04 Mai 2011
"O Vale dos Sinos fez uma opção consistente de especialização produtiva ao longo dos anos 1960 e 1970, e consolidou um dos mais sofisticados e competitivos arranjos produtivos locais de calçados". A constatação é do economista Carlos Paiva. Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, ele analisa o contexto econômico do Vale do Sinos e vislumbra alternativas para a região. Segundo disse, "o Vale possui vantagens locacionais superiores às da Serra. Mas não consegue explorá-las". Ao comparar o mercado do Vale com a China, Paiva é enfático: "O Vale do Sinos só não é um cluster sofisticado porque se subestima". Neste quinta-feira, dia 5-05-2011, o professor participará do Seminário Realidade e Desafios Socioeconômicos da Região do Vale do Rio dos Sinos, que aconteceu no IHU.
Carlos Paiva é graduado em Economia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mmestre e doutor em Ciência Econômica, pela Universidade Estadual de Campinas-SP. É professor da Fundação de Economia e Estatística e professor da Universidade de Santa Cruz do Sul. É autor de Como identificar e mobilizar o potencial de desenvolvimento endógeno de uma região? (Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística, 2004) e RS em mapas e dados: bases georreferenciadas para comparação do desempenho socioeconômico dos municípios gaúchos entre 1966 e 2006 (Porto Alegre: FEE/Unisc, 2007), entre outros livros.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os maiores desafios socioeconômicos da região do Vale do Rio dos Sinos?
Carlos Paiva – O Vale dos Sinos fez uma opção consistente de especialização produtiva ao longo dos anos 1960 e 1970, e consolidou um dos mais sofisticados e competitivos arranjos produtivos locais de calçados. Infelizmente, a partir do Plano Real o Brasil adotou um sistema de controle inflacionário assentado na ancoragem cambial. Cada vez que os preços se elevam internamente, o Banco Central eleva os juros, atraindo divisas e valorizando o real. Um tal sistema de controle da inflação beneficia a especulação financeira, a produção de insumos e bens intermediários intensivos em capital fixo, e se mostra neutro sobre os serviços. Mas a indústria manufatureira – especialmente os setores intensivos em mão de obra – são submetidos à concorrência dos países que prescindem do câmbio para controlar a inflação. Na medida em que a política monetária e cambial de Fernando Henrique foi mantida intacta pelos governos Lula e (até agora) Dilma, a perda de competitividade do setor calçadista se estruturalizou. O Vale dos Sinos precisa explorar alternativas de base exportadora. Elas existem. O Arranjo Produtivo Local – APL calçadista é muito rico e tem condições de se desdobrar em novos sistemas produtivos.
IHU On-Line – O que mais lhe chamou a atenção a partir do trabalho que fez sobre a realidade do Vale dos Sinos, no contexto do Rio Grande do Sul?
Carlos Paiva – A virtual ausência de uma produção agropecuária na região. Este resultado também parece estar associado ao enorme dinamismo da indústria calçadista nos anos 1970 e 1980, que terceirizava algumas das atividades mais exigentes em mão de obra para as estruturas produtivas familiares rurais (camponesas), driblando o pagamento de obrigações trabalhistas e deprimindo os custos com capital fixo. Como a renda monetária do trabalho terceirizado era maior do que a renda gerada na produção agropecuária, esta última foi sendo gradativamente abandonada.
Esta é a grande diferença entre os dois principais polos industriais gaúchos: o Vale dos Sinos e a Serra. A indústria da Serra nasce irmanada ao rural, seja via vitivinicultura, seja via madeira-mobiliário (desmatamento, construção, pipas e tonéis, etc.). Hoje, a agricultura da Serra é a mais dinâmica e a mais diversificada do estado do Rio Grande do Sul. Ela se aproveita da proximidade com os maiores centros consumidores do Estado para oferecer produtos de maior valor agregado por área. E ainda desvaloriza a função dos intermediários (transporte, atacado, varejo), o que lhe possibilita maior diversificação aquanto à apropriação de um valor relativamente menor. O Vale possui vantagens locacionais superiores às da Serra. Mas não consegue explorá-las.
IHU On-Line – Quais são as políticas públicas desenvolvidas na região do Vale do Rio dos Sinos? Elas têm sido efetivas?
Carlos Paiva – Tanto o governo federal quanto o governo estadual adotaram distintas políticas de apoio ao setor coureiro-calçadista, desde meados dos anos 1990. O BNDES abriu linhas especiais de financiamento para modernização do setor. E distintos governos estaduais tentaram apoiar o setor através do apoio à participação em feiras nacionais e internacionais, vantagens fiscais e apoio ao desenvolvimento de design e tecnologias próprias (produzidas e apropriadas localmente). Infelizmente, porém, estas políticas são insuficientes para compensar a violenta deterioração da competitividade imposta pelo câmbio.
IHU On-Line – Como essas políticas públicas estão sendo desenvolvidas pelos diferentes agentes governamentais, empresariais e da sociedade civil na região do Vale do Rio dos Sinos?
Carlos Paiva – Para além da literatura consagrada sobre a crise e as políticas públicas gerais de apoio ao setor calçadista, só tive contato "empírico" com o Vale durante o governo Olívio. Na oportunidade, buscávamos discutir com as lideranças dos setores coureiro-calçadista e universitário estratégias de enfrentamento da crise a partir do desenvolvimento do design e da mecânica para enfrentar gargalos e explorar potencialidades. E o que me surpreendeu, à época, foi a dificuldade de diálogo e acordo entre os distintos elos da cadeia calçadista.
A mim parece claro que, se perdemos competitividade na produção de sapatos – em especial de sapatos "populares", que só podem ser vendidos a baixo preço –, deveríamos buscar alternativas dentre os demais produtos que o APL domina. Do meu ponto de vista, o setor de máquinas tinha um potencial muito grande. E não sei como ele está sendo aproveitado hoje em dia; como está sendo a incorporação de progresso técnico no setor. Qual sua sinergia com a mecânica da Serra? Qual o grau de programação e automação de nossas máquinas? O desenvolvimento deste setor está sendo acompanhado e alavancado pelas universidades e centros de pesquisa locais?
IHU On-Line – Os polos tecnológicos instalados na região têm influenciado na realidade social e econômica da população? Eles representam, de fato, perspectivas melhores para a comunidade em termos gerais?
Carlos Paiva – Depende. Eu não acredito muito em polos que se querem genericamente "tecnológicos". Nem sempre a inovação é tecnológica. E nem sempre a tecnologia desenvolvida dialoga com as carências objetivas dos segmentos produtivos na região. No caso da indústria calçadista, por exemplo. Não há "desenvolvimento" sem design. Todos falam em qualidade. Qualidade é bom gosto. Um sapato popular está para um sapato elegante como o "Prato Feito" de um boteco de periferia para a especialidade de um restaurante de uma culinária específica. A questão fundamental não é de "tecnologia", no sentido mais científico-acadêmico do termo. A questão fundamental é de mercado. Para quem eu vendo? O que eu vendo?
Se vendo calçados com estilo, eu vendo por um preço. Se vendo para a WalMart, a China preenche tudo. E há um amplo conjunto de componentes (inclusive, mas não exclusivamente, máquinas) cuja produção e exportação deveria ser mais estimulada. Um cluster sofisticado exporta "inovação" mais do que "bens". O Vale do Sinos só não é um cluster sofisticado porque se subestima.
IHU On-Line – Em que medida a indústria calçadista ainda é expressiva dentro da economia desta região?
Carlos Paiva – Ela é muito expressiva. Mas o que se precisa entender é que a indústria calçadista não é só calçados. Ela é química (cola), ela é borracha (solado), ela é madeira (idem), ela é metalurgia ("alma" do calçado feminino), ela é plástico (presente em tantos modelos), ela é mecânica (as máquinas), ela é tipografia (propaganda, sacolas), ela é papel e papelão (caixas). Ela é até couro. O que implica ser "gado" e, por extensão, metade Sul.
IHU On-Line – O desenvolvimento regional do Vale do Rio dos Sinos é includente e sustentável? Por quê?
Carlos Paiva – Ele foi. Ele tem uma origem includente, pois se estruturou a partir da primeira colonização alemã. Em seus primórdios, a colonização estava baseada em doações de terras. Posteriormente, as terras passaram a ser vendidas. Mas o desenvolvimento da ordem capitalista necessariamente alterou este quadro de "includência". Hoje, há grupos empresariais que deslocam o seu capital para regiões em que a mão de obra é mais barata, os incentivos fiscais são maiores. As maiores empresas se deslocam até para países onde o câmbio não é "anti-industrialista"; como no Brasil. Isto não é um "desvio de conduta" das empresas. É, antes de tudo, um "desvio de conduta" da política monetário-cambial do país. E, em segundo lugar, das políticas fiscais dos distintos governos.
IHU On-Line – Que avaliação faz sobre as políticas públicas nos municípios da região? Quais municípios têm políticas públicas mais eficazes?
Carlos Paiva – Quais são os "municípios da região"? O que vocês consideram o "Vale dos Sinos". É uma comunidade cultural? Uma comunidade de interesses? Qual a relação desta comunidade com os dois grandes produtos do Vale: calçados e educação? Canoas é "Vale dos Sinos"? E Parobé? E Taquara? Eu tenho uma certa "impressão" do que seja o Vale dos Sinos.
E vou apresentar para vocês. Mas "vamos combinar" que a própria categoria – O Vale – é fugidia. O que se dirá dos municípios que compõem este "todo". Mas uma coisa eu posso dizer: recuperar o rio é fundamental. Os municípios que estiverem contribuindo realmente com este objetivo, muito provavelmente estarão adotando políticas mais eficazes. O meio ambiente não é tudo. Mas tem você no "meio". Quem se preocupa com o meio ambiente, se preocupa com a qualidade de vida dos moradores. Isto não é uma medida absoluta. Mas é um bom indicador.
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˜O Vale do Sinos só não é um cluster sofisticado porque se subestima". Entrevista especial com Carlos Paiva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU