22 Mai 2013
O Projeto de Lei 626/2001 "poderá desencadear ou reforçar um mecanismo
semelhante ao do desmatamento ilegal realizado pela indústria madeireira,
que abre espaço para a criação de gado, que, por sua vez, dá lugar à soja e
esta à cana-de-açúcar”, diz o geógrafo.
Confira a entrevista.
Foto: www.cana.cnpm.embrapa.br |
A aprovação do Projeto de Lei 626/2001 pela Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor, Fiscalização e Controle do Senado, que revê o Zoneamento Agroecológico – ZAE da cana-de-açúcar e autoriza seu plantio em áreas alteradas e nos biomas Cerrado e Campos Gerais na Amazônia Legal, “é um fato lamentável, que demonstra o comprometimento com agentes econômicos, sustentado por um discurso totalmente equivocado”, diz João Humberto Camelini à IHU On-Line. Segundo ele, “é possível alcançar o desenvolvimento de uma região por meio de um planejamento integrado, que envolva, entre outros fatores, a instalação de usinas de açúcar e etanol, mas a ideia que se propaga erroneamente é que a mera presença de uma usina conduz ao desenvolvimento”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o geógrafo esclarece que as questões em discussão são muito mais “complexas do que sugere a abordagem apresentada no Projeto de Lei”. Ele explica: “Quando uma cultura regulamentada como a cana-de-açúcar recebe autorização formal e incentivos para ocupação, isto implica no uso exclusivo de grandes porções de terras no entorno das usinas, dentro de um raio aproximado de 40 a 50 quilômetros, o que leva à rápida e agressiva substituição das atividades existentes, deslocando-as para áreas inalteradas”.
O Projeto de Lei, acentua, tem como objetivo expandir a produção de etanol para suprir a demanda externa, “que atualmente é potencial, mas que pode tornar-se real se o etanol passar a se comportar formalmente como uma commodity. Na verdade é uma aposta, pois a atual relação custo/benefício para produção de açúcar é muito melhor que a do etanol, mas este pode dar acesso a um mercado promissor no futuro. Hoje sua função é atender o mercado interno e equilibrar o preço da gasolina. A impressão geral dos produtores é que ele foi colocado em segundo plano após a descoberta do Pré-sal”.
João Humberto Camelini é mestre em Geografia com dissertação intitulada Regiões competitivas do etanol e vulnerabilidade territorial no Brasil: o caso emblemático de Quirinópolis-GO, apresentada no Instituto de Geociências – IG, da Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é doutorando na mesma área de concentração, atua como Coordenador Técnico para Geotecnologias e Infraestruturas na Tecgraf Tecnologia em Computação Gráfica e como Professor Assistente na Faculdade Politécnica de Campinas e Faculdade de Jaguariúna.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor vê a aprovação do Projeto de Lei 626/2011 pela Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor, Fiscalização e Controle do Senado, que revê o Zoneamento Agroecológico – ZAE da cana-de-açúcar e autoriza seu plantio em áreas alteradas e nos biomas Cerrado e Campos Gerais na Amazônia Legal? O que esta expansão significa e demonstra sobre a agenda ambiental brasileira?
Foto:www.camelini.blogspot.com.br |
João Camelini – A meu ver, esta aprovação é um fato lamentável que demonstra o comprometimento com agentes econômicos, sustentado por um discurso totalmente equivocado. É possível alcançar o desenvolvimento de uma região por meio de um planejamento integrado que envolva, entre outros fatores, a instalação de usinas de açúcar e etanol. Porém, a ideia que se propaga erroneamente é que a mera presença de uma usina conduz ao desenvolvimento.
A questão é muito mais complexa do que sugere a abordagem apresentada neste Projeto de Lei. Não devemos apenas pensar na ocupação direta das áreas como a causa dos desmatamentos; este processo é muito mais sutil e gradual do que pode perceber o senso comum.
Quando uma cultura regulamentada como a cana-de-açúcar recebe autorização formal e incentivos para ocupação, isso implica o uso exclusivo de grandes porções de terras no entorno das usinas, dentro de um raio aproximado de 40 a 50 quilômetros, o que leva à rápida e agressiva substituição das atividades existentes, deslocando-as para áreas inalteradas. Isso gera grandes pressões por desmatamentos clandestinos e de difícil fiscalização.
É um mecanismo semelhante ao do desmatamento ilegal realizado pela indústria madeireira, que abre espaço para a criação de gado, que, por sua vez, dá lugar à soja e esta à cana-de-açúcar. O ciclo se repete com novos desmatamentos, mas a sua relação com as etapas finais é de difícil percepção.
IHU On-Line – A crítica à aprovação do Projeto de Lei refere-se especialmente à plantação de cana-de-açúcar na Amazônia Legal, porque o zoneamento ecológico da Embrapa não prevê o plantio de cana na região. Quais as implicações em expandir a produção de cana-de-açúcar para essa região? Como essa produção modifica a geografia da Amazônia?
João Camelini – No caso da ocupação da Amazônia, é necessário compreender que haverá grandes implicações associadas à logística, conceito que a geografia reinterpreta e utiliza para captar a essência de grande parte das movimentações políticas e corporativas. Por exemplo, será necessário estabelecer conexões entre a Amazônia e outras regiões para que a produção tenha fluidez e isso poderá conduzir ao surgimento de uma rede de transportes corporativa financiada com dinheiro público para servir a clusters de usinas. Muitos grupos usineiros têm participação de empresas multinacionais. Então, há o risco de este processo se destinar essencialmente à transferência de lucro para estes agentes.
A produção sucroenergética demanda especialização produtiva, ela promove o “alisamento” das áreas ocupadas, eliminando a diversidade das atividades. Nesse sentido, sua inserção na Amazônia pode ser algo extremamente perigoso, dando início a um processo de descaracterização da região. Além das questões ambientais e econômicas, há também os aspectos culturais, que não podem ser ignorados. O Projeto de Lei se refere à presença de mão de obra barata como um atributo de competitividade. Trata-se de um ensaio do discurso que prega o ingresso da região amazônica no leilão, que é a disputa por investimentos dos grupos usineiros. O próximo passo será conceder benefícios fiscais e reproduzir a ideia de que a usina é igual a desenvolvimento. Triste fim para uma região de potencial tão elevado.
IHU On-Line – Um dos argumentos utilizados para a aprovação do Projeto de Lei é o de que o plantio de cana-de-açúcar no Cerrado e na Amazônia Legal irá estimular a produção de biocombustíveis no país. Qual a atual situação da produção de biocombustível no país? Quais os objetivos de aumentá-la?
João Camelini – O principal objetivo de expandir a produção de etanol é suprir a demanda externa, que atualmente é potencial, mas que pode tornar-se real se o etanol passar a se comportar formalmente como uma commodity. Na verdade, isso é uma aposta, pois a atual relação custo/benefício para produção de açúcar é muito melhor que a do etanol, mas este pode dar acesso a um mercado promissor no futuro. Hoje sua função é atender o mercado interno e equilibrar o preço da gasolina. A impressão geral dos produtores é que ele foi colocado em segundo plano após a descoberta do pré-sal.
Eu não acredito que o plantio de cana-de-açúcar no Cerrado e na Amazônia seja necessário para estimular a produção de biocombustíveis, porque existem várias alternativas que podem ser exploradas antes de se iniciar (ou intensificar, no caso do Cerrado) a ocupação destas regiões. Com a crescente adoção da chamada agricultura de precisão, a produtividade das áreas atualmente ocupadas pode aumentar significativamente, bem como o raio de influência das usinas, que poderão buscar matéria-prima em locais mais distantes devido à diminuição do tempo e custos envolvidos no corte, carregamento e transporte da cana. O desenvolvimento de novas variedades, muito mais produtivas, associadas à diminuição do pisoteio pelo uso racional da irrigação em lugar da circulação de veículos para aplicar corretivos no solo, poderá resultar em talhões com ciclos de vida muito mais longos, reduzindo sensivelmente o investimento em reformas.
Além disso, é possível utilizar técnicas e equipamentos para recuperação de solos degradados e implementos de sulcação profunda, elementos estes que permitem melhor retenção da água e aproveitamento dos nutrientes, viabilizando a eliminação de terraços e novos traçados das linhas de cana, aumentando o rendimento por hectare plantado. Desse modo, áreas mal aproveitadas e próximas às existentes serão ativadas e o financiamento destinado à fluidez da produção poderá ser bem inferior, reduzindo a ociosidade das estruturas produtivas e de transporte.
IHU On-Line – Para quais regiões do país a cana-de-açúcar está sendo expandida nos últimos anos?
João Camelini – Com a saturação das terras no estado de São Paulo, o processo de desconcentração espacial direcionou a expansão da produção de cana-de-açúcar para o Centro-Oeste do país, especialmente para Goiás e Mato Grosso do Sul. Também há vetores de ocupação em direção ao Triângulo Mineiro e norte do Paraná. Isso se deve principalmente à proximidade com o grande mercado consumidor paulista, para o qual as bases de distribuição foram inicialmente posicionadas, mas também tem relação com o grande potencial de exportação do etanol. Esta expectativa pela consolidação de um mercado externo vem atraindo investimentos em infraestruturas para possibilitar a fluidez da produção até os portos.
IHU On-Line – Quais são as alternativas econômicas e produtivas mais adequadas e adaptadas à Amazônia e ao Cerrado?
João Camelini – Ao contrário do que se pode imaginar, estas regiões possuem enorme potencial econômico e podem ser aproveitadas de forma bastante lucrativa, beneficiando a sociedade sem que isso represente grandes impactos sobre o meio ambiente. O caminho para isso não tem necessariamente que passar pelo modelo agrícola uniforme adotado no restante do país. Isso porque é preciso respeitar as particularidades destas áreas preservadas. Acho que é fundamental a elaboração de políticas públicas que estimulem a pesquisa da biodiversidade, o que poderia resultar em muitas inovações de grande vulto. Para isso, é preciso que sejam oferecidas condições para assegurar e desburocratizar o direito à propriedade intelectual, privilegiando investidores brasileiros. Isso é fundamental porque nestas regiões há grandes oportunidades para a obtenção de produtos com alto valor agregado, como fármacos inovadores, cosméticos e outros itens diferenciados com selos de indicações geográficas. Estes poderiam ser exportados por via aérea e o investimento nesse modal resultaria em melhores condições para expandir e profissionalizar o turismo. Estas medidas poderiam trazer a sinergia necessária para inibir práticas ilegais, já que a fiscalização pública destas regiões é inviável devido às suas dimensões.
IHU On-Line – Como a produção de biocombustíveis a partir da produção de cana-de-açúcar é abordada no Plano Nacional de Energia – PNE para 2030?
João Camelini – Espera-se que a participação da cana-de-açúcar e derivados na matriz energética brasileira chegue a 19%, ficando somente atrás do petróleo. Fica evidente a intenção de dimensionar o potencial produtivo para alcançar excedentes destinados à exportação de etanol, que está qualificado como alternativa aos combustíveis fósseis, especialmente após o surgimento dos veículos flex fuel. Gostaria de salientar o aumento da importância da bioeletricidade como produto, que pode justificar a formação de clusters de usinas e viabilizar sua conexão com redes de distribuição. Também é importante ressaltar a preocupação do documento com as rotas de abastecimento, já que as condições logísticas são determinantes para a competitividade do etanol.
O PNE apresenta alguns benefícios estratégicos, sociais e ambientais do aumento da produção de etanol, mas é preciso lembrar que o modelo de ocupação com cana-de-açúcar pode expor os municípios, especialmente os pequenos, a condições de vulnerabilidade territorial. Por exemplo, recentemente os municípios de Santa Helena-GO e Espírito Santo do Turvo-SP passaram por grandes dificuldades quando suas respectivas usinas faliram. Não pretendo afirmar que a cana-de-açúcar é necessariamente um mal, pelo contrário, ela pode colaborar para o fortalecimento econômico regional, mas é preciso harmonizar a instalação de novas usinas a um planejamento mais amplo. É preciso ter um plano B.
Veja os vídeos relatando os problemas ocorridos nos municípios citados.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Plantação de cana-de-açúcar na Amazônia Legal: “O ciclo se repete com novos desmatamentos”. Entrevista especial com João Camelini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU