13 Mai 2010
Criado pela jornalista e ativista canadense, Naomi Klein, o conceito de capitalismo de desastre revê questões relacionadas à obtenção de lucro em meio à calamidade. Segundo a professora do Instituto de Economia da Universidade do Rio de Janeiro, Vânia Cury, “essa exploração das situações de crise afetam as coletividades humanas, nos paralisa diante do medo, e nos torna impotentes diante da realidade”. Em conversa, por telefone, com a IHU On-Line, Vânia analisa o recente livro de Naomi Klein “A doutrina do choque: a Ascensão do Capitalismo de Desastre” e reflete sobre situações de conflito que permeiam a atualidade.
Segundo a professora, as pessoas já estão prontas para mudar em relação à situação do capitalismo atual e têm muita vontade de fazer isso. “A grande contribuição do livro de Naomi Klein, a meu ver, é exatamente essa. Embora ela faça um relato que pode nos parecer extremamente pessimista, dadas as condições que ela analisa o desenvolvimento do capitalismo, mostra também que há diversas formas de reação se esboçando no mundo. Elas são muito fragmentadas, estão desconectadas e espalhadas, mas há sim algumas iniciativas que vão sendo feitas no sentido de reunir essas forças e dar a elas uma consistência mais forte e mais integrada”, diz.
Vânia Maria Cury possui graduação em História pela Universidade Federal Fluminense, mestrado e doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente, é professora aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Para começar, a senhora pode nos explicar qual a ideia do termo “Capitalismo de desastre”?
Vânia Cury – O termo foi cunhado pela jornalista Naomi Klein, que desenvolve uma análise muito profunda e bem detalhada no livro “A doutrina do choque: a Ascensão do Capitalismo de Desastre”, publicado recentemente. Ela mostra que, na fase atual em que o capitalismo se encontra, o que acontece é uma exploração das situações de crise, de calamidade pública e de desastre, que ameaçam e afetam coletividades humanas para que o capital tire proveito do medo, que toma conta das pessoas e grupos sociais, para obter lucros cada vez maiores.
Um dos exemplos que Naomi usa é o tsunami, que arrasou uma parte significativa das praias do sudeste asiático. O que se viu foi que a recuperação daquelas regiões afetadas pela onda foi totalmente determinada pelos interesses lucrativos dos grandes grupos econômicos que ali se instalaram imediatamente após a catástrofe. Eles vêm para reconstruir e reorganizar tudo o que foi destruído. Neste caso, foi um desastre natural, mas Naomi trata também de desastres provocados pelo homem, como guerras, conflitos e rebeliões. Outro exemplo que ela usa e trata detalhadamente é o furacão Katrina, nos Estados Unidos, que também provocou uma desorganização muito grave na cidade de Nova Orleans, afetando sobretudo os bairros de população negra e pobre. Lá, também, da mesma forma que em outras oportunidades analisadas em seu livro, a recuperação é pautada pelos interesses lucrativos daqueles que irão explorar novas condições originadas pelo desastre.
O Katrina fez com que grande parte dos terrenos que foram afetados acabasse resultando na expulsão da população que lá morava originalmente. Essas áreas foram reformuladas com a sua conveniente transformação em bairros de classe média, que foram programados e reconstruídos segundo os interesses do capital imobiliário local e que trouxeram lucros espetaculares.
IHU On-Line – Isso aconteceu também em países como o Haiti, que viveu intervenções de diversos países em função dos terremotos de janeiro deste ano?
Vânia Cury – Naomi Klein não aborda o caso do Haiti em seu livro, mas aborda em seu site, onde mantém atualizadas todas as suas opiniões, pesquisas, entrevistas e trabalhos. Naomi é uma ativista política e uma intelectual incansável. E faz este paralelo com o terremoto no Haiti. Ela considera não o desastre em si como uma manifestação do desejo do grande capital nas suas mais variadas formas, mas mostra que a recuperação, mais uma vez no caso do Haiti, terá, na sua dianteira, interesses econômicos solidamente organizados que irão determinar a maneira pela qual essa recuperação vai se dar, trazendo para eles lucros fabulosos. Isso tudo sempre em detrimento dos reais interesses da população que vivia no local afetado pelo desastre.
"A recuperação, mais uma vez no caso do Haiti, terá, na sua dianteira, interesses econômicos solidamente organizados que irão determinar a maneira pela qual essa recuperação vai se dar, trazendo para eles lucros fabulosos" |
A mesma coisa Naomi faz com relação às grandes áreas litorâneas do sudeste asiático. Estas tinham uma ocupação circular de pequenas comunidades de pescadores artesanais, com famílias muito pobres e que subsistiam de pequenas atividades e foram subitamente deslocadas do seu habitat natural. Esse habitat foi transformado em reservas para a construção de grandes resorts, clubes e parques temáticos, que trarão lucros fabulosos para os investidores da área de turismo e imobiliário. Essas populações perdem completamente seu meio de vida tradicional e são jogadas novamente nas periferias das grandes cidades. São, mais uma vez, expropriadas das suas condições de vida bastante antigas.
IHU On-Line – O Brasil vive ou já viveu dentro dessa ideia de capitalismo de desastre?
Vânia Cury – Seguindo a linha de análise de Naomi Klein, sim. Ela analisa todo o período de ditaduras militares na América Latina como uma das estratégias mais clássicas e passíveis de serem estudadas da doutrina do choque, do capitalismo de desastre. Neste caso, não é o desastre natural, mas o desastre causado política e militarmente, mas pode ser uma guerra, tal qual aconteceu no Iraque. Ela passa boa parte do livro mostrando como a guerra também facilita o controle, pelo grande capital, de áreas que até então ele não controlava. No caso das ditaduras latino-americanas, aconteceu a mesma coisa. Aquela situação de choque, de medo coletivo e social imposto pela força militar, repressão, prisão, tortura e exílio, enfraquece a resistência da população e facilita, portanto, que o capital assuma o controle de uma série de atividades e situações que até então não controlava, muitas vezes, por força da resistência popular.
IHU On-Line – Naomi vê bastante a questão dos Estados Unidos. Podemos dizer que o ápice desta ideia de “Capitalismo de desastre” vem do governo Bush?
Vânia Cury – Não há dúvida nenhuma de que o governo Bush é o ápice de uma situação que, no entanto, ele não criou. Ele apenas se aproveita, recrudesce, leva a extremos essa condição de doutrina do choque, tanto internamente, quando ele, em nome das leis de segurança nacional da preservação dos direitos dos EUA, que foram agredidos pelo 11 de setembro, usa esse ataque terrorista para desencadear uma reação violenta e de repressão aos direitos sociais, de organização e liberdade, que a população americana sempre valorizou muito em sua história. Essa era a imagem que eles vendiam para o mundo, de um país democrático e radicalmente livre, onde ditaduras não floresceram, regimes de exceção nunca tiveram lugar.
No entanto, a partir de 11 de setembro de 2001, todas essas virtudes do regime democrático norte-americano foram colocadas em cheque pelo advento de uma nova doutrina de segurança nacional, que colocava a proteção ao Estado acima de todas as formas de proteção e liberdade do indivíduo. Isso é algo novo na história dos EUA. Se pegarmos os dois séculos que o país tem de história da construção de uma cultura democrática, o paradigma do que é um Estado de direito no ocidente, essas situações de exceção criadas por Bush realmente tiveram um impacto extraordinário na história recente do país.
IHU On-Line – No caso de Santa Catarina, depois das chuvas e do próprio ciclone Catarina, bilhões de reais saíram dos cofres públicos e se somaram com as doações de solidariedade popular foram investidos na reconstrução da infraestrutura da cidade. Este é um exemplo de “Capitalismo de desastre”?
Vânia Cury – Sim, e esta é mais uma manifestação da doutrina do choque. Diante do choque, da calamidade e do desnorteamento que abala todos os seres humanos, essas empresas e os interesses capitalistas rapidamente assumem o controle e passam a tirar todas as vantagens daquela situação. Se pararmos para pensar, lembraremos, na nossa história, várias situações em que esse fenômeno está acontecendo, tanto no Brasil como fora dele.
"Diante do choque, da calamidade e do desnorteamento que abala todos os seres humanos, essas empresas e os interesses capitalistas rapidamente assumem o controle e passam a tirar todas as vantagens daquela situação" |
IHU On-Line – Como a questão da sociedade do medo vai ao encontro da ideia de capitalismo de desastre?
Vânia Cury – Naomi Klein considera que essas questões andam juntas, porque ao incutir o medo nas pessoas, e esse medo é muito maior quando assume uma proporção coletiva, ele pode ser muito vantajoso para os interesses particulares, seja de uma empresa ou indivíduo. Sabemos que os ditadores, que atuaram amedrontando as pessoas, tiraram grandes proveitos dessa situação. O medo é uma forma de paralisação, e a paralisia nos deixa impotentes diante da realidade. Não conseguimos reagir, e quando isso acontece abrimos o campo para que aquele que consegue reagir ocupe todos os espaços. Essas duas questões não andam separadas, por isso Naomi diz que há todo um trabalho ideológico permanente sendo colocado para as pessoas. Ela usa o exemplo das gripes e o medo que as pessoas ficam de contrair uma doença. Voltamos a uma época de epidemias assustadoras, que matam em massa. Naomi afirma que isso tudo vai deixando as pessoas extremamente vulneráveis e, ao se tornarem assim, abrem o flanco para que os altos interesses capitalistas envolvidos assumam o controle da situação.
IHU On-Line – Depois da crise financeira, muito se falou em crise do capitalismo. O capitalismo de desastre é um novo capitalismo, em sua opinião?
Vânia Cury – Na verdade o capitalismo de desastre faz parte da crise. Não acredito que exista um novo capitalismo, o capitalismo é o mesmo. Ele vai amadurecendo, avançando sobre áreas que antes não controlava. Este não é um novo sistema, é um sistema aperfeiçoado. O capitalismo de desastre é uma resposta à crise. Ele começou a viver, nos anos 1990, o excesso de neoliberalismo e de desregulamentação, que acabou gerando uma crise de proporções extraordinárias. Quando se chega a uma situação de impasse, a saída é não reformar o capitalismo, não fazê-lo retroceder aos limites antigos, fazer com que ele seja controlado pelo Estado, regido pelos interesses sociais. Isso não aconteceu, o que houve diante da crise que se colocou pelo excesso de desregulamentação do capital foi reforçar essa desregulamentação, usando a doutrina do choque. Este é um instrumento para a exacerbação e aprofundamento da lógica perversa do desenvolvimento capitalista, tal qual vínhamos vivendo desde os anos 1980.
IHU On-Line – Em relação à ideia de crise do capitalismo, podemos dizer que as crises sociais facilitam a adoção de medidas econômicas impopulares? A senhora pode nos dar exemplos disso?
Vânia Cury – Com certeza. A crise pensada nesse sentido, não uma crise social, mas uma crise de desastre, como coloca Naomi Klein, seja um desastre natural, manifestações brutas da natureza que o homem não consegue controlar, ou provocado, como rebeliões, golpes de Estado e guerras, como vimos no Afeganistão e no Oriente Médio. Nestas situações, temos a repetição do padrão, diante da instabilidade causada pelo evento, seja natural ou provocado, o capitalismo redobra seu esforço para ampliar o controle que exerce sobre aquela sociedade. O remédio que é dado pelo sistema dominante aos sintomas da crise é sempre mais do mesmo. Ao invés de tentar dar outra solução, criar uma contrapartida ao modelo que está sendo implementado, o que se faz é aumentar o grau de vulnerabilidade da sociedade para impor medidas mais duras daquele mesmo remédio que já se tomava anteriormente.
IHU On-Line – Então, hoje as catástrofes naturais são “desculpas” para impor um reordenamento a partir da violência do Estado?
Vânia Cury – Desculpas não, são oportunidades primorosas enxergadas por esses grupos capitalistas dominantes altamente relacionados dentro dos Estados modernos. Naomi mostra isso com clareza nos Estados Unidos. Lá se tem o complexo industrial militar, a indústria petrolífera e de guerra, que hoje são forças fantásticas dentro do Estado americano, que conduzem e controlam grande parte da política dos EUA. Eles se relacionam com o mundo, baseados, fundamentalmente, na expansão dos interesses desses grandes grupos econômicos.
IHU On-Line – A senhora acha que as pessoas estão prontas para lutar por mudanças em relação à situação do capitalismo atual?
Vânia Cury – Acho que as pessoas têm muita vontade de fazer isso. A grande contribuição do livro de Naomi Klein, a meu ver, é exatamente essa. Embora ela faça um relato que pode nos parecer extremamente pessimista, dadas as condições que ela analisa o desenvolvimento do capitalismo, mas mostra também que há diversas formas de reação se esboçando no mundo. Elas são variadas, infelizmente não temos hoje, na visão dela, um elemento que seja capaz de reunir todos esses esforços. Eles são muito fragmentados, estão desconectados e espalhados pelo mundo, mas há sim algumas iniciativas que vão sendo feitas no sentido de reunir essas forças e dar a elas uma consistência mais forte e mais integrada.
"A Internet é uma das formas mais importantes de resistência e organização desses movimentos, tanto no plano local quanto no mundial, que pretendem interferir nos rumos da humanidade" |
Um dos veículos de instrumento para isso tem sido o Fórum Social Mundial, um espaço de debate, discussão, para onde são levadas essas demandas sociais. Há outros movimentos, como a Via Campesina, por exemplo, e o próprio Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Brasil que têm muita importância lá fora, só não têm aqui, pois são criminalizados pela imprensa. Existem movimentos jovens, como o Creative Commons, no Brasil, e grupos se criando a partir da Internet. Naomi acha que, talvez, vá demorar um tempo, mas já podemos ver que há formas de resistências sendo montadas, há grupos interessados em reagir contra essa situação, mas, para saber onde isso dará, teremos que esperar. A Internet é uma das formas mais importantes de resistência e organização desses movimentos, tanto no plano local quanto no mundial, que pretendem interferir nos rumos da humanidade.
IHU On-Line – A partir dessa análise do livro de Naomi Klein, que cultura é gerada?
Vânia Cury – Acho que é uma forma de enfrentamento, e talvez uma das mais interessantes. Este é um dos calcanhares de Aquiles do Estado atual de organização da economia, pois, até agora, apesar de todas as tentativas que estão sendo feitas, não se mostrou viável uma forma de controle dessas redes sociais que vão se formando na Internet. Talvez esse seja um caminho interessante mesmo, não sei como isso irá evoluir, mas não tenho dúvida de que ele é um ponto de atrito e conflito para ordem dominante.
IHU On-Line – A senhora concorda com a ideia de que "se o clima fosse um banco, ele seria salvo"?
Vânia Cury – Acho que é bem provável, pois não há nenhum setor que tenha recebido mais apoio e cuidados no mundo hoje do que o setor financeiro. Nunca falta dinheiro, nunca há entraves de tipo jurídico, todos sempre estão dispostos a acudir as finanças, coisas que não vemos acontecer com relação ao ambiente, ao clima e aos recursos naturais, dos quais a nossa vida depende diariamente. Quando acontece algo com o sistema financeiro, todos ajudam. É como se pensassem: “Se isso falhar, estaremos mortos”. E se esse sistema falhar é pouco provável que toda a humanidade esteja morta. Esse é o poder que o setor financeiro tem de tornar os seus interesses os mais importantes do mundo. Eles exercem esse poder de várias maneiras, inclusive pelas chantagens. Através de ataques especulativos, eles podem jogar um país na miséria. Inclusive já fizeram isso, no passado, com a Argentina, Rússia, México, Ásia e tentaram fazer com o Brasil. Eles prometem, cumprem, tiram todos os recursos de uma vez, fazem jogatina na bolsa, ameaçam com ataques especulativos, e colocam os governos em uma situação de muita fragilidade. Não se pode correr o risco de levar o país à bancarrota. Toda vez que se provoca esse risco, se coloca uma situação de miséria social e desagregação política muito graves.
IHU On-Line – A senhora acredita que um novo modelo econômico mais sustentável terminaria com essa ideia de “Capitalismo de desastre”?
Vânia Cury – Acredito que sim. Se esse modelo fosse implantado com mais responsabilidade, com maior controle da sociedade sobre a origem e destino do dinheiro, acho que estaríamos muito mais livres dessas situações tão incômodas que vêm se repetindo. Nas últimas décadas, isso vem se tornando repetitivo, toda hora há uma calamidade, uma catástrofe e isso é muito grave. É uma sequência que começa a despertar nossa reflexão. Naomi Klein e outros pensadores começam a desvendar as questões que surgem.
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"O capitalismo de desastre é uma resposta à crise". Entrevista especial com Vânia Cury - Instituto Humanitas Unisinos - IHU