sul do Rio de Janeiro, esse tráfico está ligado a armamento e coisas do tipo. Em muitas outras regiões do Brasil não é assim que se trata. O tráfico é todo de classe média e das elites, que consomem muitas drogas, e esse tráfico é não violento, e esses traficantes que são presos por crimes não violentos poderiam, tranquilamente, ter outros tipos de punição, não lotariam as cadeias e não alimentariam esse ciclo vicioso do qual estamos falando.

4.- Polícia sob controle social

Por último e como outro elemento para um pilar de segurança pública eficiente, republicana, democrática, trabalharíamos com a ideia do controle externo da atividade policial. Algo que é fundamental, básico, constitucional e previsto por lei, mas que não é feito no Brasil. As polícias fazem o que querem no país, não há controle. Os policiais se candidatam, usam farda para fazer campanha política, faz discurso político, se filia a organizações políticas, sendo policial se utiliza do saber estatal da segurança para ganhar dinheiro de forma privada, sem contar na corrupção policial. Tudo isso está totalmente fora de controle no Brasil, produzindo as polícias como atores políticos no país, o que é um absurdo. Mais do que isso, atores políticos autônomos, porque não são regulados por ninguém. Hoje as polícias são mais fortes que os governos, as secretarias de segurança são controladas pelas polícias e não pelos governadores; é a polícia que faz o governador escolher o secretário de segurança e a polícia que derruba ele. Temos um problema imenso de autonomização das polícias que se tornam atores armados e cheios de dinheiro, e, portanto, atores políticos relevantes. Se tem muita arma e dinheiro, torna-se um ator político relevante, sobretudo se não houver controle. Esse é o quarto ponto de uma política de segurança que deveria ser feita.

A PEC não toca em nenhum desses pontos, desfavorece o controle sobre as polícias militares na medida em que militariza também o efetivo federal.

IHU – O que explica o movimento do governo federal de tentar aprovar esse projeto, considerando que ele atende aos anseios da extrema-direita?

Gabriel Feltran – Duas coisas explicam o movimento do governo federal: primeiro a incompetência e a dificuldade de ter clareza com o que está acontecendo no processo político da segurança pública; segundo, há uma incapacidade de regular a área de segurança pública, que é regulada debaixo para cima. Por tudo o que venho dizendo, percebe-se que os lobbies da segurança privada, das polícias militares, do mundo jurídico e do Ministério Público, ligados a esses lobbies é muito forte e convence os atores da burocracia governamental, incompetentes, que está se dando um passo para frente, quando na verdade está se dando vários passos para trás.

IHU – Até que ponto a PEC ajuda na redução da criminalidade?

Gabriel Feltran – A PEC não ajuda em nenhum ponto na redução da criminalidade.

IHU – Como a “PEC da Segurança Pública acelera a militarização exigida pela extrema-direita policial, agora sob Lula”?

Gabriel Feltran – Na medida em que transformaria, no caso da aprovação, a Polícia Rodoviária Federal, que foi inflada no governo Bolsonaro, que teve um fluxo de recursos absolutamente sem precedentes e que se transformou numa PM federal, se oficializa e garante a existência de uma força ostensiva federal para além da Força Nacional e das Forças Armadas. Portanto, enfraquece a Polícia Federal, que é a única polícia que produz hoje operações importantes de combate à corrupção e à criminalidade em escala nacional e internacional, em parceria com muitas polícias internacionais. Joga-se isso fora e se coloca um “monte de cães de guarda” para fazer corrupção agora no nível federal.

IHU – A proposta foi apresentada por Lula e Lewandowski, ministro da Justiça. Por que, novamente, a sociedade civil não participou da construção do projeto?

Gabriel Feltran – Porque a sociedade civil desconhece o tema da violência na medida em que as forças de centro e de esquerda no Brasil também desconhecem o tema da segurança. São muito pouco capacitadas para discutir segurança pública, conhecem muito pouco do assunto, quando falam é de modo muito geral sobre nosso problema estrutural de injustiça, mas não conhecem o tema a fundo, não sabem como a criminalidade se organiza, quais foram as mudanças. Isso faz com que sejam muito fracos nos debates e com que a direita e extrema-direita possam nadar de braçada sobre esse tema que é central para seu projeto político.

IHU – Outro problema grave de segurança pública no Brasil é o encarceramento em massa. Mas a PEC não o menciona. Como fica essa questão sensível e urgente frente a esta possível mudança?

Gabriel Feltran – Eu já falei sobre o assunto. Mas cabe destacar que será tocado no sentido reverso, vai se ampliar a militarização, a ostensividade, os flagrantes e o encarceramento e se vai, novamente, buscar ganhar dinheiro com a construção de presídio e tudo o que envolve a construção de um presídio de segurança privada, de tecnologia de segurança etc. que são oferecidos ao governo por empresas de segurança privada, por sua vez, controladas por policiais e ex-policiais.

IHU – Tentando ver uma luz no fim do túnel, como podemos pensar e projetar o futuro da segurança pública no Brasil a partir de uma visão mais humanista e menos militarizada?

Gabriel Feltran – Com uma proposta de segurança publicada voltada para esses quatro pilares que apontei. É a criação de um outro modelo de segurança pública que não existe hoje.

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