18 Março 2009
Na opinião do advogado Paulo Abrão, coordenador da Comissão Nacional de Anistia, permanece incompleta nossa transição democrática. Para ele, é necessário “avançar no conceito de justiça de transição, que define a necessidade da preservação da nossa memória histórica pelo reconhecimento do direito à verdade”. Ele continua: “É preciso, ainda, a responsabilização dos agentes torturadores para que superemos a mácula de crimes ainda não apurados até hoje. É preciso que nós finalizemos os processos de reparação econômica aos perseguidos políticos e, por fim, que as nossas instituições de segurança pública se vocacionem para o respeito aos direitos humanos e deixem de praticar atos arbitrários tal qual no regime autoritário vigorava”. As declarações foram feitas na entrevista que concedeu, por telefone, à IHU On-Line.
Paulo Abrão é graduado em Direito, pela Universidade Federal de Uberlância (UFU), além de mestre e doutor em Direito, pela Unisinos e pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), respectivamente. Sua dissertação intitulou-se O poder judiciário em busca do Estado Democrático de Direito: crise (diagnóstico e versões) e transição paradigmática. Atualmente, leciona na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Ele é um dos conferencistas da noite de 8 de abril de 2009, quando ocorre o IV Simpósio da Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos Humanos e violência, governo e governança. O evento inicia em 6 de abril e se encerra no dia 8, tendo como principal tema a violência e memória na perspectiva das vítimas. É organizador de várias obras, entre elas Anais do II Congresso Internacional Transdisciplinar Ambiente e Direito (Porto Alegre: Edipucrs, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Na perspectiva das vítimas da ditadura brasileira e suas famílias, que justiças e injustiças a lei da Anistia promoveu?
Paulo Abrão – Do ponto de vista dos atingidos pela repressão do regime militar, restam pendentes uma série de direitos básicos ainda não atendidos pelo Estado brasileiro. O primeiro deles é o direito fundamental e humano de terem as informações a respeito da localização dos corpos dos desaparecidos políticos, para consagrar esse direito universal ao enterro digno de seus familiares. Em segundo lugar, os atingidos pela repressão do regime militar foram vítimas de crimes bárbaros, os quais até hoje não estão devidamente apurados pelo Estado brasileiro, crimes estes que são qualificados como crimes contra a humanidade, assim configurados os atos de tortura, desaparecimentos, prisões arbitrárias, assassinatos. Portanto, ainda vige em nossa sociedade um clima de impunidade. A terceira pendência que o Estado brasileiro tem com esses cidadãos resistentes à ditadura militar é a de que ainda há muitos processos de reparação em relação aos danos morais e materiais que eles sofreram e que ainda não foram apreciados, a despeito da aceleração que a apreciação do julgamento que a Comissão de Anistia tem feito. A quarta questão central está num direito que transpassa o direito individual desse conjunto de cidadãos que é a preservação de nossa memória histórica, que afinal é do interesse de toda a sociedade, para que tenhamos conhecimento em relação a esses episódios nebulosos de nossa história, como o acesso aos arquivos da ditadura militar.
IHU On-Line – O senhor é crítico a legislação que permite indenizações milionárias a vítimas da ditadura. Que alternativas o senhor sugere como forma de indenização às vítimas e suas famílias?
Paulo Abrão – A Lei de Anistia atual que concede as reparações econômicas aos perseguidos políticos é bastante iníqua. Para corrigir essas distorções da lei procuramos aplicar juízos de razoabilidade e de adequação dessa legislação à realidade social brasileira. Conseguimos, com base numa interpretação constitucional da Lei 10.559, alterar esse quadro anterior de concessão de indenizações milionárias. No passado, a média de indenizações a título de prestações permanentes e continuadas na comissão era de R$ 6 mil. Hoje essa média está em R$ 2,7 mil, valor compatível com o que se paga na previdência social nas pensões regulares. De toda forma, é preferível uma democracia cumprir a legislação legitimamente aprovada por unanimidade no congresso nacional do que um estado legal anterior e legítimo do regime militar, onde não imperava a força do estado de direito, mas vontade do soberano golpista.
IHU On-Line – A Leia da Anistia de 1979, como foi formulada, é justa?
Paulo Abrão – Em 1979, foi aprovada a Lei de Anistia para o perdão dos crimes políticos. Em 2002, é aprovada a lei de reparação. A Lei de 1979 serviu para a liberdade de muitos presos políticos. Foi por meio dela que conseguimos a volta de tantos brasileiros do exílio, e também ela inicia o processo de ruptura com o regime ditatorial com vistas à implementação de uma transição para o regime democrático. Nesse aspecto, ela é uma legislação que fez bem ao país. Porém, a leitura que prevaleceu no seio da sociedade, de que essa lei também teria anistiado os crimes e torturadores do regime militar, é inadequada, fazendo, a meu juízo, uma interpretação equivocada dessa legislação, que sequer em uma única linha faz referência à anistia aos torturadores. Essa interpretação levada adiante pelos tribunais é maléfica à nossa democracia.
IHU On-Line – Há manifestações das Forças Armadas contra as medidas que a Comissão da Anistia têm tomado?
Paulo Abrão – As Forças Armadas têm cumprido as determinações da Comissão de Anistia na implementação e no pagamento a uma série de perseguidos políticos militares que compõe, inclusive metade do total de indenizações já concedidas pela comissão. Porém, setores da reserva não têm demonstrado satisfação com a reabertura desse debate relativo ao alcance da Lei de Anistia. Independentemente dessa posição, temos levado o debate adiante.
IHU On-Line – As reparações que o governo têm feito às vítimas são somente financeiras? Que outras reparações são necessárias, em sua opinião?
Paulo Abrão – A primeira reparação é necessariamente simbólica, que é o ato através do qual o Estado brasileiro declara, reconhece a condição de perseguido político e o declara anistiado político. Isso significa, em outras palavras, que o Brasil oficialmente, e de forma institucional, pede desculpas pelos erros que cometeu contra essas pessoas no passado. Isso é o mais relevante no processo de anistia. Na sequência, a lei estabelece os critérios de fixação das indenizações devidas a cada um desses perseguidos políticos reconhecidos.
IHU On-Line – Depois de 40 anos, a sociedade, de fato, conseguiu resgatar a democracia, atualmente?
Paulo Abrão – Sustento que nossa transição democrática está incompleta. É preciso avançar no conceito de justiça de transição, que define a necessidade da preservação da nossa memória histórica pelo reconhecimento do direito à verdade. É preciso, ainda, a responsabilização dos agentes torturadores para que superemos a mácula de crimes ainda não apurados até hoje. É preciso que finalizemos os processos de reparação econômica aos perseguidos políticos e, por fim, que as nossas instituições de segurança pública se vocacionem para o respeito aos direitos humanos e deixem de praticar atos arbitrários tal qual no regime autoritário vigorava. Nesses termos, não podemos dizer que a transição democrática no Brasil já tenha concluído, até porque ela é necessariamente um processo.
IHU On-Line – De que forma eventos como esse da Unesco que vai ocorrer ajudam a construir direitos humanos sólidos e justos no Brasil?
Paulo Abrão – Iniciativas como essa, da Unisinos, nos fazem crer que o mundo acadêmico não permitirá que essas violações aos direitos humanos passem sem a devida apuração, sem a efetiva mobilização da sociedade civil, sem a formação da consciência crítica da nossa juventude, forjada nas nossas academias, universidades e escolas. Nunca teremos a certeza da não repetição em relação aos erros do passado. É preciso que nos lembremos para que isso não se repita jamais. Por isso, é com muita honra que apoiamos a iniciativa da Unisinos na realização desse evento.
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"Nossa transição democrática está incompleta". Entrevista especial com Paulo Abrão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU