22 Agosto 2010
“Parodiando Sartre, segundo o qual o homem estava condenado a ser livre, este cenário parece indicar que o Universo estava condenado a existir. Isto é, é impossível não existir alguma coisa”. Essa afirmação poderia levar a uma “longa conversa” entre os saberes. A reflexão é do físico brasileiro Mario Novello, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Em seu ponto de vista, compartimentar os saberes se configura numa “prática de dominação política”. E continua: “Em verdade, retalhar o mundo, especializar saberes, pode ser uma boa atitude para a técnica, mas não para o saber”.
Ainda sobre as origens do Universo, Novello acentua que, enquanto no primeiro modelo do Big Bang “a origem se cerca de um mistério insondável, o modelo de universo eterno dinâmico faz avançar a ciência em sua continua e incessante formação de novas indagações sobre o universo. Não é isso que devemos entender como a verdadeira prática cientifica?” Segundo Novello, a principal função da ciência é oferecer explicações racionais para todos os processos da natureza, algo como um “caminhar para sempre”. Mas adverte: “Imaginar que o conhecimento científico vai ser completamente realizado e que esta estrada tem um fim, nada mais é do que a esperança de abarcar o absoluto, um desejo típico dos momentos mágicos, irracionais, da espécie humana”.
Novello é professor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, onde é coordenador do Laboratório de Cosmologia e Física Experimental de Altas Energias. É graduado em Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Física pelo CBPF e doutor na mesma área pela Université de Genève (Suíça), com a tese Algebre de l`espace-temps, pós-doutor pela University of Oxford (Inglaterra) e doutor honoris causa pela Universidade de Lyon (França). Conquistou prêmios internacionais, destacando-se a Menção Honrosa por Teses em Cosmologia e Teoria da Gravitação, concedida pela Gravity Research Foundation (USA).
É autor de mais de 150 artigos e de inúmeros livros, dos quais destacamos: Cosmos e Contexto (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989), O Círculo do Tempo: Um olhar científico sobre viagens não-convencionais no tempo (Rio de Janeiro: Campus, 1997), Os jogos da natureza (Rio de Janeiro: Campus, 2004), Máquina do tempo – Um Olhar Científico (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005) e Do Big Bang ao universo eterno (Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2010).
Foi o responsável pela condução da oficina A relatividade, a física das partículas e as origens do Universo, ministrada em 17-05-2006 no Simpósio Internacional Terra Habitável: um desafio para a humanidade.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Por que o senhor afirma que o Big Bang não foi o começo de tudo?
Mario Novello - Para responder a essa questão precisamos antes especificar melhor a pergunta, ou seja, o que entendemos pelo termo Big Bang. Há pelo menos duas formas distintas mas complementares, a saber:
1) Big Bang é o termo genérico de um cenário do universo que os cosmólogos criaram e que identifica uma estrutura dinâmica, associada à observação de que o volume total do espaço tri-dimensional varia com o tempo. Este termo se refereria, em particular, à existência de uma fase extremamente condensada (e quente) que ocorreu no nosso passado;
2) Big Bang é o termo onomatopaico associado a uma explosão que teria dado origem ao nosso universo há alguns poucos bilhões de anos.
Enquanto o primeiro significado é correto, isto é, a quase totalidade dos cosmólogos acredita nesse cenário, a segunda interpretação nada mais é do que uma extrapolação indevida, sem apoio observacional, e que restringe a função do cosmólogo, proibindo-o formalmente de procurar uma explicação racional para aquele “começo explosivo”. Ademais, como a tradição da física nos ensina, não faz parte da compreensão da ciência a associação de valor infinito (consequentemente, impossível de ser o resultado de uma experiência real) a quantidades físicas que poderiam em princípio serem observáveis.
O valor infinito, quando ele aparece como resultado formal de uma equação em uma circunstância idealizada, traduz uma impossibilidade que está associada a uma extrapolação indevida. O valor infinito está dizendo que a teoria que produz este valor não pode ser mais aplicável naquela particular situação. A descrição do fenômeno em questão deveria ser modificada. No caso da teoria da gravitação, que está na base do cenário Big Bang, a própria equação da relatividade geral deveria ser alterada. O autor desta teoria, o físico alemão Albert Einstein, é do mesmo parecer, pois segundo suas próprias palavras, citado em meu livro Do Big Bang ao universo eterno (Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2010), diz em seu livro de 1948 intitulado The meaning of relativity: “Em relação à questão da singularidade inicial dos modelos cosmológicos eu gostaria de dizer o seguinte: a teoria atual da relatividade se baseia em uma divisão da realidade física em um campo métrico (a gravitação) por um lado, e o campo eletromagnético e a matéria, por outro. Em realidade, o espaço será provavelmente de um caráter uniforme e a teoria atual somente será válida como um caso limite. Para grandes valores do campo e da densidade de matéria, as equações do campo e até mesmo as próprias variáveis que intervêm nestas equações não possuem significado real. Não é possível, assim, admitir a validade destas equações para densidades de campo e de matéria muito elevados. Consequentemente, não é possível concluir destas equações (da relatividade geral) ao serem aplicadas ao universo que o início da expansão do universo seja identificado com uma singularidade no sentido matemático. Tudo que devemos reconhecer é que as equações (da teoria citada) não são aplicáveis nestas regiões”.
IHU On-Line - Se o Big Bang não foi o marco zero para o início do universo, é possível concluir que este é eterno? Por quê?
Mario Novello - Em principio, há duas possibilidades para o passado do Universo: ou ele começou em uma singularidade (como o Big Bang citado na questão anterior) ou ele não possui um começo a um tempo finito em nosso passado. Estas são as duas opções que a Cosmologia produziu.
IHU On-Line - Considerando essa hipótese do universo como causa incausada, qual é a importância da transdisciplinaridade, como o diálogo da filosofia e da física, por exemplo?
Mario Novello - Não creio que eu concorde com este modo de colocar essa questão. A relação entre a Cosmologia e a Filosofia ou entre outros saberes faz parte de nossa riqueza cultural. Compartimentar saberes diferentes, impedindo a ação de um sobre o outro equivale a uma prática de dominação política (de um saber sobre o outro) que não produziu na história resultados que nos orgulham. Em verdade, retalhar o mundo, especializar saberes, pode ser uma boa atitude para a técnica, mas não para o saber. No dizer de Ortega y Gasset, lá pelos anos 1930, a redução do saber científico a um conhecimento especializado, técnico, reducionista, não integrado, produziu o afastamento cada vez maior do diálogo com a natureza levando, por exemplo, ao desequilíbrio ecológico e produzindo consequências nefastas para a sociedade.
IHU On-Line - Qual é o impacto dessa nova compreensão do início do Universo em termos existenciais?
Mario Novello - Deixe-me dar um exemplo envolvendo um modelo de universo eterno e você mesmo poderá responder a essa questão. No caso do universo eterno dinâmico existe uma fase anterior à atual fase de expansão que descreve o comportamento global do universo na qual o volume total do espaço diminui com o passar dos tempos. Seu volume atingiu um valor mínimo e passou à fase atual na qual seu volume aumenta com o tempo cósmico. Aparecem então duas novas questões neste cenário que não existem no modelo Big Bang. Como o cientista não pode ter acesso à origem singular, no modelo Big Bang, o comportamento do universo é pensado como se iniciasse sua existência neste ponto único. Não existe nenhuma questão adicional que os cientistas poderiam fazer associada a este momento único de criação.
Já no caso do modelo de universo eterno, duas questões aparecem de imediato: o que colapsou e por que parou de colapsar, invertendo seu processo dinâmico passando de um colapso a uma expansão. Veja que, enquanto naquele primeiro modelo (Big Bang) a origem se cerca de um mistério insondável, o modelo de universo eterno dinâmico faz avançar a ciência em sua continua e incessante formação de novas indagações sobre o universo. Não é isso que devemos entender como a verdadeira prática científica?
Vazio quântico
Bem, voltando à sua pergunta. Os cientistas geraram assim, vários modelos para entender como se deveria responder àquelas duas novas questões que o cenário do universo eterno provocou. Dentre estas, uma em particular nos interessa aqui. Trata-se da origem do Universo a partir daquilo que os físicos chamam de vazio quântico. Esse vazio não se identifica com a noção convencional, clássica, de ausência total, absoluta de matéria sob qualquer forma. Este vazio tem propriedades e mais importante para nossa conversa aqui: este vazio (em certas circunstâncias) é instável. Isso significa que este vazio não pode durar. Ele não se mantém como tal para sempre.
Parodiando Sartre, segundo o qual o homem estava condenado a ser livre, este cenário parece indicar que o Universo estava condenado a existir. Isto é, é impossível não existir alguma coisa. Você não acha que esta afirmação levaria a uma longa conversa entre diferentes saberes?
IHU On-Line - Por que razões o senhor afirma que a ciência não pode ter a pretensão de explicar tudo?
Mario Novello - Minha frase foi outra. Disse que a ciência não irá nunca explicar tudo que existe. No entanto a atividade científica deve ter sempre a pretensão de explicar tudo que existe e, como comentei há pouco, minha maior crítica ao modelo Big Bang se deve precisamente à sua desistência em continuar procurar a razão daquela singularidade inicial que ele admite. A ciência tem como principal função produzir uma explicação racional para todos os processos observados na natureza. Essa é a função, o objetivo maior do cientista. Mas esse projeto é um caminhar para sempre. Imaginar que o conhecimento científico vai ser completamente realizado e que esta estrada tem um fim, nada mais é do que a esperança de abarcar o absoluto, um desejo típico dos momentos mágicos, irracionais, da espécie humana.
IHU On-Line - Qual é a reação dos outros físicos brasileiros e internacionais à sua hipótese publicada em Do Big Bang ao Universo Eterno?
Mario Novello - Não se trata de uma hipótese, nem é nova. Quando a Cosmologia se constituiu como ciência ao longo do século XX, produziu-se um cenário geométrico para interpretar os dados observacionais que os astrônomos obtiveram. Este cenário possuía algumas hipóteses simplificadoras. Isso é natural, pois é assim que se realiza na prática o método científico. A estrutura geométrica do universo foi aceita como associada a uma geometria na qual um tempo cósmico global poderia ser definido, bem ao antigo estilo newtoniano de separar tempo e espaço. No entanto, contrariamente ao modo newtoniano, essa estrutura não era um dado absoluto no mundo, mas somente uma escolha conveniente de representação dos eventos, um modo de associar números a acontecimentos. Esse procedimento é legítimo, mas possui simplificações que os cientistas devem reexaminar ulteriormente.
Pois bem, neste cenário simplificado, aceitando-se uma certa forma de representar a totalidade de matéria e energia existentes, o cientista russo Friedmann descobriu, em 1919, uma solução das equações da relatividade geral representando um universo com uma dinâmica associada à dependência do volume total do espaço com aquele tempo cósmico global. Esta solução, como ocorre em várias outras situações da Física, possui uma singularidade, isto é, um momento no tempo em que este volume assume o valor zero. Consequentemente, todas as quantidades físicas associadas (como a densidade de energia, a temperatura) divergem, isto é, assumem (naquele ponto) o valor infinito. Quando tal situação ocorre na ciência, várias propostas para contornar esta dificuldade aparecem. Por exemplo, no começo do século XX uma questão semelhante aconteceu na teoria de Maxwell a respeito do eletromagnetismo. Ao aceitar que a partícula chamada elétron deveria ser um “ponto geométrico, sem dimensão” criou-se de imediato uma dificuldade de natureza semelhante à da singularidade que falei há pouco, pois ao longo da trajetória do elétron, o campo eletromagnético assume o valor infinito. Várias propostas para contornar a dificuldade do surgimento teórico do infinito foram sugeridas. Entre estas, uma se destacou, argumentando que a dificuldade estaria em se isolar o elétron do resto do mundo, isto é, de esquecer de levar em conta seu environment, o meio em que ele está mergulhado. Viu-se que, ao se levar em conta esse exterior do elétron, o problema seria contornado, a singularidade deixaria de existir: o infinito é banido da história processual do elétron. Ora, uma solução semelhante não é possível existir no caso do Universo, pois este não possui “um lado de fora”, um environment.
Universo não-singular
O que podemos extrair dessa comparação (e de um sem-número de casos semelhantes na Física) é que os físicos não podem aceitar que uma singularidade (divergência) faça parte de sua descrição da realidade, a não ser provisoriamente, enquanto uma boa teoria não seja criada. Foi essa a atitude de Einstein como comentei acima. Ademais, a teoria do universo eterno dinâmica não é nova. Em verdade, o primeiro modelo de universo eterno dinâmico foi publicado por uma revista científica americana chamada Physical Review em 1979 quando eu e meu colaborador, o físico gaúcho José Martins Salim, descobrimos uma solução das equações de Einstein representando um universo não-singular, possuindo um bouncing. Desde então, outros cientistas propuseram outros modelos não-singulares. No artigo da revista científica Physics Report de 2008 que citei, eu e meu colaborador argentino Santiago Bergliaffa descrevemos com detalhes esses modelos, especificando o que os distingue e as possibilidades de serem diferenciados pela observação.
Por diferentes razões (que descrevi em meu livro) a solução cosmológica de um Universo com bouncing foi deixada de lado por quase trinta anos e somente agora está sendo reexaminada com profundidade. O simples fato de termos sido convidados, por uma das mais importantes revistas científicas internacionais, a escrever um trabalho examinando os diferentes modelos de universo eterno dinâmico construídos pelos cosmólogos, responde bem à sua pergunta.
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar mais algum aspecto não questionado?
Mario Novello - Sim. Eu gostaria de reproduzir uma seção de meu livro citado acima e referente às questões que você colocou.
ANTECEDENTES
Mesmo sem ter produzido uma explicação racional da origem do Universo, o modelo Big Bang, isto é, a ideia de que o universo tenha sido criado por uma grande explosão que teria acontecido a uns poucos bilhões de anos dominou o cenário cosmológico durante a maior parte da história moderna da Cosmologia e, em particular, desde os anos 1970 a 2000. Isso se deveu a várias circunstâncias e nós teremos oportunidade mais adiante de esclarecer essas causas.
Embora esta imagem extremamente simplista do que teria ocorrido no início da atual fase de expansão do universo não tenha sido ainda totalmente abandonada, devemos reconhecer que ela não tem mais nem o vigor nem a hegemonia que possuía no passado recente. A origem desta mudança de paradigma no imaginário do cientista tem várias causas; uma das mais relevantes está associada a observações astronômicas recentes que foram interpretadas como se a expansão do Universo estivesse sendo acelerada (…).
Há aqui, entretanto, um detalhe que tem faltado às análises que se envolvem na questão do Big Bang e que vai além do simples exame deste modelo e seu possível poder explicativo. É verdade que, ao serem indagados “é o Universo singular” ou “existiu um momento único de criação deste nosso Universo”, um grande número de cosmólogos tenha respondido sim a estas perguntas, embora com ênfase maior nas duas últimas décadas do século passado. Mas essa indagação, embora explicite uma necessidade atávica do homem, estava mal-colocada.
Esta não era a pergunta adequada que deveria ser feita, pois para respondê-la é necessário empreender extrapolação impossível de ser controlada pela observação direta. A boa questão “esta sim, possuindo consequências científicas relevantes” que deve ser colocada é um pouco menos preciosa, menos exuberante, aparentemente menos abrangente, mas bem mais fundamental. A pergunta que deve ser feita é esta: pode a ciência produzir uma explicação racional para a evolução do universo, se o Big Bang for identificado com o começo do universo?
Para entendermos completamente esta questão precisamos esclarecer as propriedades deste modelo. No entanto, é possível, antes disso, dar uma primeira visão das dificuldades intransponíveis que um cenário explosivo provoca. Essa conclusão depende diretamente do modo pelo qual os cientistas constroem uma descrição racional do universo.
De um modo geral, a física se organiza a partir do princípio de Cauchy, que descreve o modo pelo qual se dá o concerto entre teoria e observação. Ao se realizar uma experiência, um certo número de informações sobre um dado processo físico é obtido. Com a repetição desta ou de outras observações, alarga-se o conhecimento de diferentes propriedades associadas ao fenômeno em questão. Este processo é então descrito por uma teoria que permite conhecer sua evolução temporal e inferir previsões. Novas observações permitem então verificar a validade ou não destas previsões. Este procedimento é bastante geral e mesmo uma história do Universo pode ser estabelecida dentro deste modo convencional de organização. Assim, o cientista produz uma explicação dos fenômenos segundo o esquema observação/teoria/observação. Para que se possa efetivamente seguir este procedimento convencional na Cosmologia, é indispensável obter observacionalmente informações sobre as características do Universo em um dado momento. Só assim se poderia elaborar e testar teorias globais de sua evolução. Se, por alguma razão, em algum momento, não for possível medir quantidades físicas de natureza global associadas ao Universo como um todo, este modo de proceder não poderia ali ser empregado. Há várias condições para que esse procedimento possa ser efetivado. A mais simples e fundamental dentre elas requer que todas as grandezas envolvidas sejam descritas por quantidades finitas. Isso se deve ao caráter finito de toda observação, pois qualquer medida requer um número real e finito para caracterizá-la. Assim, ao identificar o começo de tudo com uma explosão inicial - como o faz a proposta do cenário Big Bang -, onde quantidades que poderiam ser a princípio observáveis atingiriam, segundo este modelo, o valor infinito (como a densidade de energia total do Universo), esta condição básica não estaria sendo preenchida. Segue, como consequência inevitável, a impossibilidade de construção de uma ciência da natureza envolvendo a totalidade do que existe: não seria possível construir uma base teórica a partir da qual uma história completa do Universo se estabeleceria. A Cosmologia não descreveria esta totalidade, ou seja, no modelo Big Bang strictu sensu, a Cosmologia não poderia constituir-se como ciência.
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"O Universo estava condenado a existir". Entrevista especial com Mario Novello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU