25 Setembro 2008
Há anos, os Guarani de Mato Grosso do Sul vêm reivindicando a ampliação de suas terras no estado, uma vez que eles são confinados em pequenas regiões pelas grandes elites, gerando inúmeros problemas internos, como o da violência. Há dois meses, segundo o professor Antonio Brand, foi lançada uma campanha violenta contra os povos indígenas. Ela passa à população mato-grossense informações falsas sobre as reivindicações feitas pelos índios, como a demarcação de 33% das terras do estado e a inviabilização do crescimento da economia. Na última semana, o presidente da Funai, Márcio Meira, e o governo do Mato Grosso do Sul se reuniram para falar sobre a questão dos problemas que os índios estão passando e sobre suas necessidades, e mais uma vez a imprensa divulgou informações não-oficiais, tais como a assinatura por parte do presidente do órgão de defesa dos índios de um documento que afirmava que todas as terras demarcadas seriam pagas ao estado, o que é ilegal, segundo a Constituição.
A IHU On-Line conversou por telefone com Brand sobre essa questão. “Os índios não participaram de nenhum desses encontros. O encontro aconteceu apenas entre o presidente da Funai e representantes de setores contrários aos interesses indígenas. Efetivamente, os índios, até agora, não foram ouvidos. É preciso ter presente que a imprensa regional vem se posicionando totalmente do lado dos interesses do agronegócio. Todas as informações veiculadas pela imprensa regional têm sido gravemente agressivas aos interesses indígenas”, disse ele.
Antonio Brand é graduado em História, pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande. Tem mestrado e doutorado na mesma área, pela PUCRS. É, atualmente, professor da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande, MS.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como foram articuladas as negociações entre a Funai e o governo de Mato Grosso do Sul em relação à demarcação de terras indígenas no estado?
Antonio Brand – Nós estamos há dois meses assistindo a uma das mais virulentas campanhas contra os povos indígenas. Nesse sentido, todos – governo do estado, políticos, associações de classe ligadas ao agronegócio – vêm fazendo sistematicamente uma campanha contra o processo, a iniciativa e a decisão da Funai de demarcar e ampliar os territórios Guarani. Essa é uma campanha impressionante, que vem sendo apoiada por informações, em sua maior parte falsas. Dizia-se, por exemplo, que 33% do território do estado seria demarcado e reservado aos índios, que cidades inteiras iriam desaparecer e que, finalmente, a economia do estado ficaria inviabilizada. Durante dois meses, foi feita uma campanha com o claro objetivo de criar uma animosidade nos diversos setores que compõe a população regional. Nesse tempo todo, a Funai, ou qualquer órgão do governo federal, esclareceu exatamente do que se tratava essas conversas. Ou seja, ninguém pode afirmar o quanto dessa terra será demarcada, porque o estudo vai dizer isso, mas isso ninguém disse em público.
Até que finalmente, depois desse tempo todo, o presidente da Funai, Márcio Meira, veio ao estado. No nosso entendimento, isso deveria ter sido feito lá no início, quando foram editadas as portarias que objetivam a identificação de diversas terras que os Guarani reivindicam. Agora, finalmente, esse encontro aconteceu num ambiente completamente marcado por essa campanha que eu descrevi. As informações que se tem sobre os resultados desse encontro são, no mínimo, controvertidas. Se, por um lado, é dito que o presidente da Funai manteve as portarias de identificação, por outro, se diz que ele se comprometeu em pagar o valor da terra, o que atualmente é proibido pelo texto constitucional. Também parece que o presidente da Funai assumiu o compromisso de incluir nos GTs representantes do governo do estado. Mas também existe uma outra informação que circula em todos os jornais: a de que as identificações se restringiriam às aldeias, o que também é uma questão muito difícil, porque a identificação possui exatamente o objetivo de localizar e dizer que terra que é indígena. O que temos, até o momento, são informações bastante contraditórias e preocupantes, em que o risco é de atraso no trabalho de identificação que já está, todavia, atrasado. Já faz alguns anos que os Guarani estão reivindicando a identificação dessas terras.
IHU On-Line – Qual é o argumento da Funai para suspender essa demarcação?
Antonio Brand – Ela não suspendeu. Inclusive há uma nota da Funai, na qual se deixa claro que as identificações vão seguir. Fala-se que ela irá manter os prazos acordados no termo que foi assinado por ela e pelo Ministério Público. Só que existem essas outras questões que não sei como serão resolvidas.
IHU On-Line – Então, de onde surgiu a questão de que a Funai iria suspender esse processo?
Antonio Brand – Essa informação não confere com o que foi dito após a reunião entre a Funai e o governo do estado. Logicamente, essa era a posição do governo, ou seja, que esse trabalho fosse simplesmente suspenso. Mas, pelo que foi dito e está na nota da Funai, isso não é verdade, ou seja, o trabalho continuaria com a participação do governo do estado, os proprietários das terras dentro do território demarcado seriam informados previamente e, por fim, o governo seria indenizado por “ceder” esse espaço aos índios, o que, como já falei, agride o que dispõe a Constituição.
IHU On-Line – Como os índios e as instituições de apoio receberam tal notícia?
Antonio Brand – Os índios não participaram de nenhum desses encontros. O encontro aconteceu apenas entre o presidente da Funai e representantes de setores contrários aos interesses indígenas. Efetivamente, os índios, até agora, não foram ouvidos. É preciso ter presente que a imprensa regional vem se posicionando totalmente do lado dos interesses do agronegócio. Todas as informações veiculadas pela imprensa regional têm sido gravemente agressivas aos interesses indígenas. Eu creio que essa campanha foi uma questão extremamente grave e representou uma agressão aos direitos-base dos povos indígenas da região. Armou-se um verdadeiro clima que, em princípio, favorece violências, porque se criou todo um ambiente anti-indígena a partir de informações falsas. Em nenhum momento, os índios reivindicaram a metade do estado e muito menos a demarcação dessas terras irá inviabilizar o desenvolvimento do estado. Então, eles, até o momento, não têm se manifestado sobre todos esses encaminhamentos e creio que com razão, porque essa campanha foi de uma tal violência que eles devem se sentir bastante acuados nesse momento.
IHU On-Line – O documento que registra a suspensão temporária dos estudos antropológicos para a demarcação de terras indígenas prevê levar em conta a necessidade de diminuir ou não gerar prejuízos à economia do estado. No entanto, as terras são da União e os títulos sobre elas são nulos. Como a Funai aceita um documento como tal reserva?
Antonio Brand – Eu não vi nenhum documento oficial da Funai, mas ela não tem como assinar uma coisa dessas. A imprensa daqui divulgou afirmações da Funai de que ninguém tem interesse em inviabilizar a economia do estado. Isso, obviamente, está correto, pois os índios não têm interesse nisso. Mas a Funai não pode dizer que irá diminuir as terras indígenas ou não demarcá-las, pois estaria negando a sua própria razão de ser. Eu tenho uma grande dificuldade em falar sobre essa questão, porque o que assistimos aqui, nas últimas semanas, são demasiadas manipulações por parte da imprensa. Como ainda não consegui, efetivamente, ler esse documento assinado, contatei o Ministério Público. O presidente da Funai não pode se comprometer com encaminhamentos que contradigam a Constituição. Por isso, acho difícil ele assumir esse tipo de compromisso, embora o governo federal, onde está a Funai, até agora tem se mostrado omisso e quieto frente a essa grave agressão aos índios.
IHU On-Line – Há um ano, nós conversamos com o senhor sobre a questão da mortandade de crianças indígenas da região. Essa questão pode se agravar se a demarcação demorar para sair?
Antonio Brand – A questão de fundo é sempre a mesma. O governo federal e os órgãos públicos, frente a essa questão da desnutrição infantil e outros problemas como a violência interna entre os povos indígenas, tem buscado enfrentá-los com medidas de caráter pontual e assistencial e evitado, digamos assim, reconhecer que esses problemas são decorrentes do processo de confinamento. No entanto, há um consenso entre os pesquisadores de que, enquanto não ocorrer uma significativa ampliação territorial, esses problemas só tendem a se agravar. A questão da desnutrição pode ser reduzida mediante o fornecimento de comida, que é o que está sendo feito, mas isso sempre será uma solução que dependerá desse fornecimento externo e nunca irá significar uma solução em médio prazo. Então, na hora em que ocorrer qualquer interrupção nesses programas de fornecimento, se tem um agravamento imediato do problema. É totalmente correto dizer que os problemas da desnutrição e, principalmente, o da violência interna, só poderão ser superados mediante a ampliação dos territórios. Por isso, para nós, pesquisadores, essa questão é fundamental. Há uma relação inquestionável entre a recorrente desnutrição entre crianças e do aumento da violência dentro das comunidades com o atraso da demarcação da ampliação dos territórios.
IHU On-Line – O conflito que está acontecendo em Raposa Serra do Sol influenciou, de certo modo, a política de demarcação em Mato Grosso do Sul?
Antonio Brand – As realidades são bastante distintas. As terras que os índios estão reivindicando aqui são, de toda maneira, extensões muito reduzidas se comparadas com as que estão em discussão lá em Roraima. Mas eu creio que esse julgamento tem uma importância muito grande porque se o Supremo, como esperamos, reconhecer efetivamente o direito e confirmar os encaminhamentos de Roraima e reconhecer a demarcação feita, é lógico que isso significa uma confirmação do direito indígena explicitado na Constituição. Nesse sentido, é absolutamente fundamental e terá conseqüência para as discussões em torno das terras indígenas no Brasil todo.
IHU On-Line – Essa suspensão temporária tem relação, de algum modo, com a ampliação da cultura da cana no estado?
Antonio Brand – É lógico. Até dois, três anos atrás, já existia o plantio de cana. Isso não é uma novidade aqui, pois havia cerca de dez usinas em funcionamento. Atualmente, estão sendo implementadas cerca de 50 novas usinas. Como a melhor terra coincide com o território Guarani para a agricultura, é aí que estão sendo implantados os maiores canaviais e novas indústrias. Então, a terra valorizou muito em toda a região e todo mundo vive um pouco na perspectiva e na euforia dessa nova atividade econômica. Então, nesse contexto, demarcar terras para os Guarani parece ser uma proposta que vai na contramão da história regional. Hoje, o governo do estado e os órgãos públicos só estão preocupados em ampliar as indústrias sucroalcoleiras. Então, vêm os Guarani e reivindicam a demarcação de terras que, obviamente, não irão para a exploração da cana. Isso parece ser uma questão inadmissível para as nossas elites econômicas. Eu creio que esse momento de grande euforia em torno da produção de açúcar e álcool, que se mostra algo lucrativo, contribuiu com reações contrárias às dos Guarani. Por outro lado, se olharmos sob o ângulo menos desenvolvimentista, teremos um argumento a mais para apoiar a causa Guarani, pois aí entra a questão ambiental. Mesmo hoje, é nos pequenos territórios que os Guarani ocupam que podem ser encontrados uma maior diversidade ambiental. Esse é um argumento fortíssimo para ampliarmos os territórios indígenas, porque também significa proteção ao meio ambiente.
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A dura luta dos Guarani no Mato Grosso do Sul pela demarcação da terra. Entrevista especial com Antonio Brand - Instituto Humanitas Unisinos - IHU