05 Mai 2017
“A Amoris Laetitia, recuperando justamente o que havia sido excluído e julgado como errôneo pela Veritatis splendor, retorna finalmente para o caminho da tradição. E nos sugere, com fineza e benevolência, que não permanecemos na tradição parando na sacada ou no escritório, mas saindo pelas ruas. Até mesmo às custas de sujar os sapatos com a lama da vida.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
O texto foi publicado por Come Se Non, 03-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No coração do texto da Amoris laetitia, não há simplesmente uma virada na pastoral matrimonial e familiar, mas sim uma profunda e precisa releitura da tradição moral da Igreja Católica.
Gostaria de tentar ilustrar de modo simples um dos pontos mais evidentes de recuperação da tradição que a Amoris laetitia realiza com grande força e com verdadeira profecia. Antes, porém, quero esclarecer um ponto decisivo. Ao contrário do que vem sendo repetido pelos setores mais relutantes em aceitar tal virada, não se trata de uma descontinuidade que a Amoris laetitia introduz na tradição moral da Igreja. Em vez disso, é preciso reconhecer abertamente o contrário.
A descontinuidade tinha sido introduzida por alguns documentos do século XX – que vão da Casti connubii à Humanae vitae, passando pela Veritatis splendor – que tinham introduzido um “maximalismo moral” totalmente inédito até então, com uma grande forçação na leitura das fontes tradicionais e em relação ao qual a Amoris laetitia opera um verdadeiro ato de “reconciliação com a tradição”. Assim como tinha sido o Concílio Vaticano II, a Amoris laetitia, seguindo os seus passos, deve ser lida principalmente como “serviço à tradição”.
Para compreender esse ponto visceral em vista a uma adequada recepção do texto da Amoris laetitia, devemos partir de um dos pontos-chave do seu magistério, ou seja, da luminosa distinção entre “lei objetiva” e “circunstâncias subjetivas”. Todos a exortação apostólica repousa, desde os seus primeiros números, sobre a clara consciência da superioridade do tempo sobre o espaço, com a consequência de que “nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais” (AL 3).
Com base nessa honesta consideração, a Amoris laetitia elabora, no capítulo VIII, uma compreensão das “feridas da família”, em que se propõe uma relação entre “normas” e “discernimento”, que recupera uma antiga sabedoria eclesial, em relação à qual uma “moral fria de escritório” (AL 312) tinha pretendido se distanciar de modo drástico e maximalista.
O ponto central dessa reaquisição pode ser dito de forma positiva ou negativa. Consideremos ambas as exposições:
a) positiva: “A Igreja possui uma sólida reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes. Por isso, já não é possível dizer que todos os que estão numa situação chamada ‘irregular’ vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante” (AL 301);
b) negativa: “É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir de uma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isso não basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta de um ser humano” (AL 304).
Essa compreensão decorre de um “lugar comum” clássico da teologia moral, que a Amoris laetitia apresenta com grande autoridade mediante as palavras de São Tomás (S. Th., I-II, 94, 4). Tal princípio pode ser chamado de “indeterminação do particular” e soa no texto de Tomás – dedicado à pergunta “parece que a lei natural não é a mesma para todos” – com estas palavras: “Sed ratio practica negotiatur circa contingentia, in quibus sunt operationes humanae, et ideo, etsi in communibus sit aliqua necessitas, quanto magis ad propria descenditur, tanto magis invenitur defectus”, e que a Amoris laetitia explica deste modo iluminador: “É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem transcurar, mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares” (AL 304).
Aqui, a Amoris laetitia retoma um princípio clássico do direito – que Triboniano tinha elaborado na corte de Justiniano – sobre a “poikilia” da realidade histórica, nunca totalmente capturável por uma norma geral. E é significativo que esse seja um forte contrapeso à tendência racionalista, imposta pela codificação napoleônica, com a qual a tradição cristã também sofreu no século passado.
A partir dessa compreensão totalmente tradicional da relação entre lei e discernimento, surgem, no campo da teologia matrimonial, uma série de consequências muito claras, que abrem espaços novos para a prática e a teoria:
- “... é possível que uma pessoa, no meio de uma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja” (AL 305);
- “... é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia, dando lugar à misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível. (…) Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objetiva, não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada” (AL 308).
Uma geração antes, em 1993, o texto de uma encíclica de João Paulo II, Veritatis splendor, dedicada a “algumas questões fundamentais no ensinamento moral da Igreja”, dedicava ao mesmo assunto uma abordagem que não seria um exagero definir como “diametralmente oposta”.
De fato, se lermos os números 79-83, dedicados ao tema do “intrinsece malum”, vemos em ação uma leitura de Tomás e da tradição enrijecida em um racionalismo maximalista extremamente perigoso. Seguimos em síntese o raciocínio da Veritatis splendor nesta delicada passagem:
- é suficiente a consideração do objeto de um ato humano para definir moralmente tal ato como mau, visto que “o elemento primário e decisivo para o juízo moral é o objeto do ato humano, o qual decide sobre o seu ordenamento ao bem e ao fim último que é Deus” (VS 79);
- “há objetos do ato humano que se configuram como ‘não ordenáveis’ a Deus, porque contradizem radicalmente o bem da pessoa, feita à Sua imagem” (VS 80);
- na tradição moral da Igreja, os atos humanos que se orientam a tais objetos “foram denominados ‘intrinsecamente maus’ (intrinsece malum): são-no sempre e por si mesmos, ou seja, pelo próprio objeto, independentemente das posteriores intenções de quem age e das circunstâncias” (VS 80);
- pretende-se – com inescrupulosa hermenêutica – fazer coincidir essa definição maximalista dos atos ilícitos com a Gaudium et spes 27, que elenca as diversas formas de atentado à dignidade da pessoa humana (cf. VS 80);
- acrescenta-se, de modo certamente mais coerente, uma referência à Humanae vitae e às “práticas contraceptivas pelas quais o ato conjugal se torna intencionalmente infecundo” (VS 80);
- deduz-se daí que “as circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar um ato intrinsecamente desonesto pelo seu objeto num ato ‘subjetivamente’ honesto ou defensível como opção” (VS 81).
O resumo, evidentemente duro, mas fiel, dessa posição ilustra bem as suas consequências “maximalistas”: ou seja, a aplicação da “lei objetiva” – ou da norma sobre o objeto da intenção – pode prescindir totalmente da consideração das “intenções ulteriores” e das “circunstâncias” referentes ao sujeito.
As consequências dessa abordagem são duas:
a) por um lado, se o objetivo é o bem da pessoa, “os atos, cujo objeto é ‘não ordenável’ a Deus e ‘indigno da pessoa humana’, opõem-se sempre e em qualquer caso a este bem. Neste sentido, o respeito das normas que proíbem tais atos e que obrigam semper et pro semper, ou seja, sem nenhuma exceção, não só não limita a boa intenção, mas constitui mesmo a sua expressão fundamental” (VS 82);
b) Por outro, tal leitura maximalista não consegue compreender as boas razões da tradição, que soube conciliar sabiamente as razões do objeto com as circunstâncias do sujeito. De fato, ela tira daí a consequência de que “se deve rejeitar como errônea a opinião que considera impossível qualificar moralmente como má segundo a sua espécie a opção deliberada de alguns comportamentos ou de certos atos, prescindindo da intenção com que a escolha é feita ou da totalidade das consequências previsíveis daquele ato para todas as pessoas interessadas” (VS 82).
Na encíclica de 1993, lê-se uma preocupação fundamental com uma determinação racional da moralidade do agir humano que desmente séculos de cuidadosa distinção entre lógicas objetivas e lógicas subjetivas: a demonização do sujeito moderno, da sua consciência e da sua história não permite ler serenamente as fontes. Agostinho e Tomás são subvertidos e tornados irreconhecíveis nessa preocupação apologética e antimodernista, que cai no mesmo erro que quer combater. Ou seja, em uma leitura racionalista e intelectualista da tradição, que, idealizando a realidade se imuniza da relação com ela. Essa “moral fria de escritório” é superada aberta e serenamente pela Amoris laetitia, que a julga como uma perspectiva “mesquinha” (AL 304).
A Amoris laetitia, recuperando justamente o que havia sido excluído e julgado como errôneo pela Veritatis splendor, retorna finalmente para o caminho da tradição. E faz isso não apenas ouvindo os textos antigos com um ouvido sensível, mas também pondo-se à escuta da experiência dos homens e das mulheres. E nos sugere, com fineza e benevolência, que não permanecemos na tradição parando na sacada ou no escritório, mas saindo pelas ruas. Até mesmo às custas de sujar os sapatos com a lama da vida.
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Amoris laetitia: além da Veritatis splendor e aquém do maximalismo moral. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU