O caso da Medicina e a eminência da asfixia da humanidade como efeito colateral da Modernidade. Entrevista especial com Fran Alavina

A partir do perverso caso do anestesista que estupra a paciente, professor reflexe sobre “coisificação” do doente na área. Para ele, consequência de um pensamento tecnicista decorrente da vida moderna que se espalha em várias áreas desde as universidades

Foto: Febrasgo

Por: João Vitor Santos | 11 Agosto 2022

 

Quando as manchetes dos jornais foram inundadas pelo caso do médico anestesista que estuprou mulheres poucos instantes depois de darem à luz, a revolta tomou conta de todos. O problema é que tal revolta se converteu em vingança e, uma vez preso o criminoso, o assunto saiu do debate público sem avançar no caso particular.

 

O professor de Filosofia Fran Alavina chama atenção para as questões de fundo que a sordidez desse caso encobre. “Talvez um outro modelo de prática médica não tivesse o impedido de ser o que é, mas muitas mulheres deixariam de ser vítimas se ele tivesse sido identificado e impedido já na formação. Se assim não aconteceu é porque todo o sistema formativo falhou”, observa.

 

E por que será que o sistema formativo falhou? Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o professor tece duas reflexões que vão além do caso em si. A primeira diz respeito à aura sagrada que envolve a figura do médico que está incrustrada no tecido social brasileiro. “O passado colonial nos legou a ideia de que o lugar de saber é sempre o lugar ocupado pelo senhor, portanto, o lugar do mando, quase sempre do mando violento”, explica. Ou seja, o senhor é mais do que o escravo, só o senhor pode ter estudo e só o senhor é médico, logo, mais do que qualquer um mortal.

 

O problema, segundo Alavina – e aqui chegamos na sua segunda reflexão –, é que nem a universidade tem rompido com essas lógicas. E não rompe por quê? Segundo ele, porque na própria universidade, não só no Brasil, mas no mundo, se perfaz uma lógica da Modernidade que coisifica o saber como um bem que só é alcançado por alguns. “A ciência moderna é o saber da completa objetificação do mundo, começando na objetificação das coisas naturais até chegar àquelas mais propriamente humanas”, aponta. No caso da medicina, percebemos isso de forma mais brutal porque a coisificação se dá sobre humanos. Aliás, a partir de um médico que se vê para além do humano, como o senhor da técnica. “A medicina aceitou o lugar em que foi alocada: uma técnica. Mas aceitou ‘feliz’, já que a revolução científica moderna conferiu estatuto de ciência àquilo que os gregos e os medievais consideravam um puro modo de fazer”, completa o professor.

 

O ponto é que chegamos numa espécie de efeito colateral da Modernidade que nos tem feito cada vez menos humanos. E a universidade não é a única artífice desse engendramento, mas, como reduto do saber, deveria tensionar e quebrar certas trampas modernas. “A Universidade contemporânea aderiu ao modelo de ciência tecnificada, perdeu seu caráter ético formativo originário, que, embora não fosse perfeito, ao menos existia. Veja-se, como exemplo dessa perda, a ideia de que as universidades públicas devem apenas ofertar cursos lucrativos, negando o papel formativo das humanidades. Mas como pode haver adequada formação ética ao se negar direito de existência aos saberes responsáveis por formularem os problemas éticos?”, questiona.

 

Em um ensino tecnicista, a ética vira uma disciplina encaixotada. Caixa essa que quase sempre é guardada pelo profissional, das mais variadas áreas, num fundo escuro de um baú. “O caráter ético deve estar na completude da formação, ou seja, como elemento que deveria constar ao longo do curso, porém encontra-se reduzido a duas ou três disciplinas”, critica Alavina. Fato é que, como aponta o professor, estamos numa encruzilhada. Dependendo do caminho que escolhermos, podemos comprometer até mesmo nossa existência humana. “A medicina, como as outras ciências, está numa encruzilhada histórica: ou desfaz as contradições formadas pela Modernidade ou as agudizará caminhando para sua completa asfixia”, pontua.

 

Fran Alavina

Foto: Arquvo pessoal

 

Fran Alavina é graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE, mestre em Estética e Filosofia da Arte pela Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente, desenvolve pesquisa interdisciplinar no âmbito de questões contemporâneas de Filosofia Social e Política, bem como da relação entre Filosofia e as Ciências da Vida. Atua como professor do Departamento de Ciências Humanas e Sociais, lecionando na Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas e Exatas – FACSAE da Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri-UFVJM. Já na Faculdade de Medicina do Mucuri – FAMUC, leciona a disciplina de “Filosofia e Ética” para o curso de Medicina. Colabora com o site jornalístico OutrasPalavras nas perceptiva de que os conhecimentos acadêmicos não fiquem restritos à sala de aula.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Como podemos compreender essa certa objetificação dos pacientes por alguns médicos? Que relações podemos estabelecer com a ciência e a Medicina Moderna nessa objetivação?

 

Fran Alavina – De fato, entende-se melhor essa objetificação dos pacientes se tivermos claro como a Modernidade concebe a Ciência e sua finalidade. Ademais, a Medicina atual é uma espécie de filha dileta da revolução científica moderna (basta recordarmos que enquanto Galileu alçava, com suas lentes, o olhar para os céus, os anatomistas, “pais” do atual modelo médico, observavam o interior do corpo humano nas autópsias das universidades).

 

Ora, a ciência moderna é o saber da completa objetificação do mundo, começando na objetificação das coisas naturais até chegar àquelas mais propriamente humanas. A ciência moderna, assim, concebe seus objetos como coisas que devem ser compreendidas para serem, sempre que possível, modificadas a fim de serem utilizadas. Desse modo, ciência (modo de saber) e técnica (modo de fazer) entram numa simbiose não desfeita até hoje. Pelo contrário, isto se agudiza cada vez mais.

 

 

No caso da medicina, tal objetificação não é apenas efeito da ação individual deste ou daquele médico, mas está no próprio modo como este saber se concebe (sua estruturação epistêmica mais básica), bem como na sua prática (a técnica). Com efeito, a medicina sempre foi um modo de saber que correu o risco de se reduzir à tecnificação (portanto, ser simplesmente um modo de fazer), pois visa um procedimento prático que reestabeleça a saúde.

 

 

Tecnificação

 

Ninguém vai ao médico para saber quais as suas formulações teóricas sobre o corpo humano, mas sim porque está enfermo e precisa de cura. Confia no saber do médico a fim de que ele possa exercer um fazer; e, nessa relação, o paciente está relegado ao polo passivo. Ocorre que, na revolução científica moderna, o risco da completa tecnificação se concretizou. A medicina aceitou o lugar em que foi alocada: uma técnica. Mas aceitou “feliz”, já que a revolução científica moderna conferiu estatuto de ciência àquilo que os gregos e os medievais consideravam um puro modo de fazer.

 

 

Basta lembrar que não faz muito tempo que, com as discussões suscitadas pela pandemia, ouviu-se muitas vezes: “os médicos não são cientistas!” Donde nos perguntamos: se não são cientistas, o que são? Não restaria outra resposta senão: técnicos. Claro que um tipo de técnica extremamente complexa e refinada, mas ainda assim uma técnica. Assim, é uma ciência tecnificada que eleva ainda mais a objetificação, pois é próprio da técnica visar a produção.

 

Recorde-se, contudo, que a Medicina não lida com os mesmos objetos da Matemática, da Química ou da Física. Trata-se de homens, e homens com dores, em todas as significações deste termo. A medicina tecnificada, porém, os objetifica ao extremo, como os outros saberes diletos da revolução científica moderna. No seu caso, despersonaliza o doente, que é reduzido às suas patologias. Os objetos não têm vontade própria nem história e são incapazes de dar sentido às mudanças que sofrem; não é assim com os pacientes.

 

 

Medicalização

 

Os pacientes têm uma história de vida singular e dão múltiplos sentidos aos procedimentos médicos pelos quais passam ao longo da vida. Um paciente praticante de algum credo religioso não dará à sua doença o mesmo sentido que um ateu, por exemplo, embora biológica e fisicamente padeçam do mesmo mal. No entanto, são reduzidos aos gráficos, às percentagens e às tabelas dos exames.

 

 

Uma parte da vida - ou uma vida toda - a depender do caso, em gotas e comprimidos. A medicalização da vida é um braço desse mesmo rio da objetificação reducionista. A mesma matematização que a Física moderna fez do mundo ocorre também na Medicina: o paciente, na imensa maioria das vezes, não é mais que os números do seu prontuário. Ademais, a medicina no modelo contemporâneo nos reduz às partes do nosso corpo. Ao modo como os anatomistas dos séculos XVI e XVII dividiam os corpos a fim de compreender sua estrutura, a medicina atual nos torna metonímicos: somos a parte de nós que está doente.

 

Mas enquanto naqueles séculos era a divisão de corpos mortos, agora trata-se da divisão de corpos vivos, conseguida por meio da aparelhagem tecnológica. Toda atenção se dirige ao órgão ou parte adoecida do nosso corpo. Tendemos a pensar sobre o avanço da tecnologia sobre a natureza e esquecemos que esse mesmo aparato tecnológico incide diretamente sobre nós. Enxergamos apenas o lado positivo: toda a parafernália técnica nos ajuda a reconhecer e a debelar as doenças, mas, ao mesmo tempo, nos esquecemos que isto acarreta mudanças em nossas disposições antropológicas mais básicas: a preservação de nossas vidas e busca de bem-estar.

 

Laço de proximidade

 

Direcionado todo nosso olhar apenas para a constituição biológica da vida, não reconhecemos nenhum liame de integralidade antropológica do paciente. Por exemplo: posso estar com dor de ouvido e não morrerei por causa disso, mas a depender do tamanho da dor e da sua persistência, todas as minhas atividades passam a girar em torno dela. Nunca é somente uma parte de nós: sentimos com a inteireza dos nossos corpos.

 

 

Não é coincidência que o paciente, quando hospitalizado, na relação com a equipe de enfermagem, reencontre seu lugar de sujeito: fala como se sente, ri, se queixa, cria laço de proximidade. Esse elemento essencial muitas vezes inexiste na relação com o médico: ou estão atolados de trabalho, não tendo tempo para uma conversa satisfatória com o paciente, ou não conversam porque a formação os tornou afásicos. Isto é, não conseguem estabelecer um diálogo que não seja o do receituário e da leitura dos dados que o aparato tecnológico lhes informa sobre alguém.

 

 

Nunca é apenas só seu corpo

 

Talvez aqui o nosso leitor pode questionar: “apesar disso tudo, é muito mais vantajoso poder dispor de remédios e bons aparelhos. O que importa no final das contas é que o médico acerte o diagnóstico e o tratamento.” Ao que podemos contra-argumentar: Hipócrates estava na penúria tecnológica, mas recomendava a conversa clara e direta. Era parte essencial do processo de cura a capacidade do médico de ouvir e dialogar com seu paciente. Dar o diagnóstico e recomendar o necessário para o restabelecimento da saúde não bastava. Era preciso persuadi-lo também, pois o paciente nunca é apenas seu corpo.

 

 

O ápice dos conhecimentos técnicos-médicos é o momento no qual se deixa de reconhecer a integralidade do homem. Por isso, nunca se falou tanto sobre medicina humanizada: justamente porque a que se formou da modernidade até aqui é desumanizadora. Toda crise ética de um saber é a crise de seus próprios fundamentos e constituição epistêmica. Assim, logo de início é preciso não cair na falsa solução da individualização dos casos, porém entender a amplitude do problema.

 

 

IHU – Houve um tempo na história do Brasil no qual se afirmava que esse era o país dos bacharéis, em que todos queriam “ser dotô”. Hoje, percebemos um espaço de onipotência em figuras como médicos e juristas. O que constitui esse espaço na sociedade brasileira de hoje?

 

Fran Alavina – Essa pretensa onipotência sempre existiu e deita raízes no nosso passado colonial. No caso dos bacharéis em Direito, seu “lugar de proa” se dava porque era preciso assegurar juridicamente as relações de propriedade, que no nosso caso era a posse, como se coisas fossem, de homens e mulheres escravizados. Pois todo ato de violência, além de ser feito, precisa ser justificado discursivamente e garantido legalmente para se tornar eficaz (os filhos da casa grande não deveriam ocupar sempre estes três postos: advogados, médicos e padres?). Por isso, esse lugar de proeminência se mantém na passagem para a monarquia e desta para a república.

 

Isto, também se relaciona diretamente com a posição de periferia que Portugal ocupou na Revolução Científica Moderna. Sem ter meios intelectuais e materiais de acompanhar a corrida epistêmica, se fossilizou, lá e aqui, a tradição dos conhecimentos jurídicos, como um tipo, ainda que raso, de enciclopédia dos saberes. Com este recorte de classe, onde a educação superior é um privilégio e um mérito aos bem-nascidos, a “república dos bacharéis” não era só dos advogados; era também, em parte, dos médicos.

 

O passado colonial nos legou a ideia de que o lugar de saber é sempre o lugar ocupado pelo senhor, portanto, o lugar do mando, quase sempre do mando violento, e não do mando apenas por convencimento discursivo, como poderia se supor. Se para a modernidade europeia, a partir da filosofia de Bacon, fica explícito que “saber é poder”, no nosso caso, tal se dá no sentido direto da relação de escravidão. Os senhores mandam, seus filhos estudam e conhecem, os escravizados trabalham.

 

 

Ora, sendo o espaço de saber um posto ocupado sempre pelo senhor, há um corte de classe social bem delimitado; no caso da medicina, extrapolando o próprio prestígio social do saber médico que se sustenta na sua capacidade de prolongar a vida e atrasar a morte. Não é por acaso que, ainda hoje, quando se pergunta às crianças o que elas “querem ser quando crescer”, inicia-se a lista sempre por “médicos e advogados”, pois esse é o desejo da maioria dos nossos pais. É a introjeção, no imaginário coletivo nacional, do prestígio e do lugar social de mando dessas profissões. Não importa apenas que a criança chegue à Universidade, mas que, ao chegar, escolha o que de fato possa lhe dar prestígio social.

 

 

Manutenção das posições de classe

 

Em um país forjado na odiosidade sorridente dos escravocratas, a educação nunca é vista como algo que possui valor em si mesma, mas como mero artefato social para manutenção das posições de classe. Basta, para ter uma ideia desse recorte e de seu caráter excludente, a seguinte questão: quantos médicos negros irão nos atender durante toda a vida? Certamente, encontraremos mais médicos cujos pais também foram médicos do que médicos negros.

 

Já não temos uma coleção de casos notórios de pacientes que se negaram a ser atendidos por médicos negros? No Brasil, até as profissões têm cor. Daí, além das contradições e das crises de seu saber, grande parte dos médicos traz consigo os preconceitos sociais, pois, em virtude do recorte de classe, os indivíduos são extremamente homogêneos nas ações e nas suas visões de mundo. Não apenas porque foram formados em um mesmo conjunto epistêmico, mas por pertencerem à mesma classe social.

 

Tanto que podemos dizer que não só trazem para as suas práticas os preconceitos sociais mais difusos, como ressignificam aqueles já consagrados. Vemos exemplos disso na expressão “doença de pobre”, em que culpabilizam mais a classe social dos indivíduos que os agentes biológicos - logo, escarnecem do direito à saúde, pois seria algo inerente estarem constantemente doentes -, ou acreditando que em muitas situações deve-se deixar morrer, quando a vida como valor absoluto só é assim reconhecida para certos grupos; para outros, viver é quase um “prêmio” que ganharam imerecidamente.

 

Também exemplo desse malefício de onipotência são os julgamentos morais que muitos profissionais médicos fazem de seus pacientes, ocupando um lugar de “juiz” não só dos corpos, mas também da vida não orgânica do outro. Enquanto não houver uma verdadeira e perene democratização da educação, que impeça a criação de castas sociais profissionais, esse espaço de onipotência se tornará pior e mais rude. Rude por se tratar de um saber que, de posse de seu prestígio, se fecha a qualquer crítica externa à sua atuação. Por fim, enquanto escrevo essa resposta, leio uma notícia que é um exemplo bem-acabado dessas questões.

 

 

IHU – Mesmo em hospitais e centros de saúde pública percebemos um enorme fosso entre pacientes e médicos. Por que isso ocorre?

 

Fran Alavina – Em parte, considero que em virtude das questões elencadas anteriormente. Mas se deve acrescer mais dois fatores a elas. Um deles é a falta de uma boa preparação dos futuros médicos para as particularidades do sistema de saúde pública. Desse modo, não possuem um olhar e uma prática mais apurada em relação às especificidades dos pacientes usuários desse sistema. Tendem a reproduzir os preconceitos sociais mais difusos, conforme assinalamos antes, ou tratam os pacientes de forma tutelada; não lhes reconhecendo caráter ativo, os concebendo como meros receptores passivos, sujeitos que estão na dependência da boa vontade de outro.

 

Esse aspecto remete ao segundo fator: o não reconhecimento do sistema público de saúde como um direito, mas como um simples serviço que é um favor do Estado, deste ou daquele governante. Como é um favor, não pode ser pensado como um bem público; não sendo bem público, não é reconhecido como demanda coletiva essencial; não sendo assim reconhecido, o fosso aparece como uma coisa natural, e não como um desvio daquilo que deveria ser o correto.

 

Por fim, é preciso não esquecer que isto é bastante prejudicial aos próprios profissionais de saúde, que são entregues a condições de trabalho longe do minimante ideal. Sem pensarmos meios socialmente amplos de não só construir pontes, mas extirpar esse poço, antigos impasses perduraram, ao mesmo tempo que surgiram novos.

 

 

IHU – Qual o papel das universidades na redução desse vazio entre médicos e pacientes e na destituição desse espaço de onipotência que falávamos antes?

 

Fran Alavina – A Universidade deveria cumprir um papel determinante para um novo olhar e uma nova mudança dessas questões, pois é ela que forma os profissionais de medicina. Há casos em que se vislumbra e se propõe a mudança desses antigos paradigmas, mas são ainda casos pontuais. A grande maioria dos médicos professores é formada nesse modelo, sem questioná-lo muito, mesmo que fosse para uma reforma.

 

Uma vez que temos esse quadro, é preciso tornar o debate sobre formação médica mais acessível a todos. A partir mesmo de dentro das Universidades. Em outras palavras, não ser apenas uma “discussão de especialistas da saúde”, mas uma “discussão com especialistas da saúde”. E por que não restrita aos especialistas? Porque todos nós dependemos de um bom serviço médico. Portanto, deve estar sempre sobre escrutínio social amplo. Diferentemente de outros saberes, precisamos da medicina incontáveis vezes durante toda a vida: do nascimento à morte.

 

Nesse sentido, é preciso que os não “doutores” tomem parte nessa discussão. Por que não criar grupos daqueles que, por exemplo, são atendidos nos hospitais universitários, ou nos hospitais que recebem residências médicas para que possam não apenas dar opinião sobre como foram tratados, mas apontar modos de estabelecer uma melhor relação médico-paciente? Essas e outras ideias são questões que precisam e devem ser levantadas.

 

Infelizmente, grande parte daqueles que estudam medicina nas universidades públicas pensa apenas na própria formação do modo egoísta mais corriqueiro: “formei, agora vou ganhar dinheiro o mais rápido possível e abrir minha clínica”! A saúde como direito universal e bem comum fica sendo, quando muito, apenas um problema para outros colegas, ou uma realidade distante, já que quase nenhum médico usa o sistema público de saúde.

 

 

IHU – O estupro feito por um anestesista em pacientes na baixada fluminense aterrorizou a todos. Mas podemos compreender esse ato como uma consequência da construção desse espaço de onipotência?

 

Fran Alavina – Em grande parte, sim. Em primeiro lugar, deve-se reconhecer o quadro mais geral: o machismo constitutivo da sociedade brasileira, que ali vimos no emblemático lugar de saber/poder da medicina que já falamos anteriormente. É em uma sociedade machista que os estupradores crescem e praticam seus atos com mais facilidade. Ora, no caso das pacientes, há uma dupla objetificação: a objetificação do corpo feminino, que se torna objeto da sevícia sexual do homem; objetificação que a prática médica inflige a quem dela precisa.

 

As mulheres ficaram, portanto, numa situação duplamente vulnerável, pois as duas objetificações estava nas mãos do mesmo sujeito: um estuprador médico. Parece-me que ali não estava apenas o prazer (se é que podemos chamar aquilo de prazer) da prática do ato sexual não consentido, do ato sexual violento, mas também a pérfida sensação de poder dispor do corpo das mulheres conforme os conhecimentos que a profissão lhe facultou. Trata-se de um caso que precisa ser entendido à luz da posição de saber que ele ocupava e do prestígio social que a profissão lhe outorga.

 

Ele usava não apenas do seu lugar social de homem, mas do seu lugar social de médico. Ser médico não fez aquele homem torna-se um estuprador, mas ele se aproveitou justamente do espaço de onipotência e das relações que nele se inscrevem para praticar suas delinquências abjetas. É fácil cair na mera culpabilização pessoal. Muitos dos comentários ao artigo que escrevi sobre o caso caem nesse lugar da individualização.

 

 

Reconhece-se a criminalidade do sujeito e fecha-se os olhos para outras questões. É certo que nem todos os médicos são estupradores, também é certo que não foi a formação universitária que o transformou em um, porém outra questão deve ser levantada: nada de suspeito do seu comportamento foi observado durante os anos do curso universitário? Ele não se tornou estuprador no dia da formatura. Se nos anos da formação médica ele já havia praticado estupros, como um estuprador passa assim despercebido na formação de um saber em que a observação apurada é um requisito básico? Se fez, teria encontrado conivências solidárias?

 

Talvez um outro modelo de prática médica não tivesse o impedido de ser o que é, mas muitas mulheres deixariam de ser vítimas se ele tivesse sido identificado e impedido já na formação. Se assim não aconteceu é porque todo o sistema formativo falhou. Devemos colocar a centralidade do entendimento dos casos não apenas nele, mas naquelas que foram alvos de seus crimes. Do contrário, caímos numa explicação reducionista que desresponsabiliza as falhas do processo formativo.

 

Ademais, é preciso que se abra a “caixa de pandora” das denúncias que tendem a ser negligenciadas, pois se trata de um saber que não quer ter rusgas na sua imagem e no seu prestígio social. Parece-me, contudo, que não foi um caso isolado. No mesmo Rio de Janeiro, alguns dias depois, o presidente do Conselho Regional de Medicina – CREMRJ, como vimos na notícia acima, se afastou sob acusação de assédio sexual.

 

IHU – Nesse mesmo caso, há informação de que a equipe de enfermagem já havia alertado sobre suspeitas, mas havia sido ignorada. Teria sido isso que os fez produzir o vídeo em que se flagrou o estupro a uma das vítimas. O que isso revela também sobre a relação entre médicos e equipe de enfermagem?

 

Fran Alavina – Os saberes, grande parte das vezes, se constituem refletindo diretamente as estruturas sociais mais determinantes; outras vezes, de forma não tão direta. Ora, pensemos no lugar onde ocorreram os casos: o hospital. É um lugar de vigilância absoluta, tudo deve estar sob “controle irrestrito”. Há, porém, aqueles que atuando ali escapam a esse controle, ou se movimentam com mais facilidade, pois estão no topo da hierarquia: os médicos.

 

Está claro que o estuprador fazia uso dessa posição hierárquica superior, do seu posto de mando que se sustenta na posse de um saber considerado superior. Ora, as equipes de enfermagem são formadas majoritariamente por mulheres, e ainda assim não foram levadas em consideração, justamente porque ocupam uma posição inferior na estrutura. Ali toda a estruturação das práticas está em regime de subordinação: a ação da equipe de enfermagem está subordinada à ação da equipe médica.

 

Daí, foi preciso que a equipe de enfermagem adotasse uma coragem ousada e solidária em relação às pacientes para que os casos viessem à tona. Foi uma ação que se deu fora dos padrões da subordinação estruturante do lugar e que nos faz pensar que essa estruturação quase universal dos hospitais precisa ser repensada com a maior urgência possível, visto ainda ser uma estrutura que quase nada mudou em mais de dois séculos: à rigor, apenas sofreu grandes alterações na complexidade dos aparelhos e na logística. As equipes de enfermagem precisam ter uma maior centralidade, por exemplo.

 

IHU – Que reflexão esse caso escancara acerca da formação ética de profissionais? E que ética é essa que constituímos na sociedade dos séculos XX e XXI e ensinamos nas universidades?

 

Fran Alavina – As concepções éticas forjadas no decorrer do século XX e agora nas primeiras décadas do XXI tentam dar conta dos novos problemas - aos quais nos referimos anteriormente - suscitados pela simbiose entre ciência e técnica (o exemplo claro e muito próximo à medicina são às questões apresentadas por Hans Jonas nas obras Princípio Vida e Princípio Reponsabilidade).

 

O Princípio da Responsabilidade (Contraponto, 2007) e O Princípio da Vida (Vozes, 2005) de Hans Jonas | Imagens: divulgação

 

Nesse sentido, estas éticas “novas” se desvinculam dos pressupostos dos ideais éticos forjados no bojo da tradição humanista. Tal tradição não precisou lidar com as consequências mais cruéis da ciência/técnica. A tradição humanista conheceu a guerra, mas não o desastre nuclear, por exemplo. Ora, a questão já não é mais simplesmente “o que devo fazer?”, mas “como fazer” em um mundo já completamente tomando pelas consequências desastrosas da ação humana. Sabemos que devemos agir em favor da causa ambiental, mas nos perdemos em como estruturar a melhor forma de fazê-lo, por exemplo.

 

Daí, termos éticas, diríamos, para fazer reparos em um mundo fadado ao desmantelamento. Um mundo em que não é mais possível pensarmos nossas existências fora do aparato técnico-tecnológico, fora das objetificações. Ocorre que não pode haver relação ética quando há apenas objetos. A questão ética implica necessariamente a relação entre sujeitos. Quando já partimos da constatação da objetificação total (chegamos ao ponto de pensar os “limites éticos” das máquinas que criamos), temos éticas de reparação de danos.

 

 

Delinquência ética e a universidade técnica

 

Multiplicamos ao infinito os códigos de ética profissional: um só indivíduo, enquanto exerce uma única profissão, pode estar submetido a muitos códigos implicados diretamente por sua atuação profissional. A multiplicação dos códigos de condutas, em uma babel de normas para a ação, é uma prova do grau de delinquência ética dos indivíduos contemporâneos.

 

Assim, tenta-se conter os danos de uma sociedade forjada para se perpetuar na falta de escrúpulos. Tão inescrupulosa que o discurso ético se tornou apenas uma forma de aumentar lucros e visibilidade. Na medida em que a Universidade contemporânea aderiu ao modelo de ciência tecnificada, perdeu seu caráter ético formativo originário, que, embora não fosse perfeito, ao menos existia. Veja, como exemplo dessa perda, a ideia de que as universidades públicas devem apenas ofertar cursos lucrativos, negando o papel formativo das humanidades. Mas como pode haver adequada formação ética ao se negar direito de existência aos saberes responsáveis por formularem os problemas éticos?

 

No caso da medicina, esse problema é adensado, pois além da ética profissional há também as questões bioéticas. Contudo, no modelo da universidade técnica, as disciplinas de ética profissional são apenas um resquício do que deveria ser feito, mostrando a debilidade da situação. O caráter ético deve estar na completude da formação, ou seja, como elemento que deveria constar ao longo do curso, porém encontra-se reduzido a duas ou três disciplinas.

 

 

Uma ética conectada à realidade

 

Ademais, não se pode cair na fabulação da universalidade vazia das questões éticas. Os problemas éticos devem levar em consideração a realidade da sociedade na qual são formulados, não serem apenas importados de uma realidade para a outra: equívoco que a Filosofia muitas vezes fez com ingênuo denodo. Os dilemas e princípios éticos da formação profissional dos médicos brasileiros, por exemplo, devem levar em consideração a especificidade de uma sociedade forjada para a negação do conhecimento como bem coletivo, sociedade na qual o acesso à saúde é um direito ameaçado constantemente e que isso não é apenas um problema para aqueles que não podem pagar pelos serviços médicos, mas também para os futuros médicos.

 

Estabelecer apenas o que pode ou não fazer o profissional é bem pouco, dada a densidade dos nossos problemas.

 

IHU – Os jovens estudantes de medicina, já nos primeiros anos de estudos, gozam de um “glamour” que vão construindo nos cursos de disciplinas técnicas e práticas, enquanto resistem e rejeitam outras que se lastreiam nas discussões éticas e filosóficas. Como analisas esse cenário?

 

Fran Alavina – Essa rejeição não se dá na maioria das vezes por escolha pessoal, e digo isso a partir da minha experiência como professor. Ocorre que não são dadas aos estudantes a oportunidade de cursar disciplinas que não sejam tecnicamente da saúde. Daí caem no engodo de achar que a Medicina é uma “ciência exata”, não enxergando que, das ciências da vida, a Medicina é aquela mais afim com as ciências humanas. Assim como desconhecem a história de seu próprio saber, e não fazem ideia, por exemplo, que desde a antiguidade clássica a Medicina e a Filosofia têm vínculos recíprocos.

 

Ademais, não há no espaço das nossas universidades o reconhecimento de um papel ativo dos estudantes na escolha da grade curricular. São encaixados em uma carga horária que, em muitos casos, mais deforma que forma. E muitos professores, como foram formandos nessa visão empobrecedora, desencorajam os alunos a buscarem diálogos com outros saberes. Os convencem dizendo que é “perda de tempo”, o que gera grande desistência, pois os estudantes de medicina são esmagados por uma carga horária quase desumana.

 

A maior parte deles vive acossada entre a promessa do prestígio social e o grande medo de não dar conta de tudo que é exigido deles. Quando se divide a jornada formativa com eles, nos damos conta que, na maioria das vezes, enveredaram na Medicina pelo desejo dos pais. Acolhendo o desejo alheio como seu, se esforçam desmedidamente.

 

Na junção de todos esses elementos, há um curso fechado em si mesmo, autocentrado, potencializando ainda mais esses aspectos negativos. Não seria menos asfixiante se estes estudantes de medicina pudessem compartilhar parte de sua carga horária em diálogo com outros saberes? Não teríamos médicos mais bem preparados do ponto de vista humano, além do técnico?

 

 

IHU – Qual deve ser o papel do professor universitário na formação desses jovens, para além das questões técnicas?

 

Fran Alavina – Tem um papel fundamental no estabelecimento de um horizonte ético, mas, para ter firmeza disso, precisa ter clareza da série de condicionantes que existe sobre sua atuação: da negação violenta de seu papel mais básico de educador – a fim de transformá-lo em mero repetidor de conteúdos – aos limites impostos por um modelo universitário que transforma a vida acadêmica numa linha de produção industrial: quer assumindo um aspecto apenas quantitativo da produção, quer buscando estabelecer cortes onde não há mais o que cortar.

 

Ademais, a Universidade não é um ente imune às mazelas sociais do país. Logo, o professor não pode perder de vista a especificidade da sociedade brasileira no que tange a educação: uma sociedade que não compreende o conhecimento como direito de todos, mas como privilégio de alguns. Ter esse entendimento é basilar. Portanto, ainda que não ministre as disciplinas de ética profissional, deve ter ciência que não levar em consideração a finalidade ética de seus conteúdos é assumir uma posição antiética. Seja na Medicina, ou em qualquer saber.

 

 

IHU – Numa outra perspectiva, é corrente vermos os doutores se colocarem acima dos próprios limites humanos e pagar com a própria saúde física e mental. Seria uma outra face da constituição dessa mesma onipresença?

 

Fran Alavina – Sim, uma outra faceta dessa constituição de onipresença. Mas uma faceta deveras danosa ao profissional. Tomemos como exemplo a pandemia. Era comum ouvirmos, mais em relação aos médicos do que aos enfermeiros, que, embora tenham pagado com enorme sacrifício profissional, não desfrutam do mesmo prestígio social: “Os médicos são nossos heróis!” Ainda que fosse um reconhecimento mais que merecido do esforço da categoria, esse elogio fácil era incapaz de atentar que eles tiveram que atuar heroicamente não por livre escolha, mas porque não estavam lutando apenas contra o agente biológico.

 

O cinismo cúmplice da morte, a corriqueira falta de recursos à saúde e a defasagem de leitos que já existia desde antes da pandemia são apenas alguns dos elementos que aumentaram o sacrifício pessoal. Um absoluto esgotamento físico e mental não querido por eles que o elogio fácil invisibiliza. Não atentar para essas questões é corroborar com a falsa ideia de que o destino da classe é sempre pagar com a própria saúde física e mental. Acreditar nisso sem fazer os questionamentos que levam à compreensão mais adequada da questão é criar uma crença danosa à sociedade e aos profissionais médicos.

 

IHU – Deseja acrescentar algo?

 

Fran Alavina – Gostaria de ressaltar que minhas análises, observações e perspectivas são feitas como docente não médico que atua a partir de sua formação (a Filosofia) em curso de Medicina, buscando articular redes conceituais, diálogos críticos entre Filosofia e as Ciências da Vida. Em outros termos, minhas considerações são o diagnóstico de um educador, mas também o diagnóstico do paciente em potencial que somos todos nós. É preciso dar sentido ao que se passa conosco quando se está nessa condição, e todos nós estaremos, ou melhor, estamos nela, já que vivemos em um mundo pandêmico, onde a diferença entre como devemos agir estando ou não doentes é completamente desfeita.

 

Se não dermos sentido enquanto sujeitos ativos de um processo de cura, não conseguiremos dirimir as objetificações que a ciência médica moderna faz conosco. Contudo, esse sentido não é uma mera atividade solitária, uma tarefa individual. Se todos nós, ao longo da vida, precisamos do direito à saúde, passaremos pelos mais variados processos médicos; esse sentido também é comum. É preciso atentar para a saúde como questão comum não apenas quando se está doente ou em crise pandêmica.

 

O corpo individual é feito do mesmo tecido do corpo social, e se este corpo social está doente, não podemos estar completamente sãos. A pandemia é o pior e mais amargo exemplo disso. Contudo, ela também pode ser o momento em que ocorre a virada de um horizonte médico desumanizador. A medicina, como as outras ciências, está numa encruzilhada histórica: ou desfaz as contradições formadas pela Modernidade, ou as agudizará caminhando para sua completa asfixia.

 

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