02 Setembro 2014
“O Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais foi avançando em sua reflexão e impulsionando também uma tomada de consciência sobre a trajetória a ser seguida nos meios, e isto é visível em seus documentos, desde Communio et Progressio até Aetatis Novae”, avalia a consultora do Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais.
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“O Papa Francisco é em si mesmo criador de eventos midiáticos”, diz Letícia Soberón, integrante de um comitê do Vaticano para a revisão das mídias da Santa Sé, recém-nomeada pelo papa. Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, ela comenta a comunicação desenvolvida pela Igreja ao longo dos séculos. “Cada Pontífice tem seus carismas e seu estilo pessoal. Por isso, a comunicação vaticana se matiza segundo o Papa do momento, assim como acontece com o estilo episcopal nas dioceses do mundo. Mas existe uma continuidade extraordinária, realizada pelo Espírito Santo. Cada Papa caminha sobre a senda que os anteriores abriram, e abre, por sua vez, novas sendas no caminho da Igreja”, pontua.
Para ela, o foco da comunicação da Santa Sé “deve ser, e é, ao mesmo tempo o anúncio de Jesus Cristo como caminho, verdade e vida, e também a contemplação dos acontecimentos de cada dia em chave de esperança, de paz e de concórdia. É um trabalho ao mesmo tempo humanizador e evangelizador”.
Na entrevista a seguir, Letícia ainda não pode mencionar os detalhes das diretrizes de comunicação a serem elaboradas pela Santa Sé, mas sinaliza a intenção de manter e fortalecer a “cultura do encontro” via internet. “Toda tecnologia de comunicação pode ser usada para transmitir o Evangelho, mas o ciberespaço é mais que uma tecnologia: é um hábitat social onde as pessoas vivem, experimentam a relação humana, constroem conhecimento, compartilham vivências”, enfatiza. E acrescenta: O papa “não vê os meios de comunicação como inimigos ou ameaças, mas como espaços de diálogo e encontro, de difusão e evangelização”.
Letícia Soberón Mainero é doutora em Comunicação pela Universidade Gregoriana de Roma, responsável pelos conteúdos do sítio www.dontknow.net e consultora do Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais.
Confira a entrevista.
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IHU On-Line – Qual é o guia do Vaticano para a comunicação que deve ser desenvolvida pela Igreja? Quais eram, até agora, as principais orientações da Igreja em relação à comunicação?
Letícia Soberón Mainero - A Santa Sé iniciou seu caminho “midiático” propriamente dito pouco depois da invenção da imprensa. Em 1587, o Papa Sisto V instituiu a Tipografia Vaticana, para aproveitar o invento de Gutenberg a serviço da Igreja e do Evangelho. Três séculos mais tarde, em 1861, nasce o L’Osservatore Romano, para defender os Estados Pontifícios e o lugar da Igreja numa sociedade convulsa. Quase cem anos depois, no dia seguinte à assinatura dos Pactos Lateranenses, que deram origem ao Estado da Cidade do Vaticano em 1929, o Papa Pio XI delegou a Guillermo Marconi a construção de uma rádio a serviço da Igreja. Assim foi; no dia 12 de fevereiro de 1931, nasce a Rádio Vaticano, para que o Papa pudesse comunicar-se com os católicos além das fronteiras do meio quilômetro quadrado que ocupa na colina vaticana. E assim sucessivamente com os demais meios vaticanos. O Papa Pio XII funda, em 1948, a Pontifícia Comissão para o Cinema Didático e Religioso, embrião do que seria o Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais.
Com o Concílio, todo este processo dá um passo gigantesco; além de ser criado o que viria a ser a Sala de Imprensa da Santa Sé, os bispos tomam consciência de que existe essa coisa da comunicação social, e o Decreto Inter Mirifica, publicado em 1963, lança a caminhada comunicativa eclesial por um caminho novo, mais aberto e de diálogo com a sociedade e com os meios de comunicação social da época.
Como se vê, a comunicação foi uma prioridade para a Santa Sé em cada momento histórico, guiada pela luz do Evangelho e o mandato de Jesus, e, ao mesmo tempo, enraizada na situação de seu tempo, antecipando-se muitas vezes à sociedade de seu tempo.
IHU On-Line - O decreto conciliar do Vaticano II para os meios de comunicação – Inter Mirifica – diz que o propósito da Igreja é a comunicação apostólica. Como avalia as ações e programas da Igreja quando se trata da evangelização? Também neste contexto, a comunicação da Igreja centrou-se mais na informação (eventos da vida do Papa e da Igreja) do que na evangelização?
Letícia Soberón Mainero - Quando falamos da “Igreja” estamos nos referindo a uma realidade enorme, variada, presente em todo o mundo, cheia de carismas e estilos diversos na hora de comunicar. Creio que desde as origens da era moderna houve extraordinárias experiências comunicativas da Igreja no mundo e também falta de perspectiva em algumas ocasiões. Os meios de comunicação católicos passaram por diferentes etapas e não há dúvida de que vamos aprendendo.
A Inter Mirifica afirma que a Igreja usa os meios de comunicação para ensinar, instruir e governar os fiéis, e também que os cristãos devem vivificar com espírito humano e cristão esses meios.
Penso que a informação sobre a vida da Igreja é necessária e interessante para muitíssimas pessoas, e isso não é incompatível com a comunicação propriamente evangelizadora ou catequética. Cada mensagem tem seu momento e sua linguagem própria. Como dizia dom John P. Foley quando era presidente do Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais: temos que estar em todos os meios, próprios ou alheios, e usar todas as linguagens. Este caminho é longo e penoso, nem sempre se acerta, mas vamos avançando.
IHU On-Line - Qual é a proposta de adaptação dos meios de comunicação da Santa Sé às novas tendências de consumo dos meios de comunicação, como as redes sociais ou aplicações móveis? Qual deveria ser o foco da comunicação da Santa Sé? Quais são as prioridades e necessidades?
Letícia Soberón Mainero - A Santa Sé criou, no início dos anos 1990, junto com o CELAM, a primeira rede digital da Igreja: a Rede de Informática da Igreja na América Latina - RIIAL. Este fato foi importante porque a RIIAL foi, em certo sentido, uma “pedagoga” do digital para a Igreja no continente, mas também para a Santa Sé, que criou em 1995 seu sítio na internet através do Departamento da Internet. Em 1997, nasce a Agência Zenit, no contexto da RIIAL, como um meio informativo eclesial a serviço do Sínodo para a América.
Também Conferências Episcopais de grande visão, como a italiana e a francesa, por exemplo, orientaram, à sua maneira, o caminho da Igreja na senda digital. O Papa João Paulo II publicou no final do seu Pontificado um extraordinário documento, “Rápido desenvolvimento”, que para muitos passou despercebido por coincidir com a morte do grande papa polonês. É preciso relê-lo para compreender muitas coisas.
O Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais foi avançando em sua reflexão e impulsionando também uma tomada de consciência sobre a trajetória a ser seguida nos meios, e isto é visível em seus documentos, desde Communio et Progressio até Aetatis Novae. Também favoreceu a integração dos meios vaticanos no portal www.news.va e no www.intermirifica.net, iniciativas concretas que ajudam para que os meios de comunicação leigos e católicos realizem seu trabalho mais facilmente. Também as Mensagens do Papa para as Jornadas Mundiais das Comunicações Sociais são uma grande fonte de inspiração para as Conferências Episcopais de todo o mundo.
O Papa Bento XVI entrou no Youtube e escreveu o primeiro tuíte. Suas mensagens para as Jornadas Mundiais das Comunicações Sociais são de uma extraordinária riqueza, e vale a pena relê-los.
E o Papa Francisco é em si mesmo criador de eventos midiáticos. Ele mesmo comunica com seu olhar; seus gestos correm e se difundem pelas redes sociais de um modo extraordinário. É outro modo de comunicar, muito mais em sintonia com o que a sociedade de hoje compreende e compartilha.
O foco da comunicação da Santa Sé deve ser, e é, penso, ao mesmo tempo o anúncio de Jesus Cristo como caminho, verdade e vida, e também a contemplação dos acontecimentos de cada dia em chave de esperança, de paz e de concórdia. É um trabalho ao mesmo tempo humanizador e evangelizador.
IHU On-Line - Como o Papa ajudou a mudar e reorientar a comunicação no Vaticano?
Letícia Soberón Mainero - Cada Pontífice tem seus carismas e seu estilo pessoal. Por isso, a comunicação vaticana se matiza segundo o Papa do momento, assim como acontece com o estilo episcopal nas dioceses do mundo. Mas existe uma continuidade extraordinária, realizada pelo Espírito Santo. Cada Papa caminha sobre a senda que os anteriores abriram, e abre, por sua vez, novas sendas no caminho da Igreja.
O Papa Francisco significa para milhões de pessoas uma presença muito próxima do Evangelho, mesmo no contexto da sé vaticana. Mas Francisco simplesmente continua o caminho de simplicidade iniciado por João XXIII desmontando o que pudesse haver de “imperial” na vida pontifícia. O Papa Bom aboliu o “beijo no pé” que se dava ao Sucessor de Pedro como saudação reverente. Paulo VI retirou a tiara pontifícia e nenhum Papa voltou a usá-la. Também aboliu a Guarda Nobre pontifícia, com os leques de penas e os resquícios de uma “corte” aristocrática imperial, deixando apenas a Guarda Suíça e a Gendarmeria vaticana para a vigilância ordinária. João Paulo II aposentou a cadeira gestatória e recorreu ao papamóvel. Bento XVI já não colocou a tiara pontifícia nem sequer em seu escudo; volta a ser o de um bispo, embora fosse o de Roma. E teve a extraordinária coragem de renunciar ao pontificado, igualando-se aos demais bispos do mundo, que apresentam sua renúncia.
Pouco a pouco, depois do Concílio, os papas foram recuperando uma simplicidade e uma proximidade que expressam melhor a sempre surpreendente encarnação do Verbo de Deus em Jesus de Nazaré. O Papa Francisco está nessa linha de maneira decidida.
IHU On-Line - No princípio do seu pontificado, Francisco deu várias entrevistas, algumas das quais não foram gravadas e que foram tiradas do ar, como a entrevista que Eugenio Scalfari concedeu ao sítio Religión Digital. Neste sentido, que postura o Papa Francisco tomou em relação à comunicação através dos meios de comunicação? Há mudanças em relação à atuação de outros papas, por exemplo?
Letícia Soberón Mainero - O Papa Francisco é um homem do seu tempo. Telefona para pessoas concretas, utiliza a conversa (e os meios de comunicação) para estabelecer uma verdadeira relação com jornalistas e pessoas de outras convicções. Suas entrevistas são extraordinárias fontes de inspiração, e não teme tomar a iniciativa para comunicar o que deseja expressar. Não vê os meios de comunicação como inimigos ou ameaças, mas como espaços de diálogo e encontro, de difusão e evangelização. O Papa Francisco é amigo dos meios de comunicação.
Além disso, como dizia antes, seus gestos expressam sua personalidade próxima e atenta aos demais, especialmente aos mais fracos, enfermos, pobres ou afastados. Esta opção supõe uma enorme coerência pessoal. Paradoxalmente, na era digital a coerência é um dos valores melhor considerados. E, como os personagens mais públicos são acompanhados de perto pelas câmeras, nota-se logo quando são incoerentes.
O Papa Francisco não “posa”. Simplesmente é, está, fala, dirige-se com simplicidade aos seus interlocutores. Mas o mais importante é que ele tem algo a dizer, e o diz com toda a sua pessoa, não apenas com as palavras.
IHU On-Line - De que maneira o Papa Francisco estabelece a comunicação pelo Twitter?
Letícia Soberón Mainero - Ele vai soltando frases oportunas, uma mensagem breve, como exige o Twitter, com muita simplicidade e acompanhando os acontecimentos importantes. Pede que o acompanhem na oração. De algum modo convoca, não está apenas fazendo as coisas, faz todos os seus seguidores no Twitter viver uma experiência eclesial. E mais de 10 milhões de pessoas se beneficiam disso, participam, sentem-se convocadas em primeira pessoa. Creio que este meio aproxima porque é “digerível”; uma frase concisa e luminosa, qualquer um entende.
IHU On-Line - Como vê as interpretações que a comunicação na Igreja deve ser entendida como encontro e como testemunho?
Letícia Soberón Mainero - O Papa Francisco pede em sua Mensagem para a Jornada Mundial das Comunicações Sociais que se impulsione uma “cultura do encontro”. Isto significa escutar, prestar atenção àquilo que os interlocutores dizem. Implica também não ficar instalado nas próprias convicções, mas interessar-se pelo que os outros pensam e sentem. A Igreja que está no coração do Papa é a que teve a vivência do Ressuscitado e por isso dá testemunho. A comunicação é resultado dessa experiência. E quem não a teve, diz palavras similares, mas sem a carga de convicção que dá a essas palavras uma força extraordinária.
IHU On-Line - Como as novas tecnologias contribuem para a transmissão do Evangelho? Que espaços deveriam ocupar na Igreja e na comunicação da Igreja?
Letícia Soberón Mainero - Toda tecnologia de comunicação pode ser usada para transmitir o Evangelho, mas o ciberespaço é mais que uma tecnologia: é um hábitat social onde as pessoas vivem, experimentam a relação humana, constroem conhecimento, compartilham vivências. Neste sentido, estamos vendo que não devem ser concebidas como um simples alto-falante, mas algo mais parecido à praça de um povoado, aos cafés e lugares de encontro onde as pessoas se conhecem, conversam e criam vínculos. A presença dos cristãos no ciberespaço vai muito além das mensagens, que, evidentemente, têm que existir. É isso: presença. E isso significa escuta, companhia, compreensão, atenção, diálogo, experiências compartilhadas.
A Igreja deve estar com aquilo que a constitui como a mais convincente das mensagens: “sendo um” em Cristo. “Que todos sejam um, para que o mundo creia”. Ser um significa não falar mal de ninguém, não julgar e acolher a pluralidade dos carismas eclesiais como um dom de Deus. Amando como Jesus ama. Atendendo os pobres. Sendo coerentes com o que pregamos. Coerência de palavra e de obra. Tudo isto só se pode fazer com a ajuda de Deus, que envia seu Espírito Santo a quem o pede. E tudo isto pode ser feito também no ciberespaço, comunicando com simplicidade e abertura.
A coerência e a transparência são, neste momento, um testemunho de máximo valor comunicativo.
(Tradução André Langer)
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Papa Francisco e a cultura do encontro. Entrevista especial com Letícia Soberón Mainero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU