“Anselmo, você só vai morrer se morrermos todos os Kokama”

Anselmo Rodrigres Samias, de 57 anos, professor indígena do povo Kokama e ativista pela revitalização do idioma kokama. | Foto: Arquivo Pessoal

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11 Agosto 2020

Awitse, Ikuatawara”, ou “obrigado, mestre”, em português, é o que Glades Samias escreve em carta ao primo professor que não resistiu à covid-19. Ele sonhava em revitalizar o idioma kokama.

A reportagem é de Joana Oliveira, publicada por El País, 07-08-2020.

Anselmo Rodrigues Samias nasceu na reserva indígena Sapotal, no Amazonas, e nutriu, desde jovem, o sonho de manter sempre viva a cultura do seu povo, os Kokama. Para isso, formou-se professor em Tabatinga (AM) e voltou para a aldeia com uma mala de livros e planos. Além de ensinar português na escola da reserva e implementou uma cartilha na língua kokama-kokamira. Ele sabia que, para que um povo tenha orgulho de sua cultura, aprender o próprio idioma é fundamental. Anselmo não se restringia à própria aldeia e percorria o Alto Solimões levando a língua através de livros. Aos 57 anos, a covid-19 interrompeu seus sonhos e planos, de forma abrupta, sem que ele pudesse sequer ser velado segundo as tradições da cultura que tanto amava (os kokama enterram os mortos com cantos e orações, deixando frutas e outros alimentos sobre a terra, para que a alma faça uma boa passagem).

Apesar de ter abandonado a dimensão terrena, como diz o seu povo, ainda é possível ouvir seu eco na voz de muitos kokama, com um sonoro awitse, ikuatawara. Em português: “obrigada, mestre”. É o que escreve sua prima, Glades Samias, nesta carta em sua homenagem, enviada à repórter Joana Oliveira.

 

Eis a carta.

“Querido primo,

Sentimos muito a sua falta. Sentimos falta também do espaço que você ocupava como pai, docente Kokama, gestor da nossa comunidade. Com você, aprendemos a importância de um grande líder e guerreiro Kokama, que sonhava em ver a nossa língua tradicional em todas as modalidades educacionais e, assim, fortalecer nosso idioma milenar.

Com seu modo calmo de ser, jeito tranquilo e ar de esperança, você desenvolvia cada atividade pedagógica de forma que todos nos envolvêssemos no propósito de revitalizar nossa língua tradicional. O maligno e invisível coronavírus tirou você desse mundo terreno, deixando sua esposa, seis filhos e três netos.

Mas nós que ficamos nesta dimensão da Terra daremos continuidade a esse grande sonho. Faremos o povo Kokama avançar em todos os sentidos diante de uma sociedade que é, muitas vezes, injusta e cheia de preconceitos.

Que as forças de nossos ancestrais nos fortaleçam em espírito.

Avante, primo Anselmo Samias! Você só vai morrer no dia em que ninguém lembrar do seu nome ou se morrermos todos os Kokama. Enquanto estivermos vivos, você estará vivo, lutando em outra dimensão pela defesa da nossa vida. A luta continua, novas gerações surgem, e continuaremos a lutar pela sobrevivência, mantendo sempre a resistência do nosso mundo Kokama.

Saudades, primo.

Glades Samias.”

 

Nota:

A história de Anselmo Rodrigues Samias foi contada pelo projeto Inumeráveis, um memorial dedicado à história de cada uma das vítimas do coronavírus no Brasil.

 

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