"A proposição do Estado oferecer empregos públicos para aqueles que não conseguem trabalho é uma ideia antiga, que podemos encontrar na literatura econômica pelo menos desde 1899, mas que raramente esteve no centro das propostas de combate ao desemprego", afirma o economista
Entre os inúmeros problemas das economias modernas, um deles está sempre presente, seja em períodos de crescimento ou recessão: o desemprego. Na literatura econômica, esse fenômeno, que atinge somente no Brasil 13 milhões de pessoas, é explicado pela falta de qualificação dos trabalhadores ou pela falta de demanda do setor privado para contratar todos que desejam ingressar no mercado de trabalho. Para enfrentar essa realidade, que faz parte do dia a dia de trabalhadores de todo o globo, uma solução tem sido proposta no interior das discussões acadêmicas sobre economia: a adoção de "um programa em que o Estado atua como um garantidor do direito ao trabalho, que está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos", diz o economista Enzo Matono Gerioni na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
O programa, denominado teoricamente de "Estado Empregador de Última Instância - ELR" ou "Job Guarantee (programa garantidor de emprego)", formulado pelo economista norte-americano pós-keynesiano Hyman P. Minsky, parte do princípio de que "as economias modernas são inerentemente instáveis, ou seja, a instabilidade começa a ser construída nos períodos de alto crescimento econômico e baixo desemprego. O pleno emprego, além de difícil de ser obtido, é ainda mais difícil de ser mantido por longos períodos. Como resultado, o ELR é uma proposta de solução ao desemprego e é a única no sentido de dissociar a manutenção do pleno emprego duradouro do nível de atividade econômica", explica.
De acordo com Gerioni, a "consequência mais óbvia" da implantação de um programa desse tipo "é que os trabalhadores que perdessem seus empregos devido à baixa demanda do setor privado encontrariam emprego imediatamente dentro do programa ELR e não teríamos uma disparada do desemprego como vemos usualmente. Além da manutenção dos empregos, a queda da renda que normalmente acompanha o aumento do desemprego seria amortecida, mas provavelmente não seria completamente impedida".
A seguir, o economista explica os principais aspectos do ELR e da Modern Money Theory - MMT, tema de sua tese de doutorado, intitulada "A Macroeconomia do Pleno Emprego na Periferia". Segundo ele, a MMT e o ELR "representam a fronteira do pensamento crítico dentro da economia contemporânea. Trata-se de um retorno à defesa de uma política macroeconômica que priorize o pleno emprego como objetivo".
Enzo Matono Gerioni (Foto: Arquivo Pessoal)
Enzo Matono Gerioni é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Paraná - UFPR, mestre em Economia pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp.
IHU - Qual é a proposta central da Modern Money Theory - MMT e quais suas contribuições para questões relativas às políticas monetária e fiscal de governos?
Enzo Matono Gerioni - O debate central da MMT está diretamente relacionado à operação das políticas monetária e fiscal. Até o surgimento da MMT, no decorrer dos anos 1990, os economistas acadêmicos não haviam se preocupado em entender exatamente como o governo realiza seus gastos (parte da política fiscal) e como determina a taxa de juro (política monetária). A contribuição da MMT está justamente no entendimento de como o Tesouro Nacional e o Banco Central coordenam para que os gastos do governo não desviem a taxa de juro de curto prazo do alvo estabelecido pelo Banco Central ao mesmo tempo em que garantem que o Tesouro Nacional tenha fundos em sua conta para realizar os gastos que forem necessários.
Diferentemente do que a grande maioria dos economistas assumiam, a MMT demonstrou, através das operações nos balanços do Tesouro Nacional e do Banco Central, que os gastos do governo não estão limitados pela falta de dinheiro para gastar, mas sim por outros fatores, como a inflação que pode ser causada pela escassez de recursos reais. Outra importante contribuição foi esclarecer que a venda de títulos de dívida pelo governo não tem qualquer relação com o financiamento dos gastos do governo, mas sim com a drenagem de reservas bancárias excessivas que resultam do gasto do governo, evitando que o excesso de dinheiro no sistema monetário force a taxa de juro para baixo, fora do alvo estabelecido pelo Banco Central.
Assim, a MMT demonstrou que uma pressuposição feita pelos economistas até então, de que há uma relação quase mecânica entre gasto do governo e taxa de juro, na realidade não precisa ocorrer necessariamente. Esta relação é apenas uma estratégia de política macroeconômica, por opção do governo, que pode estabelecer qualquer relação entre a taxa de juro e a política fiscal executada. A principal consequência desse desenvolvimento teórico pela MMT é que é possível repensar toda a estratégia de política macroeconômica “fora da caixa” do que vem sendo feito pelos governos das principais economias do mundo nas últimas cinco décadas. A MMT demonstrou que as restrições que antes pensávamos haver sobre a política macroeconômica, na realidade, são apenas regras autoimpostas. É claro que isso não significa que qualquer regra orçamentária seja indesejável ou desnecessária. A principal lição é que podemos escolher apenas as regras que tenham boa funcionalidade para economia, sem apego a dogmas econômicos ultrapassados e que, na maioria das vezes, causam disfuncionalidade.
IHU - Quais seriam as vantagens e desvantagens da aplicação dessa teoria para orientar as políticas monetária e fiscal dos governos estaduais brasileiros e do governo federal?
Enzo Matono Gerioni - Quando estamos falando da contribuição teórica da MMT, na realidade, nos referimos a uma descrição bastante detalhada de como o governo operacionaliza as políticas monetária e fiscal atualmente. Não se trata de uma teoria que poderia ou deveria ser aplicada por um ou mais países, mas sim de uma descrição de como eles já operam atualmente. Não podemos dizer que um determinado país decidiu aplicar ou deixar de aplicar a MMT.
Todos os países que emitem a sua própria moeda, cobram impostos em sua própria moeda e fazem pagamentos em sua própria moeda estão dentro da operacionalidade descrita pela MMT. Existem algumas pequenas diferenças de país para país, como leis particulares que impõem restrições, no entanto, sem alterar essencialmente a forma como as políticas monetária e fiscal são operacionalizadas. Um exemplo é o teto da dívida pública nos EUA, que periodicamente restringe o funcionamento normal daquele país, sendo mantido como ferramenta de pressão política do Congresso sobre o Executivo. O que fica evidente, quando a restrição é relaxada com a simples aprovação de uma lei, é que a restrição não existia de verdade e que o relaxamento do teto da dívida não gera aumento de juro ou aceleração automática da inflação. A grande contribuição que a MMT trouxe à economia moderna foi justamente o entendimento dessa operacionalidade e, consequentemente, uma melhor compreensão de quais são e quais não são os limites para atuação das políticas fiscal e monetária.
Em geral, podemos dizer que as contribuições teóricas da MMT estão diretamente relacionadas a aspectos do governo federal, mas isso não quer dizer que não têm implicações sobre os governos estaduais e municipais. Em um país como o Brasil, por exemplo, temos um descompasso crônico entre a estrutura de arrecadação tributária de estados e municípios e os gastos necessários para o bom funcionamento dos serviços públicos previstos na Constituição. Embora algumas unidades da federação tenham dificuldades mais graves do que outras, é conhecido que os governos subnacionais são forçados a recorrer ao endividamento para conseguirem cumprir suas atribuições constitucionais.
Repetidamente, a solução é uma reestruturação do endividamento dos entes subnacionais visando uma redução dos gastos públicos que, ao mesmo tempo reduz ainda mais a qualidade e a quantidade de serviços públicos disponíveis à população e falha em proporcionar uma solução duradoura para o problema. A compreensão proporcionada pela MMT sobre as finanças do governo federal tem grande impacto sobre como as finanças dos governos estaduais e municipais deveriam ser estruturadas. Ainda que esse tema tenha sido pouco explorado dentro da própria literatura da MMT, certamente as contribuições elaboradas à luz da MMT poderiam alterar significativamente o fornecimento de serviços públicos de estados e municípios bem como a sua solidez financeira.
IHU - Em que consiste a proposta de um "Estado Empregador de Última Instância - ELR"?
Enzo Matono Gerioni - O ELR – atualmente também conhecido como Job Guarantee (programa garantidor de emprego) – é um programa em que o Estado atua como um garantidor do direito ao trabalho, que está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A proposição do Estado oferecer empregos públicos para aqueles que não conseguem trabalho é uma ideia antiga, que podemos encontrar na literatura econômica pelo menos desde 1899, mas que raramente esteve no centro das propostas de combate ao desemprego. Em um período mais recente, o ELR está associado ao trabalho do economista Hyman P. Minsky e, influenciado por Minsky, o trabalho da MMT. O desemprego é um problema que aflige praticamente todas as economias e que tem sido motivo de preocupação para os economistas há séculos. Mesmo em períodos de crescimento econômico acelerado e prosperidade, milhões de pessoas não conseguem um emprego formal no setor privado. Em períodos de menor crescimento ou de crises econômicas, a situação se torna ainda mais grave pois o número de desempregados se multiplica.
Procurando lidar com constância do desemprego involuntário, a ideia do programa é que o Estado contrate as pessoas que estejam dispostas, disponíveis e aptas ao trabalho, mas que por alguma razão não são contratadas no setor privado. É importante ressaltar que o Estado não entraria para competir com o setor privado pelos trabalhadores, pois atuaria como um contratador residual, ou seja, o objetivo não é realocar trabalhadores do setor privado para o governo. O objetivo é alocar trabalhadores ociosos para o trabalho proporcionado no contexto do programa. A entrada no programa não seria compulsória para os desempregados e os que desejassem a contratação no programa receberiam um salário pelo trabalho realizado.
Por fim, também é preciso ressaltar que as pessoas que não estejam aptas a trabalhar, pelas mais diversas circunstâncias, desde problemas de saúde física ou mental até condições de vulnerabilidade social que impeçam o trabalho, ainda precisariam de políticas de assistência social que complementariam o ELR. O governo federal seria o responsável por pagar os custos do programa, mas a organização das atividades exercidas pelas pessoas contratadas ficaria sob responsabilidade da esfera local de governo, que poderia direcionar as atividades para áreas em que identifiquem maior necessidade. As funções exercidas pelos contratados no programa ELR não seriam substitutas daquelas exercidas pelo funcionalismo público que já existe. Os serviços públicos prestados pelas pessoas contratadas no ELR seriam mais básicos e poderiam complementar os serviços públicos já existentes.
Essas são as características que dão o formato básico do ELR, porém, as diferenças institucionais bem como características específicas do mercado de trabalho de cada país fazem com que o formato mais adequado para cada economia seja diferente. Em um nível mais abstrato, a discussão sobre o ELR delineia as características mais básicas, e ao nível mais concreto seria necessária uma discussão com diversos setores da sociedade, especialmente com economistas especializados em economia do trabalho para definir qual seria o desenho mais adequado do programa.
IHU - Em que essa proposta se diferencia de outras que já tiveram como finalidade a manutenção do pleno emprego duradouro dissociado de flutuações do nível de atividade econômica?
Enzo Matono Gerioni - De maneira geral, as proposições de solução para falta de emprego, na literatura econômica, se dividem em dois grupos principais, sendo que o ELR não se encaixa em nenhum dos dois. O primeiro grupo parte de um diagnóstico de que a falta de emprego é um resultado da falta de qualificação dos trabalhadores, ou seja, as pessoas desempregadas estão desempregadas somente porque não tiveram educação formal ou qualificação técnica suficiente para atrair a demanda existente do setor privado. A partir desse diagnóstico, a solução proposta para lidar com o desemprego é melhorar o acesso à educação e/ou ao ensino técnico, tornando as pessoas suficientemente atrativas para serem contratadas no setor privado.
O segundo grupo parte de um diagnóstico diferente, de que não há demanda suficiente do setor privado para contratação de todas as pessoas que desejam um emprego e, portanto, o problema deve ser solucionado acelerando o nível de atividade econômica para que o setor privado amplie a contratação e empregue todas as pessoas que procuram emprego. Esse tipo de política é conhecido como gerenciamento de demanda agregada. O governo, neste caso, faz um ajuste fino utilizando as políticas monetária e fiscal, principalmente, para manter a economia em um alto nível de atividade, mas sempre evitando um superaquecimento que pudesse gerar excesso de demanda por trabalho e/ou recursos reais e, consequentemente, gerar inflação.
O ELR, proposto por Minsky e seguido pela MMT, parte de um diagnóstico contrário ao do primeiro grupo e muito mais próximo ao segundo grupo, de que há uma falta crônica de demanda dentro do setor privado para manter empregadas todas as pessoas que desejam trabalhar. No entanto, a solução proposta se diferencia do gerenciamento de demanda agregada justamente por entender que as economias modernas são inerentemente instáveis, ou seja, a instabilidade começa a ser construída nos períodos de alto crescimento econômico e baixo desemprego. O pleno emprego, além de difícil de ser obtido, é ainda mais difícil de ser mantido por longos períodos. Como resultado, o ELR é uma proposta de solução ao desemprego que não se encaixa nos dois grupos e é a única no sentido de dissociar a manutenção do pleno emprego duradouro do nível de atividade econômica.
Devemos ressaltar dois pontos aqui. O primeiro é que ainda que a educação e a qualificação técnica não sejam entendidas como fundamentais para solucionar o problema do desemprego, isso não significa de modo algum que sejam desnecessárias ou indesejáveis para construirmos uma sociedade e uma economia mais funcionais. Ao contrário, são elementos essenciais, mas que sozinhos não solucionarão o persistente desemprego involuntário. O segundo ponto é que mesmo que o ELR dissocie o pleno emprego duradouro do nível de atividade econômica, ainda assim a manutenção de um nível de atividade econômica alto seria importante por diversas outras razões e, por isso, continuaria como um objetivo legítimo da política macroeconômica. A questão é que o ELR permitiria que tanto em períodos de crescimento acelerado quanto em períodos de baixo crescimento ou recessivos, as pessoas conseguissem se manter trabalhando.
IHU - De que modo essa proposta pode contribuir para o enfrentamento das crises atuais, especialmente o alto índice de desemprego e falta de renda, em um país como o Brasil?
Enzo Matono Gerioni - Uma das principais característica do ELR é que se trata de uma política de contratação permanente das pessoas desempregadas. Podemos dizer que não é uma política que tem como principal objetivo o enfrentamento do desemprego como resultado de crises econômicas, mas sim do desemprego que persiste mesmo em períodos de bonança. Não se trata de uma política que o governo deveria guardar para períodos emergenciais. Isso está longe de significar que seria uma política sem impacto num período de crise ou que não possa ser utilizada em períodos de emergência. Uma vez que o ELR estivesse implementado, em um contexto de crise aguda com altíssimo desemprego e renda em queda dos trabalhadores, como é o caso do Brasil atualmente, ele teria um impacto ainda mais perceptível do que em períodos de crescimento acelerado. A consequência mais óbvia é que os trabalhadores que perdessem seus empregos devido à baixa demanda do setor privado encontrariam emprego imediatamente dentro do programa ELR e não teríamos uma disparada do desemprego como vemos usualmente. Além da manutenção dos empregos, a queda da renda que normalmente acompanha o aumento do desemprego seria amortecida, mas provavelmente não seria completamente impedida.
As pessoas que seriam demitidas e enfrentariam um período de desemprego na ausência do ELR – frequentemente um longo período – perderiam toda sua fonte de renda, enquanto com o ELR a queda da renda seria atenuada, já que as pessoas que perdessem o emprego teriam o salário básico do programa. Conforme o contingente de pessoas demitidas dos seus trabalhos no setor privado crescesse com a crise econômica, a massa salarial do programa ELR cresceria, injetando mais dinheiro e mais demanda em uma economia enfraquecida. Essa injeção serviria como um amortecedor da queda da renda e ajudaria na retomada da atividade econômica, pois evitaria uma queda mais drástica do consumo. Da mesma forma, conforme a economia se recuperasse e o setor privado retomasse a contratação de trabalhadores, a massa salarial do programa diminuiria proporcionalmente, evitando um superaquecimento da economia. Essa característica faz do ELR um estabilizador automático, pois o próprio funcionamento do programa atuaria sempre na direção de suavizar as flutuações do nível de atividade econômica, que ocorrem periodicamente.
IHU - Por que alguns economistas têm apostado nessa via do ELR?
Enzo Matono Gerioni - A realidade que se impõe à economia global desde a crise financeira de 2007/2008, em que não houve uma completa recuperação no mercado de trabalho – parte significativa dos empregos gerados após a crise são qualitativamente inferiores aos empregos que existiam antes – acompanhada do fracasso da política monetária não-convencional adotada como estratégia por muitos anos pelos principais bancos centrais despertou uma percepção em parte dos economistas de que não fomos capazes de fornecer uma resposta adequada para recuperação do mercado de trabalho.
Temos os exemplos dos Estados Unidos, do Japão e do Banco Central Europeu que mantiveram políticas monetárias expansionistas, com taxas de juros negativas, durante um grande período da última década sem, no entanto, serem capazes de fomentar uma recuperação econômica como a que se viu em crises passadas. É nesse contexto que a MMT, que já existia desde os anos 1990, passou a receber muita atenção e conseguiu entrar no debate público, especialmente, nos Estados Unidos. A ausência de uma estratégia macroeconômica capaz de entregar bons resultados em termos de geração de empregos e renda para os trabalhadores fez com que alguns olhos se voltassem para uma proposta pouco conhecida, apesar de ter surgido algumas décadas atrás, que é o ELR. Acredito que por se tratar de uma política “fora da caixa” e sustentada por argumentação lógica e teórica bem fundamentada como a MMT, o ELR apareceu como uma possibilidade interessante.
Outro fator que podemos pontuar é que os principais economistas que publicaram os livros e artigos que estabeleceram a MMT estão em Universidades nos Estados Unidos e conseguiram chamar atenção de líderes políticos relevantes naquele país. Stephanie Kelton, que escreveu alguns dos mais importantes artigos da MMT, está entre os economistas escutados por Bernie Sanders e outros políticos do Partido Democrata. A influência da MMT sobre políticas formuladas pelo Partido Democrata pode ser percebida pela inclusão de um programa do tipo ELR dentro do Green New Deal, que foi proposto pela ala mais progressista do partido.
IHU - Como a MMT e o ELR estão sendo discutidos no Brasil, seja na academia ou no âmbito político?
Enzo Matono Gerioni - As contribuições teóricas da MMT, naturalmente, desembarcaram no Brasil antes do debate sobre o programa ELR, mesmo que os dois andem de mãos dadas. Por aqui, foram professores e pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ que primeiro trouxeram as contribuições da MMT, inclusive com a publicação da tradução, já em 2003, do livro publicado por Randall Wray, em 1998, que pode ser considerado a inauguração da MMT. Outra referência que foi essencial para o estabelecimento da MMT no Brasil foi o Fabiano Dalto, professor de economia na Universidade Federal do Paraná - UFPR, que desde muito cedo do surgimento da MMT já esteve pesquisando na área e é, na minha opinião, a principal referência sobre a MMT no Brasil atualmente, além de ser responsável pela introdução ao tema de diversos pesquisadoras e pesquisadores que continuam trabalhando na área. Seguindo a trajetória de como ocorreu nos Estados Unidos e na Europa, a MMT no Brasil recebeu pouquíssima atenção fora desse grupo restrito de professores e pesquisadores. Dentro da academia, a situação começou a mudar a partir da segunda metade da década passada, com o aumento das publicações de artigos e livros na Europa e nos Estados Unidos. Podemos dizer que a MMT começou a entrar no radar de um número um pouco maior de economistas, mas de maneira bastante restrita dentro do grupo da economia heterodoxa.
A expansão do debate dentro e fora da academia para o campo da economia mais ortodoxa, no Brasil, se deu com a publicação de artigos de jornal e, posteriormente, de trabalhos mais completos por André Lara Resende sobre a MMT. Acredito que foi devido ao maior alcance que os textos de Lara Resende conseguem atingir que a MMT saiu de círculos mais restritos da economia e entrou, ainda que timidamente, no debate público no Brasil. Vimos um grande aumento de referências à MMT, seja de maneira crítica ou com concordância.
No âmbito político, certamente não sou a pessoa mais indicada para dar uma resposta atualizada e precisa. Assim como a MMT cresceu dentro academia, consigo ver uma crescente articulação das ideias da MMT na direção de influenciar a formulação de políticas públicas. Me parece que aqui ainda não há uma articulação tão bem estabelecida como há nos Estados Unidos, mas temos partidos de posições ideológicas diversas demonstrando algum interesse em entender de modo mais aprofundado as contribuições e propostas da MMT. No último ano foi fundado o Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento - IFFD, que reúne os principais pesquisadores da MMT no Brasil, que além de prezar pela excelência dos trabalhos acadêmicos também tem tido um papel essencial na articulação da MMT por aqui.
IHU - Há exemplos práticos de sucesso da aplicação da MMT e do ELR em algum país?
Enzo Matono Gerioni - Em termos de operacionalidade e coordenação entre o Tesouro Nacional e o Banco Central na execução das políticas monetária e fiscal, a MMT descreve de maneira apurada o funcionamento das principais economias atualmente. Por isso, não faz muito sentido falarmos em países que aplicam ou deixam de aplicar a MMT. Por outro lado, o ELR, proposto pela MMT, não faz parte do funcionamento normal das economias. Não tenho conhecimento de que exista ou tenha existido uma política que cumpra todos os requisitos básicos do ELR “ideal”, mas temos alguns exemplos que seguiram parcialmente a ideia do ELR que podem nos dar algumas pistas de como seria seu funcionamento fora do papel.
Nossos vizinhos, na Argentina, utilizaram uma política do tipo ELR no início dos anos 2000. O programa mudou de nome algumas vezes. Durante um tempo foi chamado de Jefes y Jefas. O programa previa a possibilidade de contratação de uma pessoa por família em um emprego garantido pelo Estado, para prestação de serviços públicos básicos. Havia o pagamento de um salário, que ficava abaixo do salário praticado no mercado de trabalho privado, mas que garantia uma renda às famílias que tinham dificuldades em conseguir emprego no setor privado. Diferentemente da estrutura básica idealizada pelo ELR na literatura, além de não ter sido universal – havia a restrição de participantes por família – o programa foi implementado como uma resposta à crise do início dos anos 2000. O próprio sucesso do programa, que evitou um aumento ainda maior do desemprego do que se verificou e por ter garantido alguma renda à uma parcela significativa da população, diminuiu o sentido de urgência do programa e, gradualmente, ele foi sendo esvaziado. Por um lado, o programa foi bem-sucedido na garantia de renda e emprego, mas, por outro lado, não se consolidou como um garantidor permanente de empregos.
Outro exemplo interessante é o esquema garantidor de empregos de Maharashtra, que é uma região da Índia. Este é um programa extremamente consolidado, que já existe desde os anos 1970. Assim como o programa na Argentina, o garantidor de Maharashtra não segue todas as características idealizadas para o ELR, mas podemos ver grandes similaridades. As pessoas que desejam podem exercer funções conforme organizado pelo governo local em troca de um salário. No entanto, o programa só está disponível para trabalhadores da área rural e também há uma limitação de cem dias de trabalho por ano para cada pessoa. Isso significa que a garantia de emprego não é universal e nem permanente. Outra diferença importante é que o próprio governo local é o principal financiador do programa, diferente do projetado no ELR “ideal”. Mesmo com essas diferenças, o programa tem se mantido por décadas e com grande sucesso na redução da pobreza.
Mesmo que essas políticas não cumpram exatamente todas as características do ELR, podemos tirar algumas lições importantes. Entendo que a principal lição é que não apenas uma política do tipo ELR é possível nos países desenvolvidos, mas também em países em desenvolvimento, onde o problema da falta de empregos é mais evidente. A segunda lição é que realidades econômicas e sociais tão distintas quanto Índia e Argentina tiveram programas com desenhos distintos, mas que à sua maneira podemos considerar bem-sucedidos.
IHU - Quais são as críticas e objeções feitas à MMT e ao ELR?
Enzo Matono Gerioni - Como em outras áreas da ciência, na economia, quando uma contribuição começa a receber mais atenção, cresce o interesse para entender melhor o que está sendo dito e, compreensivelmente, há um escrutínio da teoria e/ou dos resultados. O mesmo ocorre com a MMT. Os questionamentos cresceram na mesma proporção que cresceu a repercussão da MMT. Uma das críticas mais interessantes foi elaborada por Marc Lavoie, um economista canadense, que questionou se algumas diferenças institucionais na operação entre o Tesouro Nacional e o Banco Central que existem entre diferentes países poderiam de alguma maneira mudar os resultados apresentados pela MMT. Em especial, Lavoie se referiu a dois tipos de restrições, que inclusive existem na institucionalidade brasileira, que é a necessidade do Tesouro ter saldo positivo na sua conta no Banco Central e a vedação legal de que o Banco Central compre títulos da dívida pública diretamente do Tesouro. O questionamento levantado por Lavoie ensejou uma resposta da MMT que considerasse essas duas restrições dentro operacionalidade do Tesouro e do Banco Central. Com isso, a resposta que foi elabora principalmente por Scott Fullwiler foi um importante aprofundamento e maior detalhamento da MMT.
Há também os economistas que continuam defendendo dogmaticamente a ideia de que o Estado está sujeito às mesmas restrições orçamentárias que uma família ou uma empresa. Essa é uma ideia que é muito fácil de ser transmitida ao público geral, pois faz parte do cotidiano das pessoas pensarem no seu próprio orçamento como o balanceamento de receitas/renda versus despesas. Rotineiramente, vemos economistas tratando em programas especializados as contas do governo como uma reprodução ampliada dos orçamentos de famílias e empresas, derivando também as mesmas consequências para o aumento do endividamento do governo. Sabemos, no entanto, que não há risco de o governo quebrar em sua própria moeda e que a taxa de juro sobre a dívida pública não responde automaticamente ao tamanho dessa dívida. As críticas à MMT com base nesse argumento simplesmente partem de um pressuposto, sem ter propriamente uma argumentação sólida como base.
Outra crítica, que eu explorei na tese, refere-se à possível perda de autonomia das políticas monetária e fiscal devido às assimetrias do sistema monetário internacional. A crítica diz, resumidamente, que países em desenvolvimento, como o Brasil, não têm autonomia para determinar a taxa de juro de curto prazo (política monetária) e executar uma política fiscal diferente daquela entendida como a mais adequada pelos investidores internacionais. Apesar da falta de clareza dessas críticas, encontramos elementos incompatíveis com a endogeneidade da moeda, o que pode ser um problema, já que há relativo consenso dentro da heterodoxia de que a endogeneidade da quantidade de moeda é uma característica das economias contemporâneas. A incompatibilidade com a endogeneidade da moeda, por mais que pareça apenas um entrevero teórico, tem impacto direto justamente sobre as conclusões acerca da autonomia da política monetária e sobre a relação entre a determinação da taxa de juro e a política fiscal. Mostramos ao longo da tese que os argumentos apresentados por essa crítica não estão claramente apresentados na literatura, o que dificulta o avanço do debate em torno da estratégia macroeconômica viável.
IHU - Deseja acrescentar algo?
Enzo Matono Gerioni - Na minha visão, a MMT e o ELR representam a fronteira do pensamento crítico dentro da economia contemporânea. Trata-se de um retorno à defesa de uma política macroeconômica que priorize o pleno emprego como objetivo. As estratégias de política macroeconômica baseadas na austeridade fiscal vêm sendo repetidas por décadas por governos e Bancos Centrais que, sem qualquer surpresa, continuam entregando resultados ruins. A MMT apresentou uma contribuição teoricamente sólida para repensarmos as limitações das políticas monetária e, principalmente, fiscal, permitindo proposições que fujam da fracassada austeridade.
No Brasil, é importante entendermos que o pleno emprego não é um privilégio dos países desenvolvidos que seria excessivamente custoso para uma nação ainda em desenvolvimento. Muito pelo contrário, são os países em desenvolvimento que mais urgentemente precisam utilizar todos os seus recursos, inclusive a força de trabalho, para consolidarem uma estratégia de desenvolvimento que traga prosperidade compartilhada. O pleno emprego não é um custo ao desenvolvimento. Na verdade, é o único caminho que temos à nossa disposição para obtê-lo.