09 Fevereiro 2009
Relembrando os acontecimentos de maio de 68, a filósofa francesa Judith Revel lamenta a atual conjuntura de seu país e diz que o mundo não carrega mais as heranças revolucionárias daquele período. Com a crise internacional, aponta, “vemos uma França que não tem mais as certezas que podia ter, mesmo quando se pensava que nela havia, apesar de tudo, algo como welfare, como um Estado de providência”. “Hoje, assiste-se na Europa, mas não somente nela, a uma verdadeira crise da representação política”, diz Judith Revel à IHU On-Line. Ela ainda acrescenta: “O conceito de representação política, fundamental na constituição do pensamento político moderno, não funciona mais enquanto tal”.
Visto como um país cumpridor de suas obrigações perante os cidadãos, a França vive um novo momento, mais sombrio, onde mais da metade da população teme ficar desabrigada. “A França foi, por muito tempo, o país do direito do trabalho, da proteção social, foi, por muito tempo, o país onde os seguros-desemprego, os seguros familiares, os seguros de saúde, a previdência social, os hospitais, as escolas, as universidades funcionavam gratuitamente e para todos. Hoje, isto está se tornando cada vez menos verdade”, compara.
Para aqueles que não acreditam na democracia ou perderam as esperanças de viver em um mundo melhor, igualitário e justo, a filósofa tem um recado: a democracia não é “algo que se deva rejeitar”, e continua: “é preciso sem dúvida rearticular, ou em todo caso, repensar, redefinir uma maneira de organizar a democracia que seja diferente”.
Na ampla entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, quando esteve no Brasil participando do “Fórum Livre do Direito Autoral – O Domínio do Comum”, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Judith Revel também analisa as mudanças da subjetividade humana e as relações de poder existentes entre os indivíduos. “Não sentimos mais as coisas da mesma maneira, não vivemos mais o tempo do mesmo jeito, não pensamos mais a história do mesmo modo. Mas também não pensamos o poder, a luta e o conflito da mesma maneira. Isto é uma abertura de visão que considero surpreendente”, considera.
Judith Revel é filósofa e leciona na Universidade de Paris, Panteon-Sorbonne. É especialista no pensamento francês contemporâneo, particularmente em Michel Foucault. Entre suas obras, citamos Michel Foucault: Expériences de la pensée (Paris: Bordas, 2005). É membro da redação da revista italiana Posse, e participa também da revista Multitudes.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a senhora descreve e qual sua avaliação sobre a atual conjuntura política e econômica francesa?
Judith Revel – A chegada de Nicolas Sarkozy ao poder representou uma ruptura. Finalmente, ele utilizou-se e rompeu com um modelo que era o de De Gaulle. Quando se pensa no gaulismo na França, fala-se de uma direita bem pouco liberal que continua, apesar de tudo, relativamente social.
Com Sarkozy, o que impressionou muito os franceses foi a negação em relação às suas posições que construíram a direita francesa, a vontade de se alinhar com uma posição americana, e também de construir ou de reconstruir um discurso de direita sobre um discurso hiperliberal. Este é um primeiro ponto.
O segundo aspecto importante – importante porque se veem os efeitos que há na crise atual na França –, é que o atual presidente francês procurou manter um discurso muito pró-europeu. E, ao mesmo tempo, ele se referiu permanentemente à grandeza da nação no bom momento em que a globalização torna difícil, senão impossível, o retorno a diferenças nacionais, independentes. Então, se trataria de preservar a autonomia ou de proteger a integridade? O protecionismo francês de Sarkozy funciona sem nenhuma contradição, enquanto é contraditório como um discurso pró-europeu. Ele ganhou há um ano e meio, recuperando claramente uma parte pequena, mas importante, do discurso de extrema direita, referindo-se ao discurso da imigração.
Medo assombra franceses
Hoje, no próprio momento em que a crise explodiu, penso que vemos uma França que não tem mais as certezas que podia ter, mesmo quando se pensava que nela havia, apesar de tudo, algo como welfare, como um Estado de providência. A França foi, por muito tempo, o país do direito do trabalho, da proteção social, o país onde os seguros-desemprego, os seguros familiares, os seguros de saúde, a previdência social, os hospitais, as escolas, as universidades funcionavam gratuitamente e para todos. Hoje, isto está se tornando cada vez menos verdade. Por vezes, já é completamente falso. E esta regressão, este tipo de reverso do antigo welfare francês, é acompanhada por uma violência nas intervenções sociais. O desemprego técnico, a diminuição de cargos, a redução das garantias dos direitos do trabalho, as dificuldades de acesso aos hospitais e a não gratuidade de certos medicamentos formam uma paisagem nova para os franceses.
Todos os anos, o Jornal de Domingo, um telejornal nacional, realiza uma pesquisa com os franceses. Ele pergunta: “Qual é o seu maior medo?”. Este ano, como no ano passado, mais de 50% dos franceses responderam: “Nosso maior medo é de nos encontrarmos na rua”. Ou seja, sem casa. O que quer dizer que, para a maioria dos franceses, a possibilidade de encontrar-se sem teto não é inverossímil. Inversamente, se analisarmos todos os Sem Domicílio Fixo (SDF) que vivem na rua em Paris, 29%, ou seja, um terço, dessas pessoas não têm casa, apenas um contrato regular. Então, reduziu-se a vida na França. Há condições de sobrevivência e não mais de vida. Não falo dos franceses que têm, apesar de tudo, direitos, nem dos imigrantes ou de imigrantes clandestinos, para os quais a vida não é nem mesmo da ordem da sobrevivência. Falo, isto sim, do pesadelo.
IHU On-Line – Pode traçar um panorama do pensamento filosófico e social da França das últimas décadas?
Judith Revel – Não, um panorama é extremamente difícil. O que posso dizer é 1968 correspondeu, para a França como para inúmeros países da Europa e fora dela, uma ruptura muito forte. Esta ruptura na França consistiu em três coisas. A primeira é a hipótese de que não havia fatalidade histórica, que não havia concepção dialética da história que nos fechasse em algo que já estava determinado e escrito antes mesmo de nossa ação. Havia, sim, para os homens, a possibilidade de construir sua história, e esta possibilidade incluía escolhas que se podia assumir e gerir de maneira voluntária e também cheia de esperança.
A segunda é que os sujeitos desta história não eram os que se esperavam. Se pensarmos do ponto de vista social e político, não francês, mas mundial, a defesa dos oprimidos, desde o século XIX, se faz seguidamente, não sempre, com referências a Marx. Lembro, por exemplo, de um certo pensamento francês, pós-estruturalista, de Foucault, Deleuze, Guattari, Derrida, ou, mais próximo de mim, de Jacques Rancière. Todo este pensamento francês que gira em torno de 68, ou um pouco antes de 68, e continua bem além, fez a hipótese dos sujeitos da mudança, da transição, da revolução, da ruptura. Estes sujeitos, que foram pensados pelo marxismo ortodoxo como já constituídos como os proletários, podiam ter rostos diferentes. Operários e imigrantes estavam juntos no mesmo combate, e formaram um sujeito unitário de mudança. O fato de que a subjetividade política, coletiva, emerge, de maneira nova, na segunda metade do século XIX, não corresponde mais às estruturas de ação coletiva que se conheceu no século XIX. No entanto, outra coisa que emerge e cuja criatividade, a capacidade de inventar uma modalidade de ação, é absolutamente inovadora. Esta ideia, fundamental, ainda hoje nos habita, se pensarmos, por exemplo, no que está acontecendo na Grécia. Lá não existem “quebradores”, mas sim anarquistas e não-anarquistas, estudantes e alunos, pesquisadores e pais de alunos. São pessoas que em protesto saem às ruas e dizem palavras como: “Também sou proletário, também faço parte da geração que ganha 600 euros por mês”. O que nos países europeus, e também na Grécia, é absolutamente insuficiente para viver, quando se pensa no custo de vida na Europa. Esta subjetividade é grande, forte e poderosa, e age.
A terceira ideia herdada de 68, ainda muito forte hoje – em todo o caso, seria preciso recomeçar a pensar nela –, é que as modalidades de ação política não tomam sempre o formato constituído pelo pensamento político e da filosofia política da modernidade. Hoje, assiste-se na Europa, mas não somente nela, a uma verdadeira crise da representação política. O conceito de representação política foi fundamental no pensamento político moderno, pois permitiu pensar no funcionamento da democracia a partir do século XVIII. Hoje, cada vez mais existem situações nas quais se tem a impressão de que a representação política não funciona mais enquanto tal. O que não quer dizer que a democracia é algo que se deva rejeitar, ou que é uma coisa ruim. Mas, sim, de que é preciso sem dúvida rearticular, ou, em todo caso, repensar, redefinir uma maneira de organizar a democracia que seja diferente. Um exemplo: em 2002, nas eleições presidenciais francesas, entre um candidato de extrema direita racista, Jean-Marie Le Pen e o candidato de direita, Jacques Chirac, todo o país votou em Chirac, contra a extrema direita. O que quer dizer que ele foi eleito com 82% dos votos. Quando se pensa nesse total, trata-se de um voto mascarado, e não em um voto democrático. 82% não representa a vontade política das pessoas. É simplesmente a vontade de colocar um obstáculo para algo que é um perigo. Ninguém queria essa popularidade para Chirac, mas muitas pessoas – das quais faço parte – votaram nele, e não queriam que ele fosse eleito presidente. Mas fomos obrigados a fazê-lo. Este é um exemplo clássico de que a representação tem limites. Há também as pessoas que não podem votar. Todos os estrangeiros que contribuem para a economia francesa, que trabalham no país, que pagam impostos, não têm direito ao voto. Então, o que é reinventar a democracia neste contexto? Penso que é provavelmente a questão que está no cruzamento da herança do pensamento filosófico e político francês desde 1968. É uma questão a qual é preciso absolutamente começar a refletir, e tentar responder hoje.
IHU On-Line – Que transformações a senhora percebe no homem pós-moderno, ao assumir sua subjetividade? O que nos tornamos hoje, a partir do momento em que assumimos a nossa subjetividade?
Judith Revel – A situação é complexa, pois é, ao mesmo tempo, mais difícil e aberta. É evidente que a passagem a um paradigma de trabalho, de luta em prol da produção de bens materiais em série ou a produção do valor econômico, no sistema capitalista se faz a partir da economia material, e os partidos trabalhadores não têm muito que fazer a respeito. Pensa-se mesmo em afastá-los.
A passagem do capitalismo material ao imaterial cognitivo permitiu às pessoas que trabalham hoje, inclusive nas estruturas de trabalho imaterial, fazerem valer ou reintegrar a subjetividade no processo de valorização. Quando se recruta alguém para um trabalho, inclusive em países de economia desenvolvida, avançada, pede-se para ter conhecimentos ou uma experiência, de ter uma história e de colocar em sua produção toda esta vida que é a sua. A produção tornou-se biopolítica. Ela é obrigada a interagir com a subjetividade dos homens e das mulheres. Então, isso é uma abertura. Pode-se ver também o contrário. Quer dizer, finalmente, neste tipo de integração à subjetividade ao processo de valorização, ao processo de produção do valor, insiste-se em um tipo de extorsão que é extremamente forte, do poder da economia capitalista sobre os homens. Quer dizer que o poder, desde então, “comeu” a vida dos homens de tal forma que o tempo de trabalho é o tempo de toda a sua vida. Mesmo quando não trabalham, estão em casa, sonham, leem, assistem televisão, e quando amam. Então, as duas percepções são, ao mesmo tempo, uma extorsão do poder e uma sorte formidável.
Economia material x imaterial
No passado, quando estávamos em um tipo de economia material, a única coisa que o trabalhador podia fazer, quando explorado e roubado em sua própria produção, era quebrar os instrumentos de trabalho, pois as ferramentas e as máquinas não pertenciam a ele. Era preciso, então, interromper a cadeia de montagem, fazendo uma greve. Hoje, é bem mais simples. Não temos mais somente máquinas diante de nós. A máquina principal na produção econômica é o cérebro. Se quero denunciar um tipo de exploração do qual sou objeto, posso partir com meu cérebro. A máquina não pertence mais ao patrão. A máquina produtiva é meu cérebro: ele é meu, e isso é minha subjetividade. Então, penso que a relação de força está extraordinariamente reequilibrada por esta integração da subjetividade no processo econômico. Ela é minha, e o capital precisa dela.
Ao mesmo tempo, o capital investe em minha vida, o que é um problema. Penso que as duas coisas marcam ou definem uma condição que é nova. Não sei se é a condição do pós-moderno, mas é evidente que produz mudanças extremamente finas, inclusive no que se refere ao modo de vida. Penso que são realmente mudanças antropológicas que compõem a nova antropologia do homem pós-moderno a ser definido. Não sentimos mais as coisas da mesma maneira, não vivemos mais o tempo do mesmo jeito e não pensamos mais a história do mesmo modo. Mas também não pensamos o poder, a luta e o conflito da mesma maneira. Isto é uma abertura de visão que considero surpreendente.
IHU On-Line – Segundo Foucault, nossa subjetividade nunca cessa de se inventar. Que limitações nossa subjetividade e autonomia encontram quando confrontadas com a alteridade, o Outro?
Judith Revel – Penso que a questão do Outro é uma questão errada. Ela foi importante na questão filosófica francesa nos anos 50 e, provavelmente, já antes da guerra. O Outro é pensado, ao mesmo tempo, como meu próprio vis-à-vis, como o objetivo que é preciso que eu alcance.
Tenho tendência a pensar que para Foucault, a relação consigo mesmo, a relação com o Outro, é pensada de maneira diferente e, ao mesmo tempo, não é uma ciência de natureza. Pois, finalmente, quem sou eu?
Sou sempre o Outro de mim mesmo. Não sou alguém, no sentido a quem se poderia se dizer algo. Poderia descrever meu estado estável de processo. Eu sou o processo, o porvir. Então, sou algo hoje que não serei mais amanhã, quando serei diferente. Terei vontade de ser diferente. A relação comigo mesma é uma relação não de alteridade, pois para dizer Outro é preciso sempre a estrutura do mesmo e do Outro; o Outro como o outro do mesmo. A expressão do círculo elíptico. Penso que a relação consigo mesmo, para Foucault, é sempre de diferencial. Não se trata de falar do Outro, de alteridade, mas sim de ser diferente. Sobre isto, penso que Jacques Derrida tinha uma grande definição desde os anos 60. Como se faz para não se definir como uma identidade, uma substância, uma entidade, sabendo-se mesmo que se vai tornar um diferencial? Que se vai ficar diferente de si mesmo? Quer dizer, na subvenção do movimento de uma evolução.
Então, se digo isso de mim mesma, sou obrigada a dizer que a relação que tenho com o Outro é diferente disto. O Outro é aquele que não sou eu. E eu quem sou? O Outro é aquele que não sou eu e, ao mesmo tempo, posso descobrir, em função das circunstâncias, de situações, de comprometimento, extremamente fortes. Dou-lhe um exemplo: em novembro de 2005, ocorreu na França a revolta dos subúrbios. Logo em seguida, houve um movimento de estudantes em março ou abril de 2006. Alunos de subúrbios se uniram a estudantes da Universidade Sorbonne de Paris. O que eles tinham em comum? Nada. Os estudantes da Sorbonne de Paris são, na maioria, não todos, alunos loiros de famílias da pequena, média e grande economia parisiense. Os alunos de subúrbio têm muito pouco acesso à universidade. Entretanto, ambos diziam: “Nossa vida é roubada”. Claro que há uma diferença entre ambos, mas isso não separava as pessoas. Ela os unia na busca de um comum pelo qual era preciso lutar. Penso que isso é algo que representa o pensamento da relação com o Outro. É finalmente isso a subjetivação da qual fala Foucault.
IHU On-Line – Como podemos compreender a dinâmica da subjetividade que construímos constantemente, ao lado dos condicionantes aos quais somos forçados a aceitar?
Judith Revel – É preciso sair da lógica do “tudo ou nada”. Somos forçados a aceitar as obrigações somente porque não há exterioridade. O poder se dá através das relações afetivas, entre familiares, entre pais e filhos, de sentimento de afeto, de amor entre um homem e uma mulher, de saberes entre um aluno e seu mestre. Há relações de poder em tudo, com vários rostos. Então, dizendo isto, não é mais possível pensar na resistência ao poder, ou seja, na subjetivação. É impossível pensar na subjetivação que está externa ao poder. Se estamos sempre “no interior das redes do poder”, para usar uma expressão de Foucault, somos obrigados a aceitar que esta relação de poder passa através do Outro.
Mas não somos sempre submetidos a isso, pois somos simultaneamente atores ou submissos ao poder. A única coisa que se pode fazer é – aí que a resistência e a subjetivação tomam força – torcer, no próprio interior desta relação de poder, a maneira na qual ele se exprime. Devemos dobrar, contornar, afastar, trabalhar internamente todos os dispositivos que nos atravessam e que nos fazem também ser o que somos. A única possibilidade de subjetivação está no próprio interior das relações que nos atravessam para chegar a impor um distanciamento. Mas o que é este distanciamento? Aí está toda a questão. Foucault responde simplesmente que o distanciamento é que a subjetivação é capaz de fazer algo que o poder não é capaz de fazer. O poder age sobre a ação dos homens, e lembro uma frase também de Foucault: “O poder é um modo de ação sobre a ação dos homens”. Enquanto isso, a resistência não faz nada além de agir. Ela não é somente reativa. A resistência produz, cria, inventa. Quando se fala de subjetivação, se fala de uma produção de subjetividade. Ou seja, de uma invenção de subjetividade. Construo-me de maneira inédita. E isto o poder não é capaz de fazer. O próprio sentido do poder é reativo, gestor, mas não criativo. É nesse descompasso, finalmente, que o problema do comprometimento ou o problema da obrigação desaparece. Certamente existe obrigação.
IHU On-Line – De que forma a urgência de liberdade que animava as manifestações de Maio de 68 continua uma demanda atual?
Judith Revel – Dizer que maio de 68 ainda é atual não quer dizer que o que acontece hoje é maio de 68. Nesse período, aconteceu uma revolução, que interveio em um contexto no qual a economia era frutífera. A França vivia os trinta anos gloriosos. O desemprego praticamente não existia, era de 4%. A vontade de revolta era política e cultural radical. Era a vontade de “tomar a palavra”.
Limitações pós-68
Hoje, o que acontece em relação a maio de 68, é ignorado. É ignorado que, na França, o desemprego está em 10%; para os jovens de subúrbio, ele é de 30%. O contexto econômico e social é totalmente diferente. Mas há também pontos em comum que, apesar de não permitirem dizer que 2008 e 68 são a mesma coisa, ajudam a entender que 2008 é um tipo de eco, a distância, do que 68 permitiu. Os pontos em comum entre os períodos são uma definição aberta da história, ontológica e não dialética na qual o homem pode intervir e construir a história, fazê-la e construí-la. Uma nova definição da subjetividade ou da subjetividade coletiva que emerge é fundamentalmente nova em relação a uma gramática biopolítica que foi a da modernidade. Há também a questão dos modos de ação, que são totalmente diferentes e não passam necessariamente pelos critérios da representação política, tais como o pensamento político moderno nos havia ensinado. Neste sentido sim, 2008 é o filho de 68.
IHU On-Line – Em entrevista à nossa revista, em 2006, a senhora disse acreditar no poder ontológico dos seres humanos. Que aspectos destacaria nesse sentido, como conquistas/progressos que o ser humano realizou para "se melhorar"?
Judith Revel – A ideia de melhora é complexa, pois foi muito tempo associada ao progresso científico e tecnológico. Não faço parte do grupo de pessoas que demonizam esse progresso.
Existe hoje um discurso importante de “decrescimento” usado na esquerda, na extrema esquerda, no qual seria o caso de sair deste ciclo econômico para voltar a algo que seria anterior. Não se volta nunca atrás, e também não se pode dizer a alguém que não tem nada que está tudo bem assim e que o consumo é algo horrível. As pessoas que não têm nada têm vontade de conseguir as coisas que possuímos. Por isso, é extremamente difícil construir um modelo ou de sair do consumo mesmo se a grande maioria da humanidade não tem acesso a esse consumo.
A contradição está na desigualdade e não no consumo. Então, o que se entende por melhora da condição humana? Entende-se, é claro, um acesso geral, generalizado de todos a esse bem-estar. Quando digo bem-estar, não quero dizer acumular roupas em um armário, e sim saúde, educação, cultura, gosto, felicidade.
Direitos à vida e não à sobrevivência
Penso que o conceito de felicidade é algo que não se deve considerar levianamente. Concretamente, quer dizer o quê? Quando conversamos com pessoas que não têm documentos, com imigrantes, com sujeitos que estão abaixo do limite da pobreza, elas dizem: “Gostaríamos de comer, de beber, pois não temos o que comer nem o que beber. Gostaríamos de ter tratamentos, de ter escolas.” Elas dizem também: “Gostaríamos de ver coisas belas, de ir a cidades, de ver o mar, de ver quadros, escutar músicas, de poder nos reunir, de nos apaixonar etc.”. Para mim, a melhora da vida humana, hoje, traz esses elementos. Ou seja, dizer o que é um direito inalienável para os homens e para as mulheres. Quando me refiro a direito inalienável, lembro que seria preciso reescrever hoje a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual acabamos de festejar o aniversário. Penso que é preciso começar na ordem das coisas, ou seja, eliminar as desigualdades mais explícitas e reivindicar estes diretos inalienáveis. Quando obtivermos isso, poderemos dizer que a resistência é possível. Tornar possível a resistência é um direito.
IHU On-Line – Considerando a dinâmica da internet e as novas formas de produção e reprodução dos conteúdos, qual a relevância de discutir o direito autoral?
Judith Revel – Os direitos autorais são fundamentais, pois permitem reafirmar um setor novo, extremamente valorizado do ponto de vista econômico, ou seja, produzem enormemente valores econômicos. Permitem impor, neste novo setor, uma ideia muito antiga, a da propriedade. Se refletirmos sobre a ideia da propriedade, seja um bem intelectual ou material, pouco importa. O que é surpreendente, e extremamente banal, mas sobre o que se pensa muito pouco, é que não sou proprietária de algo.
Minha propriedade é a expropriação de todos os outros. Uma coisa é minha porque não é de outra pessoa. Esta é a ideia da propriedade. Então, não se pode pensar nisso sem uma ideia de expropriação. Penso que é também uma maneira de limitar os homens e “para bem vir é preciso dividir”, como diz o velho adágio. Então, o que se pode fazer diante desta ideia de propriedade? Pode-se, é claro suprimi-la totalmente. Mas pode-se fazer algo mais interessante, pois, historicamente, o contexto tentou suprimir a propriedade privada. Penso, por exemplo, no modelo soviético. Independentemente do julgamento moral, o regime soviético não funcionou porque se transferiu a propriedade privada para a propriedade do Estado.
Ora, a propriedade do Estado é o quê? É tudo o que pertence a ele, pois não pertence a mais ninguém. É exatamente como a propriedade privada. Salvo que o proprietário é um só: o Estado. Da propriedade classicamente privada, somente um era o proprietário; os outros não tinham nada. Da propriedade do Estado, ninguém é proprietário, pois ela é do Estado. Você me dirá: “Sim, mas o Estado somos nós”. Mas, infelizmente, não é assim que funciona. É daí que nasce o problema. Antonio Negri e Michael Hardt tentam pensar uma outra categoria que não seja nem privada nem pública, mas intermediária, que poderia ser interessante para repensar a propriedade. É a categoria do comum, sendo este aquilo que é de todos.
É uma categoria difícil, pois não pertence à modernidade e é, me parece, o que a dimensão imaterial do conhecimento e a internet começaram a experimentar. Penso em toda esta troca, este compartilhar de conhecimentos que acontece através da internet. Tudo isso configura um grande desafio, pois nos permitirá, para além do imaterial, repensar também a propriedade material, ou seja, repensar o bem comum. O bem comum é literalmente o “common good”. “Common good” é o titulo do livro de Antonio Negri e de Michael Hardt que será lançado no ano que vem e, que espero, nos ensinará muitas coisas.
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A passagem do capitalismo material ao imaterial cognitivo e a crise da representação política. Entrevista especial com Judith Revel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU