18 Agosto 2018
James Alison, teólogo e sacerdote, descreveu a armadilha da desonestidade e do silêncio que aprisiona todo padre gay. Neste artigo, ele defende que, como o aumento do número de leigos católicos que reconhecem que ser gay é uma condição de vida normal, esses padres não devem mais ter medo de serem sinceros sobre a própria sexualidade.
Alison é doutor em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, de Belo Horizonte. Em português, é autor de “Uma fé além do ressentimento: fragmentos católicos numa chave gay” (É Realizações, 2010; com introdução de João Batista Libânio, SJ) e “O pecado original à luz da ressurreição” (É Realizações, 2011). Atualmente reside em Madri, Espanha.
O artigo foi publicado por The Tablet, 08-08-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Caso não seja óbvio, eu não escrevo nem como jornalista, nem como sociólogo, nem como historiador. Eu sou um padre que aspira a ser um teólogo, alguém que é inteiramente cúmplice das realidades envolvidas. Eu percebi, há mais de 20 anos, que a única coisa mais forte do que a armadilha sistêmica em que me encontrava, enquanto ela tentava me cuspir para fora, era o perdão. Toda abordagem acusatória, todo desejo de vingança, toda forma cultural ou politicamente conveniente de “marcar pontos”, apenas ajuda a apertar os nós autodefensivos do sistema. Daí o título do meu primeiro livro a lidar com essa questão: Faith beyond Resentment [Fé além do ressentimento].
Desde então, eu tentei encarnar e pregar o perdão muito antes que a sua necessidade fosse reconhecida, ciente de que nenhuma estrutura terrena aparentemente sagrada (“principado” ou “poder”, na linguagem de São Paulo) pode resistir ao reconhecimento de que ela se baseia em uma mentira. É o perdão que abre para a verdade das coisas ao revelar contingência e mutabilidade, coisas que podem ser abandonadas, onde apenas a fixidez e a necessidade sagradas parecem reinar.
Eu ofereço, então, uma leitura abreviada a partir da misericórdia de alguns elementos de como chegamos até aqui. Pensemos no fim do século XIX. Temos os primórdios de um forte impulso à igualdade feminina que logo mudaria as leis de votação em todo o mundo ocidental. Temos os primórdios da psicologia e, com ela, a possibilidade de falar de coisas que antes não eram mencionadas, assim como um crescente reconhecimento da objetividade de elementos da “subjetividade” humana. Temos também a cunhagem do termo “homossexual”, deslocando a definição do modo de ser criminoso para uma espécie de modo de ser quase clínico. E temos, em diferentes linguagens, uma crescente ficção literária explorando de forma cada vez menos codificada as vidas e os desejos das pessoas que agora descreveríamos como gays ou lésbicas.
Se você nasceu nos anos 1890, as leis contra a homossexualidade, a chantagem, a violência e os suicídios misteriosos estariam no éter formativo do seu crescimento. Ainda era um mundo em que a maioria das profissões seria apenas masculina por mais algumas décadas, e um informal “não pergunte, não fale” sobre muitas indiscrições seria o padrão.
Avancemos rapidamente para alguém nascido na Europa ou na América do Norte nos anos 1990. Um universo diferente: igualdade feminina sensivelmente mais próxima; realidades psicossexuais discutidas abertamente; ser gay não mais como algo criminoso ou clínico; casamento entre pessoas do mesmo sexo no horizonte; e uma infinidade de livros, filmes, modelos e assim por diante, apreciados tanto por pessoas heterossexuais quanto por gays. Ainda há muitos problemas em muitos lugares, mas como estamos longe do mundo em que o governo britânico pôde garantir a execução de Roger Casement ao vazar diários em que ele nomeava seus amantes, chocando assim os simpatizantes de um grande homem em um silêncio envergonhado!
E o que dizer da vida clerical no mesmo século? Embora os rapazes nascidos nos anos 1890 talvez não tivessem palavras ou nomes para si mesmos, uma coisa era clara: em um mundo brutal, uma casta clerical monossexual em que ninguém questionava seu status de solteiro era o lugar mais seguro para se estar. Isso não só porque você estaria física e legalmente mais seguro em um mundo genuinamente “não pergunte, não fale”, mas também – e esta é a parte frequentemente esquecida – porque, se você queria ser bom, você pode muito bem ter ficado horrorizado com a miséria, moral e além, em que o seu amor de menino parecia ter se transformado ao longo do tempo, sem modelos melhores do que os jovens camaradas mortos na guerra. Um clero em que o único ensinamento era sobre atos não era apenas um espaço seguro, mas também um espaço em que, ao evitar esses atos, você poderia aspirar à bondade.
No entanto, enquanto o século evoluía, o mundo se movia em todos os níveis. Com muito menos profissões e associações de pessoas do mesmo sexo, o tradicional “não pergunte, não fale” estava desmoronando. Após as mobilizações em massa da primeira metade do século, muitos mais jovens se tornaram conscientes de outros como eles. Começaram a viver de forma relativamente aberta, com menos atenção da polícia ou discriminação no emprego. A descriminalização avançava em todo o mundo ocidental.
As tentativas primitivas de “curar os homossexuais” renderam-se à conscientização científica de que há uma orientação vitalícia relativamente estável subjacente ao “ser assim” e nenhuma patologia intrínseca a ele. A ciência estava convencida disso nos anos 1950 e só vem se tornando mais clara desde então. Além disso, modelos permanentes de vida decente – casados, solteiros, com filhos – estavam se tornando disponíveis. Em suma, para gays e lésbicas, pelo menos, o éter social estava inimaginavelmente mais saudável.
Enquanto isso, o espaço clerical seguro, com a sua “hipocrisia” (comparativamente) suave e informal, em comparação, tornou-se um espaço cada vez mais inseguro. A postura “não pergunte, não fale” não é particularmente cruel quando ela é simplesmente o modo como as coisas são para toda a sociedade. Mas, quando ela se transforma em uma imposição cada vez mais explícita sobre um pequeno grupo em meio a uma crescente abertura ao redor, estamos nos encaminhando para uma armadilha artificialmente construída, até porque aqueles que estão do lado de fora podem ver cada vez mais claramente aquilo que aqueles que estão dentro tem que fingir que não está lá. Pensemos na imposição politicamente inspirada de um já socialmente moribundo “não pergunte, não fale” sobre as nossas Forças Armadas nos anos 1990. O resultado foi um aumento em perseguição, demissões, medo, espírito de vingança, perda de talentos e poder para os fanáticos.
No entanto, a maior ameaça ao antigo espaço seguro veio quando a ciência chegou ao encontro da evidência da vida das pessoas: que uma orientação ao mesmo sexo é uma variante minoritária mais ou menos estável, que ocorre regularmente e não patológica da condição humana. Como deve ter sido a vida de um clérigo gay da geração de Paulo VI? Você viveu as mudanças sociais e psicológicas do século e se regozija, como fez o Concílio Vaticano II, com tudo o que foi positivo nos anos do pós-guerra. No entanto, ao mesmo tempo, o “lado inferior” do mundo anterior (identificação da qual você pode ter fugido durante décadas e por boas razões morais) estava prestes a se mover não apenas para o céu aberto, no sentido carnavalesco dos movimentos Stonewall e Pride subsequentes, mas dentro da alma, como algo que você simplesmente era.
Não é nenhuma surpresa que o primeiro uso público da palavra “homossexual” por parte das Congregações romanas ocorreu em alguns breves parágrafos de Persona humana, uma “declaração sobre alguns pontos de ética sexual”, emitida pela Congregação para a Doutrina da Fé em 1975, cujo principal objetivo era reiterar que nenhum entendimento do “ser” deveria ser permitido para justificar “atos”. Embora a conexão não tenha sido totalmente explicada em 1975, a razão subjacente é clara: a manutenção do mal dos “atos” depende do status do “ser assim” como algo negativo ou anômalo. Pois se o “ser” era uma variante minoritária não patológica, então, é claro, os “atos” poderiam ser, em algumas circunstâncias, uma expressão apropriadamente humana.
Em 1986, a lógica precisava se tornar mais explícita, e assim, em outro documento da Congregação para a Doutrina da Fé, a “tendência homossexual” tinha que ser descrita como “objetivamente desordenada” a fim de manter a natureza “intrinsecamente má” dos atos (“Carta aos bispos da Igreja Católica sobre o atendimento pastoral das pessoas homossexuais”, também conhecida pelas suas palavras iniciais: Homosexualitatis problema [“O problema do homossexualismo”]).
E, com essa descrição, uma dedução apriorística foi feita para superar qualquer aprendizado científico humano, e o espaço outrora seguro havia se tornado uma armadilha definicional para qualquer um que tivesse entrado nele e para todos aqueles que entrassem nele a partir de então. Deixe-me explicar. Pensemos naqueles que chegaram ao mundo do seminário entre, digamos, 1960 e 1990. Eles devem ter passado por uma mudança na compreensão de um mundo em que os “atos” eram maus, e “ser” significava “não ser como eles”, a um mundo no qual “ser” significava “na verdade sou como eles, e daí?” e os “atos” eram bastante triviais.
Dado que alguns percebem que são gays já quando estão na pré-puberdade e outros somente na meia-idade, podemos imaginar que um número significativo de homens jovens, inseguros de si mesmos e formados, pelo menos em parte, por atitudes tradicionais que os colocam sob o risco do inferno, entram no seminário quase acreditando no seu “ser desordenado”. No fim, eles encontram outros como eles, e pode acontecer que, somente anos após a ordenação, através do amor ou da aprendizagem, eles descubram que não há nada de errado com o seu “ser”.
Se eles descobrem cedo o suficiente que aquilo que o seu “empregador” lhes ensinou sobre eles mesmos é errado, eles podem ir embora. Se isso ocorre durante o seu crescimento pessoal e profissional como padres, eles podem perceber que seus compromissos com a disciplina do celibato ou com os votos não são válidos. Pois tais compromissos foram assumidos enquanto aqueles que faziam isso estavam sob a influência de um falso ensinamento sobre eles mesmos, um ensinamento imposto a eles pelo seu “empregador” como se viesse de Deus. Então, amando o sacerdócio, eles continuam seu trabalho (alguns são velhos demais para poderem ir embora sem penúria) e podem manter relacionamentos discretos em sã consciência.
Assim, temos a bizarra situação em que um ensinamento que, contextualmente, ajudou originalmente gays genuinamente piedosos que queriam viver castamente (e eu imagino que pelo menos alguns dos Santos Padres recentes eram desse tipo) se converteu pela “realidade dos fatos” (e pela tentativa teológica de resistir a eles) em uma armadilha. Aqueles que se tornam relativamente saudáveis através da sua experiência com outros como eles mesmos em seu pertencimento eclesial aprendem discretamente a ignorar tanto um ensinamento baseado em uma falsidade sobre quem eles são, quanto os compromissos formais feitos sob a ilusão desse falso ensinamento, e isso se torna funcional para que todos possam fechar os olhos.
O mesmo ensinamento é funcional para aqueles que são extremamente insalubres (reforçando sua recusa a aceitar quem eles são) e para os carreiristas oportunistas, permitindo que estes últimos tipos se tornem os aliados mais vociferantes dos celibatários veteranos genuinamente piedosos, porém assustados, na manutenção da aparência do velho mundo. Isso não se parece muito com o clero veterano, digamos, de 1965 a 2013?
Tangencialmente, espero que isso também indique por que esse ilusório mundo fortemente gay tem sido tão inútil ao lidar com o abuso infantil. A postura “não pergunte, não fale” pode funcionar como uma forma de misericórdia genuína entre homens gays que não querem jogar pedras em um telhado de vidro em que a suposição é a de relacionamentos que podem ser ilícitos de acordo com as regras da casa, mas não são nem ilegais nem patológicas.
Mas essa postura também pode ser usada (e certamente foi) como uma cobertura contra a chantagem por parte daqueles que têm um comportamento genuinamente ilegal e patológico para esconder. A combinação desses dois levou a uma incapacidade de distinguir, na prática, entre homens gays “safadinhos” e pedófilos “criminosos”. O instinto a não querer saber, especialmente se pessoas mais velhas estão envolvidas, é muito forte, como demonstrou o desastre chileno.
O que deve ser feito e o que está acontecendo silenciosamente? A primeira coisa é que os leigos católicos devem ser encorajados em sua crescente aceitação de que ser gay é uma parte normal da vida – apesar da feroz resistência de alguns elementos do “armário” clerical. A suposta conversa do Papa Francisco com Juan Carlos Cruz – um homem gay abusado em sua juventude pelo padre chileno Fernando Karadima – é uma joia: “Veja, Juan Carlos, o papa ama você desse jeito. Deus o fez assim e ele ama você assim”. As palavras do papa levaram a muita verborragia e a muitas explicações por parte daqueles que percebem que, no momento em que você aceita que “Deus fez você assim”, o jogo acabou no que diz respeito ao “mal intrínseco” dos atos.
No entanto, apenas quando mensagens cristãs diretas, e obviamente verdadeiras, como as de Francisco se tornam normais entre os leigos é que a honestidade pode se tornar a norma entre o clero. Caso contrário, continuaremos com a situação absurda e farisaica em que há uma única regra para o clero (“Não importa o que você faça, desde que não diga isso em público ou desafie o magistério”) e outra para os leigos, repassada como “o ensinamento da Igreja” e brutalmente aplicada, por exemplo, entre funcionários de escolas, organistas paroquiais, treinadores esportivos e afins.
Somente quando estiver claro (como está cada vez mais) que os leigos confiam bastante na visão (obviamente verdadeira) de que “se você é assim, então aprender a amar apropriadamente vai fluir normalmente a partir disso, e não apesar disso” é que será possível mudar, sem escândalo, as regras formais relativas ao clero. Eu trago isso à tona porque muito se falou sobre a resposta de Francisco aos bispos italianos quando ele foi perguntado se eles deveriam admitir homens gays no seminário: “Se vocês tiverem alguma dúvida, não”.
Isso foi lido como se Francisco fosse contra homens gays. Eu li o comentário de forma diferente: a de um homem sábio e misericordioso dirigindo-se a um grupo de homens, dos quais uma proporção significativa é gay, e dizendo-lhes, com efeito, que somente aqueles que são capazes de honestidade ao lidar com seus futuros ofícios devem induzir pessoas como eles mesmos ao clero: “Você vai vacilar ao se posicionar publicamente em defesa da honestidade do jovem? Se assim for, não torne o futuro dele dependente da sua covardia”.
Parece-me que a misericórdia do Senhor, que já alcança os leigos como alívio e como alegria, está começando a perfurar o “armário” clerical na forma de uma demanda firme, mas gentilmente sustentada, por uma veracidade penitencial em primeira pessoa, enquanto somos dolorosamente libertados da armadilha sistêmica. A alternativa, como Francisco certamente sabe, é continuar com mentirosos induzindo mentirosos a um jogo, com o “armário” formando e reforçando o “armário”. E todos nós descobrimos que a vinha do Senhor está sendo levada muito apropriadamente de nós, seus inquilinos aterrorizados, e posta nas mãos de outros, determinados não pela orientação sexual, estado civil ou gênero, que produzirão seus frutos.
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A armadilha da mentira: por que os padres gays podem falar sinceramente sobre sua sexualidade. Artigo de James Alison - Instituto Humanitas Unisinos - IHU