19 Março 2008
O documentário Nas terras do bem-virá trata do trabalho escravo na Amazônia, mais especificamente no Pará e no Mato Grosso, e revela como é realizado anualmente o aliciamento de mais de 20 mil trabalhadores nordestinos, especialmente nos estados de Maranhão e Piauí, para servirem como mão-de-obra escrava para a agropecuária e extração madeireira naquelas terras. O resultado é a edição de mais de 200 horas de depoimentos e cenas de arquivo, que acabam por abranger também a questão do conflito agrário no norte do Brasil. E quem fala sobre o tema, em entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line, é o próprio diretor desse documentário, Alexandre Rampazzo.
Segundo ele, vivemos dentro de uma grande "ditadura da informação", em que fatos como a escravidão contemporânea são encobertos. E completa: "É estranho falar nisso quando estamos na era da informação, mas, se você olhar direito, perceberá que são meia dúzia de grandes famílias que detêm muitos meios de comunicação. Quando saímos dos grandes centros urbanos, esses donos são políticos, como, por exemplo, no Maranhão em que a família Sarney é dona de tudo, ou na Bahia, em que há o domínio da família Magalhães".
Mestre pela Universidade Federal Fluminense, Rampazzo é pós-graduado em Marketing, pela ESPM/SP, e graduado em Comunicação Social com ênfase em Propaganda e Marketing, pela ESPM/SP. Nas terras do bem-virá será apresentado no dia 15-05-2008 na Casa do Trabalhador, em Curitiba. Para maiores informações, clique aqui.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como surgiu a idéia de filmar o documentário Nas terras do bem-virá?
Alexandre Rampazzo – A idéia surgiu depois realizamos o primeiro trabalho, Ato de fé, que conta a história de um grupo de religiosos que, no período da ditadura militar, apoiou a Ação Libertadora Nacional. Este documentário traz a história do Frei Betto e o martírio do Frei Tito, entre outros. Tivemos uma relação muito boa com um grupo de dominicanos e alguns viraram nossos amigos. Entre eles, um contou que havia outro grupo de dominicanos, atualmente, que lutava contra o trabalho escravo. Eu fiquei surpreso e me perguntava: “Espera aí, como assim trabalho escravo? Estamos no século XXI”. Eu fiquei espantado e, então, fomos pesquisar a fundo. Um dominicano nos indicou alguns pontos a serem estudados, e passei um ano fazendo pesquisas prévias, três meses gravando e mais um ano realizando a edição. Nós captamos mais de 200 horas de imagem. Chegando ao final da edição, nós concluímos que a única instituição que se faz presente na vida desses agricultores e camponeses é uma pequena parcela da Igreja Católica (porque o Estado não é). Foi a partir desse contato que começamos o filme. Nele, aparecem alguns dominicanos, como o Frei Henri des Rosiers e Frei Xavier Plassat.
IHU On-Line – Que repercussões o filme tem surtido?
Alexandre Rampazzo – Para aquela pessoa mais distraída, porque vivemos numa espécie de ditadura cultural muito forte, o filme brasileiro já não tem muito público, e o de não-ficção menos ainda. Se formos ver, os filmes de não-ficção passam exclusivamente em festivais ou em salas alternativas que geralmente ficam em grandes centros urbanos, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Curitiba. Os filmes de não-ficção formam uma espécie de gueto, mas este vem crescendo muito. Poucas produções, no entanto, conseguem passar essa barreira do filme alternativo e ir para o circuito comercial. Aquele público mais desatento certamente se surpreenderá com a temática do trabalho escravo na modernidade, do conflito agrário. Houve gente que falou para mim: “Eu olhava aqueles camponeses sem terras como vagabundos, baderneiros e, depois de assistir ao documentário, eu percebi que não é bem assim, que eles estão lutando por algo justo”. Isso é muito interessante porque, dentro dessa grande ditadura cultural, há uma ditadura da informação. É estranho falar nisso quando estamos na era da informação, mas, se você olhar direito, perceberá que são meia dúzia de grandes famílias que detêm muitos meios de comunicação. Quando saímos dos grandes centros urbanos, esses donos são políticos, como, por exemplo, no Maranhão em que a família Sarney é dona de tudo, ou na Bahia, em que há o domínio da família Magalhães. E esses grandes magnatas também são fazendeiros, o que acaba criando uma rede muito grande que segura a informação. Então, sempre quando passa uma reportagem sobre o MST na mídia, a imagem mostrada é a de que o movimento é baderneiro e só sabe fazer invasões. As pessoas, vendo essas informações diariamente, acabam reproduzindo essa idéia de que seus componentes são bandidos, vagabundos, enfim.
Gosto de abordar a dificuldade de se produzir alguma coisa como esse conteúdo do filme. Existem hoje no país as tais de leis de incentivo à cultura, o que é uma verdadeira farsa. Sempre deram e continuarão dando dinheiro a quem sempre produziu no país. Hoje, quem manda no que será produzido são os empresários. Quem manda no cinema é quem trabalha no departamento de marketing das grandes empresas. Que empresa irá querer seu nome associado a esses temas mais polêmicos e controversos? Infelizmente, vivemos, como já disse, numa ditadura cultural muito forte. Mas precisamos tentar quebrar esse monopólio e mostrar que um outro mundo, de fato, é possível.
IHU On-Line – E o que principalmente seu documentário apresenta?
Alexandre Rampazzo – Acredito que o Nas terras do bem-virá mostra que existe um outro lado, que a história pode ser contado sob um outro ponto de vista. O que eu mais gostei no trabalho foi exatamente isso: o de mostrar o outro lado para algumas pessoas que não têm acesso a tais informações. Mas, enfim, é só um filme: os problemas persistem, as pessoas continuam escravizadas, as lideranças são assassinadas e vivem ameaçadas de morte. Além disso, percebemos que o Brasil é mais desigual ainda do que pensamos. O espanto de quem vive nas grandes cidades é exatamente esse. O sujeito passa a entender que o país é de uma determinada maneira porque a grande maioria das pessoas é desse jeito. A verdade é que as pessoas não têm acesso a condições dignas de trabalho, nem terras nem saúde.
IHU On-Line – Como o ciclo do trabalho escravo é abordado no documentário?
Alexandre Rampazzo – O título do filme, Nas terras do bem-virá, é, de certa forma, um termo bíblico, porque, desde a Bíblia da antiguidade as pessoas migram, vão em busca da terra prometida. A pessoa só sai da sua terra, do seu vínculo familiar quando em busca de melhores condições de vida. Ninguém sai da sua terra natal porque quer; cada um busca sua terra prometida. Com toda essa esperança, as pessoas partem em busca da terra prometida e acabam caindo num ciclo do trabalho escravo. Surge, então, o aliciador, que deixa uma pequena quantidade de dinheiro em forma de empréstimo. A pessoa o utiliza para comprar comida e já faz, antes de sair da sua terra, a primeira dívida desse ciclo. Em seguida, ela pega o ônibus para ir às fazendas. Desse modo, passa a dever o valor do transporte. Às vezes, durante a viagem, essa pessoa come e bebe, passando a dever por isso também. E, ao chegar à fazenda, acontece a mesma coisa: não há moradia, é preciso montar acampamento, que também é cobrado. Enfim, todo o seu trabalho é para pagar uma dívida que se acumula o tempo todo. Até suas ferramentas de trabalho são pagas. Ou seja, nem no capitalismo nós estamos, porque o próprio trabalhador terá de comprar os meios de produção que teoricamente o capitalista precisaria entregar. Com isso, o trabalhador está preso e geralmente só irá sair da fazenda quando terminar o serviço. Além disso, eles precisam agüentar pressões psicológicas de pistoleiros armados que fazem a “segurança” da fazenda. Eles são ameaçados 24 horas por dia. Só fogem quando estão realmente esgotados e não agüentam mais. A fuga de um trabalhador é uma medida extrema de exaustão. O engraçado é que não é só na Amazônia. Numa das regiões mais ricas de São Paulo, Ribeirão Preto, encontraram trabalhadores escravos em exaustão nas lavouras de cana-de-açúcar. Ou seja, trata-se de um problema existente em todos os lugares. Há também muito trabalho escravo entre imigrantes bolivianos na própria cidade de São Paulo. Eles trabalham em oficinas de confecção de roupas. Desse modo, estamos falando de trabalho escravo em São Paulo, na maior capital da América Latina e uma das maiores do mundo.
IHU On-Line – E qual é a importância de relembrar o massacre de Eldorado do Carajás e o assassinato da irmã Dorothy Stang?
Alexandre Rampazzo – Eu vejo um ciclo. As pessoas ficam presas no trabalho escravo. Quando alguém foge, é para buscar ajuda para os demais colegas que ficaram ainda presos. Ou procuram sindicatos e a Pastoral da Terra, que entram em contato com o Ministério do Trabalho. Este, por sua vez, tem um grupo móvel de fiscalização, que vai até a fazenda apurar a denúncia. São apenas sete grupos que se revezam para um enorme contingente no país. É necessário mudar a lógica de tudo. Qual é o limite do desmatamento da Amazônia? Isso não terá fim na lógica em que vivemos. E aqui todos nós estamos envolvidos. Não são apenas o fazendeiro ou o madeireiro os malvados. Temos a nossa parcela de culpa. Principalmente nós, que vivemos nos grandes centros urbanos, queremos as coisas cada vez mais baratas. Não importa como elas chegaram ou quem as fabricou. Essa lógica do lucro fácil, do consumo desenfreado, nos acompanha: somos levados insistemente a consumir.
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"Vivemos em uma ditadura cultural muito forte". Entrevista especial com Alexandre Rampazzo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU