08 Dezembro 2013
"A luta política vai continuar. Os movimentos de jovens não vão parar. A parcela radical poderá ter momentos de recuo, mas retornará logo em seguida. É que a estratégia do movimento é a mesma dos revoltosos de 1789, a da ofensiva permanente. No que vai dar, eu não sei", afirma o Coordenador do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre.
“Os movimentos das ruas são importantes, sua consciência é notável, mas a adoção de formas de violência, seja qual for o motivo, introduz os seus atores no campo da guerra. Esse é o meu limite para as manifestações das ruas: elas só têm legitimidade se são pacíficas, se não cedem à violência de Estado”, afirma Jorge Barcellos, professor e coordenador do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Ele tem uma postura muito crítica em relação àquilo que considera excessos das manifestações de ruas que ocorreram em todo o Brasil, mas se debruça, particularmente, sobre os eventos ocorridos na capital gaúcha.
Jorge Barcellos considera que a violência das ruas gera uma sociedade fascista. Para ele, a falta de diálogo entre Estado e manifestantes gera um círculo vicioso no qual os argumentos de ambos os lados levam sempre a uma discussão em que todos são vítimas e algozes. Por outro lado, argumenta que a questão emergente diz respeito à relação entre os manifestantes e a imprensa. “Minha questão não é a relação entre os manifestantes e o Estado, mas entre os manifestantes e a imprensa. Essa falta de diálogo é que me preocupa. (...) O problema é justamente esse, substituir uma verdade — a da imprensa — por outra — a do movimento, considerada ‘a’ verdade”, ressalta.
Apesar de todas as críticas, Jorge Barcellos reconhece a importância do movimento: “Para mim, a juventude está protagonizando um dos maiores movimentos da década, mas tem os seus erros. O Estado tem diante de si a oportunidade única de ‘ouvir os anseios do povo’, mas precisa parar para ouvir”, pondera.
Jorge Alberto Soares Barcellos é licenciado e bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestre e doutor em Educação pela mesma universidade. Possui experiência de magistério nos ensinos médio e superior, além de publicações nas áreas de história, educação e política educacional. Atualmente é Coordenador do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre, onde é responsável pelo projeto Educação para Cidadania. É membro do Conselho da Escola do Legislativo Julieta Battistioli, da Câmara Municipal, e professor convidado do Studio Clio e do Sistema de Ensino Galileu (SEG). Recebeu a Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica e o Troféu Expressão da FINEP, ambos em 2006, pelas atividades do Projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal de Porto Alegre, sob sua coordenação.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Existem limites às manifestações? Até onde vai a legitimidade do manifesto?
Jorge Barcellos - Primeiro, minha interpretação é apenas como observador. Não tenho participado dos manifestos nem de qualquer grupo organizado. O que talvez seja uma vantagem, pois minha posição aproxima-se daquilo que os antropólogos chamam de “estranhamento”, isto é, frente ao envolvimento intenso dos atores, revelado pela intensidade das manifestações, talvez um olhar de fora ajude a compreender as características dos movimentos. Acredito que, para compreender os limites das manifestações, devemos procurar entendê-las a partir de um referencial adequado. A teoria sociológica clássica, evidentemente, não é suficiente para dar conta da energia social posta em ação. Eu diria que para um movimento pós-moderno é preciso uma teoria pós-moderna. Por isso eu prefiro tentar entender o movimento das ruas — movimento de junho, as manifestações, ou como quer que o denominemos genericamente — a partir de outras categorias e contribuições de autores não muito comuns na sociologia.
Por exemplo, se tomamos o pensamento de Paul Virilio , arquiteto e instigante filósofo francês, autor de El procedimiento silencio (Buenos Aires: Paidos, 2001), que fez reflexões sobre a função da guerra e a militarização da vida cotidiana, não é paradoxal que, no dia seguinte aos primeiros quebra-quebras protagonizados pelos Black Blocs , moradores e pequenos comerciantes tenham adotado a transformação de seus espaços em bunkers , os mesmos descritos por Virilio em seus trabalhos? Não é notável esta transformação do espaço urbano? As paliçadas ainda estão lá, na Borges de Medeiros e, é claro, principalmente no prédio onde mora o Prefeito? Por quê? Porque para Virilio a guerra se faz por si própria e pela percepção, e toda a batalha implica em um campo e em métodos de percepção que permitam tanto o ataque quanto a defesa. Minha interpretação é, nesse sentido, bastante conservadora: os movimentos das ruas são importantes, sua consciência é notável, mas a adoção de formas de violência, seja qual for o motivo, introduz os seus atores no campo da guerra. Esse é o meu limite para as manifestações das ruas: elas só têm legitimidade se são pacíficas, se não cedem à violência de Estado. Se o fazem, elas introduzem a lógica da guerra no interior das cidades. Por isso, muito cedo, dentro da lógica de ultrapassar os limites, os grupos violentos fizeram uso da mesma retórica libertária: não é quebra-quebra, é estética.
Estética e guerra
Ora, não me parece consolidada hoje sequer a ideia de uma arte contemporânea ou Body Art, veja-se o debate em torno da exposição Sensation , a qual tentou também romper a barreira dos limites, com seu tom mórbido, com sangue humano e cadáveres de animais. A primeira questão colocada foi: isto é arte? Do mesmo modo, apelando à violência ou cedendo de alguma forma a ela, a questão que se coloca é: isto é contestação? E, de igual maneira, o que estava em jogo na arte: chamar a atenção de forma disruptiva para transformá-la mais uma vez em ativo financeiro, e não é por outra razão que obras de arte passaram a ser um dos investimentos do sistema bancário. Assim, as contestações que ultrapassam o limite da sociabilidade e caem na violência, transformam o movimento social em outra coisa. E, da mesma forma que Jacques Ranciére — outro autor que se coloca ao lado destas perspectivas ditas pós-modernas — sentenciou que a arte modernista só foi modernista porque anunciou uma abertura do tempo e a imagem de uma nova sociedade possível, que tipo de sociedade a violência das ruas — aqui, nossa ultrapassagem de limites — encarna? Minha resposta é: uma sociedade fascista.
IHU On-Line – Considerando os diversos programas sociais e de desenvolvimento do Estado — Bolsa Família, Prouni, PAC, etc. —, o Brasil apresenta, em relação a outros períodos, um cenário favorável do ponto de vista econômico e social. Por que surgem manifestações neste ambiente?
Jorge Barcellos - Uma obra recente que trata dos avanços sociais nos governos Lula e Dilma foi organizada por Emir Sader e chama-se 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil (São Paulo: Boitempo Editorial, 2013). Nela está descrito o significativo avanço no campo social com a inclusão de 16 milhões de famílias no mercado de consumo moderno. É claro que tal inclusão perde valor se não estiver associada a espaços de criação de renda. Por esta razão a agenda macroeconômica da reindustrialização é ainda central, e o crescimento positivo, ainda que decrescente (2003 a 2006: 3,5; 2007-2010: 4,6; 2010-2012 despencando de 2,7 para 1,0), e a intervenção do governo na taxa de juros revelaram uma economia conduzida adequadamente — dentro de um contexto saído da crise de 2008. Quer dizer, não estávamos tão mal na economia, houve o efeito de minimizar no social eventuais perdas. Isto é, poderia ter sido pior. Não foi por intervenção do governo. No que se refere às classes mais baixas, já que indicadores apontam para uma redução da taxa da pobreza de 26,7% em 2006 para 12,8% em 2008. A classe média, para falarmos nos grupos mais próximos do movimento das ruas, elevou-se de 38% para 52% da população.
Dois grupos
Uma razão que eu encontro para a emergência das manifestações é o fato de que beneficiários das políticas sociais e manifestantes integram o mesmo grupo. O que é uma obviedade, já que podemos localizar nos rincões os beneficiários das políticas públicas — além, é claro, no círculo das periferias urbanas, e no centro das cidades mais desenvolvidas o movimento das ruas. Ainda vejo como um movimento no qual predominam universitários, a maior parte insatisfeita, de forma geral, com as políticas públicas. Preocupa-me, no entanto, a força que adquiriu no seu interior o movimento anarquista. Como um movimento de classe média urbana, a juventude universitária que ocupa as ruas representa, por outras razões, o retorno dos estudantes, como fizeram em 1964, não contra um Estado autoritário e a censura, mas contra um Estado que beneficiou os pobres somente. Eu diria: uma classe média afastada da pobreza não viu as melhorias sociais. Claro que foram num contexto populista, com problemas de mudança de condição de vida, etc. Mas, em 1964, eram jovens marxistas nas ruas; hoje são jovens anarquistas. Minha pergunta é: por que o anarquismo emergiu triunfante? A razão que encontro é que os anarquistas encontraram um notável espaço de manobra para assumir a centralidade do movimento. Primeiro, pelo incentivo de partidos ou a possibilidade de militar em um.
Partidos
Não nos enganemos, nestas práticas políticas ainda predominam a organização em rede, quer dizer, práticas militantes que alimentam o fornecimento entre sociedade e partidos, entre dirigentes, militantes e simpatizantes, de um continuum onde as relações são porosas. “O Partido se apoia em redes relacionais que se entrecruzam”, diz Frederic Sawicki, notável cientista político. Para mim trata-se de outra forma de recrutamento, processo de consolidação de relações entre grupos que colaboram entre si para um projeto, ainda que de modo indireto. Arriscaria dizer que, indiretamente, este movimento está buscando fortalecer a extrema-esquerda (PSOL e assemelhados) como alternativa ao PT, ex-esquerda e agora centro –esquerda — numa visão otimista. É o tipo de rede de consolidação apontada por Sawicki no pensamento do politicólogo francês Michel Dobry, pois relaciona grupos sociais inicialmente separados. O que as manifestações não querem é assumir seu laço com a extrema esquerda e seu projeto de oposição ao atual governo. Isto não é suficiente para explicar o movimento, reconheço, mas é um dos pontos que eu considero chave.
IHU On-Line – A crítica presente nas manifestações se referia ao modelo de democracia representativa em si ou às práticas políticas?
Jorge Barcellos – Evidentemente, trata-se de uma crítica de senso comum às práticas políticas. Não vejo sucesso em um movimento que critique o modelo de democracia que instalamos, desejamos e estamos construindo. Não estamos sequer deixando de considerar que é uma democracia imperfeita, uma democracia em que parte da política não faz o seu papel, mas que é a democracia representativa que temos. A crítica é senso comum porque recolhe do imaginário dos meios de comunicação de massa os fragmentos de crítica no ar — corrupção, roubalheira, do que estão justamente ausentes toda a referência aos avanços sociais. É a matéria de expressão — para usar uma frase da psicanalista Suely Rolnik — apropriada pelas massas de forma acrítica. A minha observação é que o componente de crítica ao modelo de democracia representativa existia apenas naqueles grupos anarquistas mais radicais. E de fato, observando algumas páginas de diretórios acadêmicos de universidades, ainda no início do ano, chama a atenção que alguns já estavam estudando a questão da auto-organização, por exemplo. É notável que os grupos se arrisquem a criticar a democracia representativa, pois o contra-argumento em voga no pensamento moderno é justamente o de que o capitalismo hoje não precisa mais de democracia.
Democracia representativa
O filósofo esloveno Slavoj Zizek disse isso do caso chinês, no que é acompanhado pelo escritor alemão Ingo Schulze ao pé da letra. Não dá para arriscar questionar justamente a validade ética da democracia representativa, pois a alternativa é muito pior. A crítica só pode ser entendida como um oportunismo radical da extrema esquerda que ideologiza o debate político de parcelas da juventude e o capitaliza em seu benefício para questionar o status quo. É claro que a democracia representativa possui limites, dados justamente pelas práticas políticas. Mas há um notável avanço no combate à corrupção, no incentivo à atuação fiscalizadora das prefeituras, nos portais de transparência, nos processos levados a cabo pelo Ministério Público, a própria transparência existente na Lei do Orçamento, na participação para a elaboração de emendas, etc.
IHU On-Line – O fenômeno das manifestações de 2013 reinaugurou uma prática política que foi muito vigente durante o regime militar – as marchas nas ruas. No entanto, possui características particulares correspondentes à nossa época. O que se mantém daquele período e o que é exatamente novo?
Jorge Barcellos - Gostaria de analisar a manifestação que envolveu a Câmara Municipal, espaço onde trabalho. Lamento contrariar a maioria dos universitários, mas minha posição é bastante conservadora. Minha questão é se seu lado progressista é suficientemente forte para superar o seu lado reacionário. Vejamos pontos pouco abordados nas análises do movimento. O filósofo e urbanista Paul Virilio, desde Guerra Pura: a militarização do cotidiano (São Paulo: Brasiliense, 1984), tem caracterizado o uso de estratégias militares no meio urbano. Para ele, não é necessário portar armas para ser um militar, basta experimentar a mentalidade militar: “Sem o saber, já somos todos soldados civis. E alguns de nós sabem disso. O grande golpe de sorte, para o terrorismo da classe militar, é que ninguém o reconhece. As pessoas não reconhecem a parte militarizada de sua identidade, de sua consciência”. Em sua obra posterior, Velocidade e Política (São Paulo: Estação Liberdade, 1996), Virilio aponta como elemento da mentalidade militar o “modo de movimento nas cidades”. Ele observa que Engels caracterizou a vida de Paris nas ruas do século XIX como sendo “onde a vida circula mais intensamente”. Por essa razão, os contingentes revolucionários tendem a nascer não nos locais de produção, como fábricas, mas nas ruas das cidades: “a massa não é um povo, mas uma multidão de passantes”, diz Virilio.
Assim foi em Porto Alegre com a tomada, pelo movimento da juventude, de ruas e avenidas pensadas como espaços de ocupação e/ou enfrentamento. Décadas atrás, num dos piores momentos da história, dizia Joseph Goebbels a esse respeito: “quem conquistar a rua, conquistará também o Estado”. Por isso o primeiro território de ocupação dos jovens manifestantes foi o asfalto, vias como as Avenidas Borges de Medeiros, João Pessoa e Ipiranga. Para Virilio, a estratégia de ocupar as ruas é sempre militar e aqui cumpre um papel paradoxal, já que na luta pelo transporte é a própria massa de estudantes que se torna o primeiro transporte coletivo, definindo a cidade como seu front de batalha. As massas desesperadas de Engels que em 1848 “reclamavam pão, trabalho ou morte” foram substituídas pelas massas estudantis que reclamam por “transporte, saúde, educação”.
Diz Virilio, “já é tempo de se render às evidências: a revolução é movimento, mas o movimento não é uma revolução”. A invasão do legislativo inaugura uma nova etapa nessa estratégia, a da conquista das instituições. Ela foi marcada por uma sociabilidade interna festiva e dionisíaca, com seus momentos de festa, congraçamento e alegria, como descreve o sociólogo francês Michel Maffesoli em sua obra O Nascimento das Tribos (São Paulo: Editora Forense Universitária, 2006), a qual se contrapunha uma militarização no melhor estilo SS , com controle de acesso externo do prédio do legislativo, uso de rádios de comunicação, fiscalização da entrada e saída de funcionários, rondas internas e administração dos fluxos da cidade no parlamento, frente a uma Guarda Municipal estupefata. É preocupante o fato de que um movimento social sinta-se no direito de impor o custo de suas operações às instituições — na invasão do parlamento, a paralisação das atividades, o desrespeito aos símbolos do legislativo — porque o gesto é expressão da apropriação do conceito de “dano colateral”.
Zygmund Bauman, em Danos Colaterais (Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2013), lembra que esse é outro ingrediente da “mentalidade militar”, definido pelo menosprezo dos efeitos de uma guerra particular pelos organizadores. Bauman alerta para o detalhe de que tal posição é sempre duvidosa, os “danos” acontecem ou porque não foram previstos pelos organizadores, ou porque foram considerados “menos importantes” e cujo sacrifício é considerado suportável pelos movimentos. Neste instante, o movimento projetou sobre si mesmo o espelho de sua desaparição. É que para o filósofo esloveno Slavoj Zizek, a violência simbólica é muito mais grave que a real, o que na Câmara foi representado pelo congelamento de sua soberania. Fim do espaço dos representantes.
IHU On-Line – A falta de diálogo entre os manifestantes (caracterizado nos mais violentos) e o Estado (caracterizado na polícia) é sintoma de que tipo de relação? Que desafios estão postos à convivência destes dois entes?
Jorge Barcellos - Esta falta de diálogo já foi bem caracterizada pelos analistas de plantão. Os argumentos já fazem parte do debate: insensibilidade do Estado, autoritarismo das corporações, numa relação que faz de ambos vítimas e algozes. Sinto pela perda de um trabalho no campo dos direitos humanos que parcela da polícia fazia e que depois dos movimentos e reações ficou desacreditado. Agora, minha questão não é a relação entre os manifestantes e o Estado, mas entre os manifestantes e a imprensa. Essa falta de diálogo é que me preocupa. Achar que Zero Hora é um veículo burguês apenas, é uma visão simplificada. É obvio que há jornalistas de todos os matizes, que há uma luta interna, e negar o diálogo em nada acrescenta ao movimento social. Ao contrário, há interessantes dissensos entre os jovens justamente nesse ponto, uma vez que houve manifestações de lideranças publicadas na ZH, contrariando seu discurso. Essa questão ficou evidente também no caso da Câmara Municipal.
Imprensa
Depois de invadirem o plenário, os jovens realizaram a assembleia do movimento e o primeiro encaminhamento foi a questão do controle da informação. Ela deveria ser transparente entre os participantes, entre os integrantes do bloco, daí a necessidade formal de apresentação e vedado o seu acesso à imprensa tradicional, acusada de manipuladora e ideologicamente comprometida com o capital. Pela apresentação dos participantes, ficamos conhecendo os integrantes do movimento: Federação Anarquista Gaúcha, Frente Nacional dos Torcedores, Frente Autônoma, Centro de Cultura Libertária do Bairro Azenha, Centro de Estudantes de Ciências Sociais, Coletivo Vamos à Luta , Unidos pra Lutar, estudantes de diretórios acadêmicos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Ufrgs.
Alguns estudantes apresentavam-se como integrantes de três movimentos sucessivos, e outros de outras cidades, como Campo Bom e Novo Hamburgo. Grupos de todos os perfis e ideologias: Grupo Anarco-Feminista, Levante Popular da Juventude, Coletivo Ovelhas Negras, Coletivo Kizomba , Coletivo Putinhas Aborteiras e estudantes dos cursos de ciências sociais, odontologia, comunicação, biologia, engenharia e de cursos pré-vestibulares. Havia também professores e pelo menos um servidor da área de saúde.
Mas como fazer uma democracia baseada no controle da difusão de informações? Rodrigo Brizola, da Frente Autônoma, apregoa na assembleia que só ficariam os meios de comunicação com os quais o grupo “tenha confiança”. A partir daí tomar o poder passa pelo controle da informação e impedir o acesso da “mídia tradicional” é referendado pelos inúmeros coletivos presentes. A recusa da “mídia tradicional” não é hegemônica: Matheus Gomes, do DCE da Ufrgs e integrante do movimento, publica no dia 19 de julho artigo de opinião em Zero Hora, na “mídia burguesa” que critica. Assim como a função dos sans-culottes durante a revolução francesa era exercer a delação de suspeitos, vigiar bairros e imóveis, efetuar prisões, os novos revolucionários outorgaram-se a si a tarefa de controle da imprensa livre. Isso é um problema.
Por outro lado, os jovens fizeram a grande revolução da informação ao criarem seus próprios veículos de comunicação via Internet. Com suas páginas no Facebook e a criação de um canal de televisão online (Catarse.com), os jovens fizeram sua revolução particular no modo de organização dos movimentos sociais. A partir de agora, todo movimento social deve aos jovens uma nova forma de difusão de informações em tempo real. Mas o problema é justamente esse, substituir uma verdade — a da imprensa — por outra — a do movimento, considerada “a” verdade. Onde fica o direito à livre interpretação?
IHU On-Line – A polícia continua presa às práticas do século XX? Quais sãos os desafios em relação à garantia da segurança pública e do direito de se manifestar?
Jorge Barcellos - Para começar, consideremos o poder de polícia da própria Câmara no seu interior: ele foi zero. A conquista do prédio da Câmara foi uma vitória simbólica, já que a guerra “é a continuação da política por outros meios”. Mas o fato de que tenham conseguido fazer o deslocamento do movimento das ruas para às instituições não significa que tenham tido sucesso em sua revolução. Para mim, novamente, a garantia do direito de se manifestar exclui a possiblidade de violência. Somente isso nos dá condições de exigir do Estado repressão aos seus agentes, somente isso dá condições de cobrar das autoridades pacificação. Como garantir o direito de se manifestar, se os mesmos jovens que foram vítimas da truculência das abordagens policiais, por breves instantes reproduziram as estratégias de seus algozes no interior do legislativo? As cenas são conhecidas: um fotógrafo agredido, um presidente intimidado, um parlamento isolado, símbolos ultrajados.
Estas ações são a atualização da invasão do Palais Royal, de Paris, mas enquanto no Ancien Régime a tomada da moradia do rei significava a tomada do Estado, a tomada do plenário da Câmara significou a privatização por uma classe do espaço da soberania popular. As imagens de violência que circularam na Internet mostram, na expressão do sociólogo francês Jean Baudrillard, que “transgredimos tudo, inclusive os limites da cena e da verdade”. A tentativa de invasão da TV Câmara por “suspeita” de servir de abrigo a jornalistas e a expulsão de jornalistas do prédio da Câmara ocorre nesse contexto de exercício e legitimação da violência e de controle da informação, intimidando funcionários e trabalhadores.
Redes Sociais
Nas redes sociais, o movimento partiu para a justificação de seus atos em nome da “causa”, criticando as “supostas” vítimas. Suspeito que a vinda de autores como o filósofo esloveno Slavoj Zizek a Porto Alegre tenha criado o fermento radical nas lideranças locais da extrema esquerda. Ao invés ouvirem o que sua crítica cultural ao capital tem de construtivo para a uma nova interpretação do mundo, preferiram as suas passagens que elogiam a violência. “O projeto comunista do século XX era utópico precisamente na medida em que não era suficientemente radical (grifo meu)”, diz Zizek. Pior, ele insiste que essa resistência deve incluir o uso do terror: “Lembrem-se da defesa exaltada do Terror na Revolução Francesa feita por Badiou , na qual ele cita a justificativa da guilhotina para Lavoisier: “A República não precisa de cientistas” diz Zizek. Não é o que vemos no interior dos movimentos de jovens quando é tolerada a sua violência no legislativo sob a alegação de que a do Estado é pior? Nenhuma violência pode ser tolerada de nenhum lado, essa é a questão. Por isso a retomada pelo Estado dos objetivos e fins da sua estrutura policial é um ponto da agenda política.
Projetos de direitos humanos no interior da corporação precisam ser efetuados, qualificação de seus membros naquilo que se convencionou chamar de bases da segurança pública coletiva precisa ser reforçada. Não se admite que a corporação permita que a mentalidade da “caçada” ressurja das cinzas no seu interior. Ela foi frequente no antigo regime, na repressão aos movimentos sociais e foi substituída pelas estratégias de controle a distância. Policial armado com balas de borracha que fere manifestante tem de ter punição exemplar porque a agressão desvirtua as finalidades do distanciamento que o controle das massas exige. Mas não é admissível ver policiais que socorrem vítimas serem agredidos, como um policial da capital no meio de manifestação.
IHU On-Line – Que alternativas são possíveis para alcançarmos o “reconhecimento mútuo” proposto por Richard Sennet ?
Jorge Barcellos – Este é um autor que tem muito a dizer sobre os movimentos. Lembro da pergunta de uma colega simpatizante do movimento: “De que lado você está?” O sociólogo americano Richard Sennet em Juntos: os rituais dos prazeres e a política da cooperação (Rio de Janeiro: Record, 2012) critica justamente isso, o autoritarismo presente na obrigatoriedade de se decidir por um lado sem avaliação, pois a partidarização da vida política é responsável pela mentalidade do “nós-contra-eles”, justamente o que ocorreu nas redes sociais em Porto Alegre. Como Zizek sugere em Bem vindo ao deserto do real (São Paulo: Boitempo, 2003), na opção entre a pílula azul e a vermelha tornada famosa na cena do filme Matrix, a obrigação de optar entre fantasia e realidade não é suficiente, por isso Zizek requer uma terceira pílula, que lhe permita ver “a realidade na ilusão em si mesma”. É o que todos temos de fazer, encontrar uma outra forma de reivindicar o que é certo sem ceder à violência. O movimento das ruas não vai parar. Ele é jovem, é autêntico, mas tem contradições. Há muitos grupos no seu interior disputando a hegemonia e se alimentando das mais diferentes ideias. Sua estratégia é clara: sair das ruas para as instituições. Os “erros” do movimento precisam se avaliados internamente pelos jovens e pela sociedade. Os jovens querem uma revolução sim, é seu direito, suas reivindicações são legítimas, mas a tomada do legislativo nada mais foi do que o “desvio do velho assalto social” (Virilio), uma tomada abrupta do espaço do poder, mas isso não significa a tomada do poder.
Reconhecimento público tem relação com isso, solidariedade e negociação, estabelecer relações com o diverso, fundamento da política negado pelo movimento anarquista. Não posso negar a existência do Estado simplesmente porque sei exatamente como funciona uma sociedade sem Estado: basta ver o que ocorre nas regiões mais pobres do centro africano ou do extremo oriente. Tenho reforçado a ideia de que os jovens devem ser os primeiros a se mobilizar para a construção de políticas sociais, de fortalecimento da função social do Estado, o que não é feito no contexto da violência. O notável ativismo político deve fundar as novas discussões via redes de Internet sobre problemas e suas soluções.
IHU On-Line – Que respostas o Estado deu desde as manifestações de junho? Na sua avaliação, por que alguns grupos mantêm ações sistemáticas?
Jorge Barcellos - Para mim, a luta política vai continuar. Os movimentos de jovens não vão parar. A parcela radical poderá ter momentos de recuo, mas retornará logo em seguida. É que a estratégia do movimento é a mesma dos revoltosos de 1789, a da ofensiva permanente. No que vai dar, eu não sei. Espero que o desejo democrático dos jovens seja vitorioso, mas temo que os jovens possam dar espaço para as características autoritárias que observo, seu “dark side”. Por isso a fala da deputada federal Manuela é exemplar: “Não vou me tornar igual àqueles que combato”. Engana-se quem pensa que a ocupação do legislativo foi um objetivo, não foi. Foi uma “experiência” que deu aos jovens o gosto do poder e por isso todo cuidado é pouco. Iniciou-se uma nova etapa no movimento das ruas. Os jovens estiveram diante de um passo perigoso em direção ao Estado de Emergência, mas souberam negociar e honrar o acordo com o Estado.
Os jovens precisam recusar a possibilidade de entrar em guerra contra o Estado. “Só a troca nos protege do destino”, diz Baudrillard. Mas o Estado precisa recusar criminalizar o movimento. Estamos no pior momento para fazer generalizações. Como diz Virilio, num mundo onde a velocidade dos fatos supera sua compreensão, a necessidade de parar toma sentido político. A repressão de Estado se faz mais por sua desestruturação interna do que por uma finalidade de governo. É preciso parar para refletir. As ações radicais dos jovens se mantêm por um misto de desesperança, raiva, vazio existencial e falta de projeto. Por isso a interpretação de Jean-Luc Nancy é atual: “a verdade da democracia é que não se trata de uma forma política entre outras, ela quis ser na era moderna a refundação integral da coisa política. É o nome de um regime de sentido cuja verdade não pode submeter-se a nenhuma instância ordenadora, nem religiosa, nem política, nem científica, nem estética, porque se compromete por inteiro com o “homem” enquanto risco e possibilidade de si mesmo. Ela deve ser o lugar dos meios de abrir e manter abertos os espaços de suas obras” diz o autor de La verdad de la democracia (Madrid: Amorruto Editores, 2009). Para mim, a juventude está protagonizando um dos maiores movimentos da década, mas tem os seus erros. O Estado tem diante de si a oportunidade única de “ouvir os anseios do povo”, mas precisa parar para ouvir.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Jorge Barcellos - Um ponto pouco explorado do lado agressivo das manifestações foi que sua violência não foi somente contra pessoas, mas contra símbolos. Na Câmara Municipal, mensagens foram afixadas na cruz existente no plenário e a galeria dos presidentes e a dos vereadores foram alvo de manifestações no caso do episódio do nu, um caso a parte. Claro, antes de criticar, precisamos entender por que os jovens se “pelaram” na câmara. Eles querem no fundo saber: o que pode o corpo? Como diz Henry Pierre Jeudy, em O corpo como objeto de arte (São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2002), a resposta é “ninguém tem condições de sabê-lo”, simplesmente porque não sabemos os limites de nossos afetos e ações. Quem fica nu acredita que o corpo afeta, que pode desestruturar o mundo.
Os pelados da câmara querem atualizar a ideologia da “liberação do corpo” dos anos 1960-1970, revolta contra a moralidade e autoridade. “Exibir-se torna-se o contrário de representar”, diz Jeudy, os jovens nus não toleram uma única representação do corpo belo, jovem, objeto do Capital ou do corpo político, poder legítimo, mas sempre às voltas com a corrupção. O corpo exibido sempre é um sintoma da raiva do espelho da representação, diz Jeudy. Sua experiência imediata do corpo nos quer dar uma interpretação da sua visão de política. Há quem diga “que mal tem o nu se a política é pornográfica?” Não, não é a mesma coisa. Ter raiva da representação do corpo perfeito do capital não é a mesma coisa que ter raiva da representação política simplesmente porque não se pode ter raiva de algo que se ajudou a construir.
A Câmara tem representantes dos jovens, vereadores de esquerda que acompanharam suas assembleias e ajudaram a legitimar o movimento. A participação do PT e do PSOL acabou produzindo uma divisão política no próprio legislativo, agora entre simpatizantes e opositores à invasão do plenário, e nas relações do legislativo com o governo estadual — solicitada por seu presidente, a Brigada Militar não compareceu. Para suas lideranças, o nu foi uma extravagância juvenil imposta no espaço público, mas para parte da sociedade e demais vereadores a cena significou violência à instituição. Se os jovens queriam fazer sua vingança pessoal à representação política, como apela o grupo Anonymous, o que conseguiram não foi vingança, foi sedução (Baudrillard), isto é, desviaram o olhar da sociedade dos verdadeiros objetivos do movimento.
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"A juventude está protagonizando um dos maiores movimentos da década, mas tem os seus erros". Entrevista especial com Jorge Barcellos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU