20 Outubro 2012
A tentativa de encontrar ordem no Universo é o que move a ciência. Contudo, não podemos usar a ciência para provar Deus, e confundir Física e Teologia demonstra uma ignorância profunda nos dois campos de conhecimento", afirma o astrônomo jesuíta.
“Não há qualquer percepção específica sobre a criação que essa descoberta possibilita que não se encontre em qualquer descoberta científica. Entretanto, uma bonita lição que se pode aprender da exploração dos extremos da natureza, como, por exemplo, os âmbitos muito pequenos e muito energéticos onde o Bóson de Higgs se encontra, é que ela nos lembra de que a realidade existe de formas estranhas e maravilhosas em níveis que nunca percebemos em nosso dia a dia, mas que são muito reais e constituem, com efeito, uma parte fundamental de como nosso Universo funciona”. A afirmação é do astrônomo Guy Consolmagno, irmão jesuíta, do Observatório Vaticano, em Castel Gandolfo, na Itália, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Ele mencionou que toda ciência é uma tentativa de encontrar ordem no Universo: “Aqueles e aquelas de nós que nos aproximamos desse estudo com a fé num Deus que criou esse Universo podem ver nas regularidades da natureza um reflexo da confiabilidade do Criador, que é o mesmo para sempre (como é dito nos Salmos). E na elegância dessas leis e regularidades nós encontramos um eco da beleza do Criador”.
Guy Consolmagno (foto) é formado em ciências planetárias pela Universidade Jesuíta de Detroit, mestre pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts – MIT e na Universidade do Arizona. Ingressou na Companhia de Jesus em 1989, e desde então atua como astrônomo no Observatório Vaticano. Também estudou Filosofia e Teologia. De suas obras, destacamos: The way to the dwelling of light (University of Notre Dame Press, 1998), Brother astronomer, adventures of a Vatican scientist (McGraw Hill, 2000) e Intelligent Life in the Universe? Catholic belief and the search for extraterrestrial intelligent life (Catholic Truth Society, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que aspectos o Bóson de Higgs pode ajudar os cientistas a descobrir como funciona a estrutura oculta de toda a matéria do Universo?
Guy Consolmagno – Não sou um especialista em física das partículas, de modo que só posso responder a essa pergunta em termos extremamente gerais, a partir do que aprendi de meus amigos que trabalham efetivamente nessa área. O que estamos tentando fazer é testar nosso Modelo Padrão básico de como funcionam as partículas subatômicas. Essa teoria previu a existência de uma partícula que não é muito diferente do que o CERN parece ter descoberto. Entretanto, vale a pena lembrar que aquilo que o CERN anunciou é um pouco diferente das previsões. Há muito mais a descobrir nessa área, para ver se esse resultado confirma nosso Modelo Padrão, ou se aponta para um novo desenvolvimento que talvez substitua o modelo antigo. Qualquer uma das duas coisas é possível.
Observe-se, em todo caso, que tudo o que estamos fazendo aqui é tentar descrever o que existe e como isso funciona. A física nada diz sobre a razão pela qual as coisas funcionam da maneira como funcionam; é suficiente propor uma boa descrição do que está acontecendo, sem realmente tentar entender por que funciona desse modo. Isso não é nada de novo; a descrição da gravidade feita por Isaac Newton era em grande parte a mesma coisa... Newton afirmou especificamente em sua obra que tudo que ele estava tentando fazer era descrever o que a gravidade fazia; quanto à questão maior a respeito de “por que” ela funcionava dessa forma, isso é algo acerca da qual ele disse: “Não invento hipóteses”.
IHU On-Line – Em que medida essa descoberta muda a concepção sobre o surgimento do Universo e a vida?
Guy Consolmagno – Na verdade, essa descoberta específica não aborda nenhuma dessas duas questões diretamente. Certamente o Modelo Padrão é uma das ferramentas que usamos para tentar descrever como o Universo se desenvolveu depois do Big Bang, mas não há uma razão particular para estar seguro de que ele seja, por si só, uma descrição adequada da física que operou nas primeiras instâncias ou estágios deste evento, onde as condições eram tão extremas que temos dificuldade de descrever quais são realmente as regras que deveríamos aplicar. Nossa compreensão da biologia, neste momento, ainda está, em sua maior parte, firmemente baseada na física clássica. Supõe-se que todos os detalhes estranhos ou indefinidos da física moderna operem em uma escala muito menor da que podemos ver na biologia.
IHU On-Line – O que o Bóson de Higgs revela sobre a criação?
Guy Consolmagno – Não há qualquer percepção específica sobre a criação que essa descoberta possibilita que não se encontre em qualquer descoberta científica. Entretanto, uma bonita lição que se pode aprender da exploração dos extremos da natureza, como, por exemplo, os âmbitos muito pequenos e muito energéticos onde o Bóson de Higgs se encontra, é que ela nos lembra de que a realidade existe de formas estranhas e maravilhosas em níveis que nunca percebemos em nosso dia a dia, mas que são muito reais e constituem, com efeito, uma parte fundamental de como nosso Universo funciona.
IHU On-Line – Como a Igreja se posicionou em relação a essa descoberta?
Guy Consolmagno – A igreja não “se posiciona” em relação a nenhuma descoberta científica específica. Afinal, certamente aprendemos alguma coisa do caso Galileu!
IHU On-Line – O que a descoberta da ordem que rege o Universo representa para a humanidade em termos científicos e existenciais?
Guy Consolmagno – Toda a ciência é uma tentativa de encontrar ordem no Universo. Aqueles e aquelas de nós que nos aproximamos desse estudo com a fé num Deus que criou esse Universo podem ver nas regularidades da natureza um reflexo da confiabilidade do Criador, que é o mesmo para sempre (como é dito nos Salmos). E na elegância dessas leis e regularidades nós encontramos um eco da beleza do Criador.
Temos de nos lembrar de que havia muitas outras formas pelas quais as pessoas na Antiguidade concebiam o Universo... muitas vezes elas pensavam que o Universo fosse um erro, o produto acidental das atividades de seus deuses pagãos. Ou pensavam que o Universo fosse aleatório e caótico, sem pé nem cabeça. Ou pensavam que tudo era controlado pelo capricho arbitrário daqueles deuses, do deus do raio ou do deus da colheita, ou outro qualquer.
Nossa compreensão científica do Universo contraria frontalmente tais teologias pagãs. Ao insistir que Deus está fora do Universo, presente no início, rejeitamos a ideia de algum deus pagão vinculado a acontecimentos físicos dentro do Universo. Ao insistir que Deus fez o Universo de maneira intencional, deliberada, assentamos os fundamentos para a crença de que o Universo tem efetivamente leis a serem descobertas. E ao insistir que Deus olhou para sua criação e viu que era boa, estamos dizendo que o estudo desse Universo apenas por sua própria causa – ninguém vai enriquecer com o Bóson de Higgs! – é uma atividade que vale a pena. Em outras palavras, certamente não podemos usar a ciência para provar Deus; isso seria tolo, tornaria a ciência mais poderosa do que Deus. Mas podemos trabalhar na direção contrária: podemos usar nossa fé no Deus de Gênesis como base para nossa confiança de que fazer ciência é possível e vale a pena.
IHU On-Line – Em que sentido as conjeturas sobre o “Deus das lacunas” são más razões para acreditar em Deus e, além disso, são “má ciência”?
Guy Consolmagno – Há muitos problemas em relação ao “Deus das Lacunas” – a ideia de que podemos invocar Deus para explicar as coisas na natureza que a ciência não consegue explicar. Em primeiro lugar, trata-se de uma forma preguiçosa de fazer ciência – em vez de atacar os problemas difíceis, apenas encolhe os ombros e desiste. Em segundo lugar, pode levar a pessoa ao ateísmo; se você acha que Deus é “aquela entidade responsável pelas coisas que não consigo entender”, então, quando essas lacunas são preenchidas, você não tem qualquer razão para crer em Deus – ou, ao menos, nessa espécie de deus.
Associada aos aspectos anteriores está a percepção de que o Deus das Lacunas é muito diferente do Deus da Escritura, do Deus pessoal que falou a Abraão e Moisés, que fala a nós na oração, que amou o Universo a ponto de enviar seu Filho unigênito. Não causa surpresa que os teólogos do século XVIII que tentaram usar as lacunas da ciência para “provar” a presença de Deus fossem, em sua maior parte, deístas, e não realmente cristãos. Mas no sentido mais profundo e fundamental, adotar esse tipo de crença é acreditar em uma mentira. Em decorrência disso, enquanto essa crença preencher sua compreensão da natureza e de Deus, você nunca ficará livre para perceber a verdade seja da ciência, seja de Deus.
IHU On-Line – O ateísmo não é prerrogativa para a ciência. Tomando isso em consideração, por que há tanta insistência em contrapor fé e ciência? Qual é a legitimidade dessa discussão e qual é o contexto de seu surgimento?
Guy Consolmagno – Certamente a ideia de que a fé e a ciência se opõem é ridícula do ponto de vista histórico. A ciência começou justamente nas universidades fundadas pela igreja, e não há escassez de pessoas profundamente religiosas que também são cientistas. A ideia desse mito parece datar do final do século XIX e está arraigada na política daquela época... entre autores nos Estados Unidos que tinham medo de imigrantes provenientes da Europa católica (como da Itália e Polônia, e mais tarde da América Latina) e queriam uma “razão” para discriminá-los. Ao mesmo tempo, havia muitos políticos na Europa que tinham ciúme do que viam como o poder da igreja e estavam em busca de alguma forma de desacreditá-la.
Por que isso aconteceu justamente naquela época? Os anos 1800 foram a época da primeira ascensão dramática do tipo de tecnologia, como a estrada de ferro e a eletricidade, que as pessoas comuns viam que estava mudando sua vida. Naquela época, parecia que a tecnologia seria a solução de todos os problemas humanos... se lhe fosse dado tempo suficiente. E, segundo a compreensão comum, essa tecnologia estava vinculada com a ciência na qual se baseava. Naquela época, as pessoas achavam que podiam depositar sua confiança em sua própria inteligência. É claro que, nos anos que se seguiram, percebemos que, apesar de todas as coisas boas que a tecnologia nos deu, ela também tem seu lado obscuro... a poluição, a alienação e o poder destrutivo que se vê nas guerras.
Mesmo assim, há pessoas que ainda se apegam a essa concepção romântica de ciência e tecnologia do século XIX como se elas fossem a única esperança para a humanidade. Parece-me que elas são tão ingênuas quanto aquelas que querem culpar a tecnologia por todos os nossos males. Havia santos e pecadores muito antes de haver motores a vapor e eletricidade! Mas ambas as crenças – a ciência como deus, ou a ciência como diabo – são consoladoras simplificações excessivas que podemos adotar quando temos medo de encarar a luz e as trevas que há em nossa própria alma.
IHU On-Line – A física tem sido tomada como uma espécie de “nova teologia”, encarregada de explicar tudo, inclusive a origem do cosmos?
Guy Consolmagno – A maior parte dos próprios físicos reluta em estabelecer tal ligação entre a física que produzem e as questões mais amplas colocadas pela teologia. Mas uma série de jornalistas e popularizadores da ciência deram o salto para estabelecer essa ligação. Isso representa uma forma eficaz de despertar o interesse dos leitores em geral e de talvez motivá-los a querer compreender a física moderna. Todavia, penso que, no longo prazo, a tentativa de estabelecer tal ligação é contraproducente porque, em última análise, uma equivalência simplista dessas é falsa. Pior ainda, confundir a física e a teologia revela uma ignorância profunda tanto da física como da teologia.
IHU On-Line – Quais são os principais avanços para a fé e para a ciência a partir do diálogo entre elas?
Guy Consolmagno – Para qualquer pessoa interessada em teologia, o grande benefício de estudar a física moderna não é que a física de algum modo dê respostas aos problemas antiquíssimos da teologia. Isso não acontecerá; a física não tem o poder de dar essas respostas. Mas o que a física moderna faz muito bem é provocar novas perguntas... ou talvez, de maneira mais exata, o que ela faz muito bem é proporcionar uma nova linguagem, de modo que se possam fazer essas perguntas atemporais de uma forma nova e interessante.
Há dois tipos de perguntas que poderíamos fazer a respeito do Universo. Um conjunto de perguntas diz respeito a coisas que podemos medir e descrever: qual é o tamanho, há quanto tempo, o que aconteceu primeiro, o que aconteceu em seguida? Esse é o tipo de perguntas que a ciência é muito boa em responder. Mas, quando temos respostas para elas, podemos colocá-las de lado para fazer novas perguntas.
Mas também há perguntas acerca do sentido, da beleza e do amor. Por que somos curiosos em relação ao Universo e o que se encontra atrás dessa curiosidade? Que descrição de como o Universo funciona é mais bela ou elegante? Por que o Universo segue leis científicas? Esse tipo de perguntas constitui um magnífico assunto para reflexão, e, mesmo ao propormos respostas, sempre sabemos que há mais formas de pensar sobre elas, de modo que elas nunca desaparecem. Abordar essas perguntas é a tarefa da teologia e da filosofia, mas também o papel da arte, da música e da literatura. Assim, o retrato do Universo que nos é revelado pela ciência dá ao artista e ao filósofo algo novo sobre o qual podem meditar.
IHU On-Line – Nesse contexto, como analisa a importância do trabalho científico e de evangelização de Matteo Ricci na China, no século XVI? Como esse jesuíta conseguiu conjugar o binômio fé/ciência no Império do Meio?
Guy Consolmagno – É interessante mencionar Ricci porque é claro que ele teve permissão de entrar na China justamente por causa de suas capacidades científicas, que impressionaram os chineses. Entretanto, mais do que simplesmente obter uma base de operações na China, isso revela um fato mais profundo referente à ciência em geral e à astronomia em particular: trata-se de um tema que é fascinante para todas as pessoas e, assim, um lugar onde todas as culturas podem se encontrar num terreno comum, com um interesse comum que vai além de nossas diferenças culturais, religiosas ou políticas. Todos nós vivemos sob o mesmo firmamento, e todos gostamos de aprender uns dos outros a respeito do que há para ver nesse firmamento. A União Astronômica Internacional, o grupo que serve de guarda-chuva dos astrônomos de todo o mundo, celebrou o Ano Internacional da Astronomia em 2009 (era o aniversário do telescópio de Galileu), que demonstrou esse maravilhoso apelo comum da astronomia para todas as pessoas. A Assembleia Geral da União daquele ano foi, com efeito, realizada no Rio de Janeiro.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Guy Consolmagno – Eu faria um comentário final. Muita gente confunde a ciência com a tecnologia. A ciência é o conhecimento de como o Universo funciona; a tecnologia usa esse conhecimento para fazer coisas. O conhecimento em si não é bom nem mau, mas os usos que se pode fazer desse conhecimento podem ser bons ou maus (fazer remédios ou venenos, por exemplo). O fato é que todas as tecnologias têm um custo. A questão com a qual sempre temos de nos defrontar é se o resultado vale a pena em relação ao custo. É legítimo que a religião e a filosofia levantem essas questões de valor e custo. Mas isso é diferente de questionar a própria ciência.
Além disso, as formas pelas quais obtemos nosso conhecimento científico – a tecnologia que empregamos ao fazer nossa ciência – também podem ser boas ou más. Alguns experimentos são claramente não éticos, e a ideia de que podemos aprender coisas maravilhosas deles não justifica essa espécie de experimento. Mais uma vez, porém, há uma diferença entre o conhecimento em si, que é neutro, e os meios que usamos para obter o conhecimento.
Em tais discussões éticas, nunca se trata de uma questão de preto e branco. Por exemplo, gastar todos os recursos de uma sociedade em astronomia em vez de assistir as pessoas pobres e doentes seria errado. Mas negar a uma sociedade, incluindo seus pobres e doentes, a chance de se perguntar sobre o Universo e explorá-lo implicaria que essas pessoas não são humanas também, e que elas também não têm desejos legítimos para cultivar e satisfazer sua curiosidade... que é, afinal de contas, um dos aspectos da alma que define o que significa ser humano.
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O Bóson de Higgs e as realidades estranhas e maravilhosas do universo. Entrevista especial com Guy Consolmagno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU