26 Julho 2007
Mallarmé foi o poeta e crítico literário francês que inspirou a tese produzida por André Dick, colega da equipe de jornalismo do Instituto Humanitas. Seu trabalho, desenvolvido durante o doutorado em Literatura Comparada, resultou em "Constelação, silêncio, melancolia. A quase-arte de Mallarmé". Na entrevista a seguir, concedida pessoalmente à IHU On-Line, André fala sobre sua tese, analisando o trabalho do poeta francês desde sua musicalidade até sua literatura lúcida. "Constelação, silêncio, melancolia” é uma criação feita a partir de dois versos, um do poema “Salut” (“Solitude, récif, étoile”), e outro do poema “Au seul souci de voyager” (“Nuit, désespoir et pierrerie”). Estas “constelações-arquipélagos” (...) mostram como Mallarmé, mesmo no final do século XIX, já antevia uma linguagem mais fragmentada, uma ruptura com o verso padronizado, que se tornaria mais comum com as vanguardas posteriores do século XX", afirma André.
André Henrique Dick é graduado em Letras pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Seu mestrado e doutorado, realizados na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foram na área de Literatura Comparada. Poeta e ensaísta, Dick é autor dos livros de poesia Grafias (2002) e Papéis de parede (2004). Em colaboração com Fabiano Calixto, organizou A linha que nunca termina (2004), com ensaios, poemas e depoimentos sobre o poeta Paulo Leminski.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - A poesia e a prosa de Mallarmé eram caracterizados pela musicalidade, pela experimentação gramatical e por um pensamento refinado e repleto de alusões, que podem resultar em um texto às vezes obscuro. Como você chegou à definição de “quase-arte” na obra do poeta francês?
André Dick - A obra de Mallarmé é caracterizada, quase sempre, como hermética, o que implica, como você comenta, em considerarem o seu trabalho como obscuro. Esta característica não é considerada apenas dele, mas da chamada poesia moderna, sobretudo aquela que compreende os poetas a partir do simbolismo, movimento ao qual são ligados os “malditos” Baudelaire (1) e Rimbaud (2). No trabalho, visualizo esta questão a partir da obra Estrutura da lírica moderna, de Hugo Friedrich, que enxerga a poesia moderna como “desumana”, “fria”, “sem um calor e um sentimento íntimos”, “não participante” (aqui, estabelecendo-se na “torre de marfim”, para se afastar dos problemas reais), não aspirando a nenhuma “elevação”. Sobretudo a poesia de Mallarmé representaria a potencialidade desses elementos.
O romanista alemão está claramente equivocado, pois ele separa a vida empírica da linguagem, considerando que os poetas que se dedicam a esta segunda fogem da realidade, constituindo um universo à parte, em que não aparecem mais figuras nem sentimentos humanos. Há, nesse sentido, um elemento que costuma ser deixado à parte dos estudos sobre poetas modernos: o da biografia. A negação a ela conduz à impessoalidade, e, nesse caso, os poetas modernos adotariam uma espécie de “inconsciente sem limites”, em que tudo converge para o “caos” e para uma “fantasia imperiosa” – como se essas características precisassem ser desaprovadas e sintetizassem suas obras. Friedrich considera que Mallarmé é um poeta desumano e obscuro, portanto, porque em sua poesia restam apenas escombros e fragmentos verbais. Sem dúvida, esses escombros revelam, como você observa, uma experimentação gramatical, um pensamento refinado e repleto de alusões. No entanto, as alusões, que costumam ser vistas como uma tentativa pretensiosa de o poeta fugir à mímesis, não são mais do que uma mímesis moderna, ainda baseada em Aristóteles (3), embora os estruturalistas, mais tarde, tenham vindo negá-la.
As alusões lembram o que Mallarmé disse a respeito dos objetos: “Nomear um objeto equivale a suprimir os três quartos de prazer da poesia, que é feito de adivinhar pouco a pouco: sugeri-lo, eis o sonho”. Ou seja, é necessário aludir aos objetos, não defini-los, como faziam, segundo ele, os parnasianos. Aproveitando-se, porém, da musicalidade desses, Mallarmé construiu uma poesia que pretendia estabelecer uma ligação intrínseca com o contexto em que estava inserida, no final do século XIX. O interesse pela música era caro ao Simbolismo, do qual Mallarmé é considerado criador (sem almejar essa posição), e se reproduz em outros poemas seus, a exemplo de “L’après-midi d’une faune” e “Hommage”, este dedicado a Richard Wagner (4), a quem o poeta francês homenageou com um ensaio, mesmo que sua obra estivesse mais ligada a Claude Debussy (5), que acabaria musicando o seu poema sobre o Fauno.
Nesse campo, ele queria se aprofundar o que já havia feito Baudelaire, mas de uma maneira, talvez, mais original, mais fluida: não por acaso, em seu poema Un coup de dés, considerado o seu trabalho mais revolucionário, ele dispõe algumas palavras em tamanhos diferentes, como se quisesse identificá-las como notas musicais. Mas a sua meta vai além de um possível movimento, o simbolista; ela atinge todas as épocas. O leitor, com três tipologias distintas, segue, como um maestro, a pauta musical trazido pelas palavras e versos.
Por sua vez, a “quase-arte”, a que me refiro no subtítulo do trabalho, está justamente ligado ao que Mallarmé observa no prefácio de Un coup de dés: “o que sairá daqui, nada ou quase uma arte”. Essa indefinição entre o nada e a arte suprema, barrada por um “quase”, a meu ver, revela a precariedade, no bom sentido, da poesia moderna. O poeta, com isso, não quer se estabelecer como um “porta voz” de uma mensagem superior, como havia, de forma ilusória, no romantismo, sobretudo o teórico, de Schlegel e Novalis. O poeta visto como um mediador é contestado por Mallarmé e pela poesia moderna. Do mesmo modo que, ao escrever poesia, o escritor também está lidando com outros campos, como os da pintura, da música e da filosofia (nesse sentido, também, vale a “quase-arte”, ou seja, uma arte móvel, flexível, que nunca se completa).
IHU On-Line - Mallarmé se destacou por uma literatura lúcida e obscura, ao mesmo tempo, sendo considerado um poeta difícil e hermético. Quais são as obras que demonstram o que você chama de "Constelação, silêncio, melancolia"?
André Dick - “Constelação, silêncio, melancolia” é uma criação feita a partir de dois versos, um do poema “Salut” (“Solitude, récif, étoile”), e outro do poema “Au seul souci de voyager” (“Nuit, désespoir et pierrerie”). Estas “constelações-arquipélagos”, como as chamou Augusto de Campos (6), ou estes ideogramas, na opinião do poeta Mário Faustino (7), mostram como Mallarmé, mesmo no final do século XIX, já antevia uma linguagem mais fragmentada, uma ruptura com o verso padronizado, que se tornaria mais comum com as vanguardas posteriores do século XX. Essas três palavras, a meu ver, definem a poética e a trajetória mallarmeana: a constelação não remete apenas a seu poema Un coup de dés, em que Mallarmé desenha “constelações” na página, ou seja, as palavras são vistas como signos estelares, representando-os também por meio das menções ao Setentrião, ao “êxito estelar”, mas também a outros poemas que se assemelham pela utilização de signos semelhantes (o azul, o branco, o leque, o cisne, o lago), que vão como que constituindo grupos semânticos.
Além disso, a constelação, representada pelas palavras na página em branco, pode ser entendida como uma metáfora desta página. Em meio ao estudo dos versos de Mallarmé, por isso, vemos também como está presente sua influência nas obras de alguns intelectuais franceses (como Lacan, Derrida, Barthes e Kristeva), com sua concepção da página em branco, que é muito mais do que um símbolo de neutralidade ou de mera formalidade. Esses pensadores franceses, que abordaram o tema baseado em estruturas do significante, esqueceram, por vezes, que havia algo de mais subjetivo nesse branco. Ele não é apenas o branco que fica entre as palavras dispostas na página, mas um símbolo da precariedade do sujeito humano que foi Mallarmé, em contraposição à crítica que insiste em vê-lo como autor que explora um “inconsciente sem limites” (como escreve Hugo Friedrich) e que, por isso, foge à realidade.
O silêncio é outra característica do poeta: há muitos poemas que, desenhando uma ligação com a música, lidam com esse elemento. Em sua obra, esse silêncio representa aquilo que Maurice Blanchot entendia como aceitação do falível, do precário, do inacabado e da morte – características demarcadas, sobretudo, pela linha ensaística adotada pelo poeta francês. Além de remeter aos brancos da página, às lacunas entre as palavras, de Un coup de dés, o silêncio, por isso mesmo, fala da subjetividade do poeta, o que é um elemento bastante explorado pelos estudos filosóficos e literários de Jacques Derrida (8). Para este, em sua primeira fase, a mais interessante, pois rompia os limites entre literatura e poesia, Mallarmé era uma figura indispensável: não por acaso, ele estuda um breve texto de suas Ouevres complètes, “Mimique”, contrapondo-o à idéia da “mímesis platônica”, que considerava ruim a obra poética, que era “uma cópia da cópia da cópia”, e queria expulsar os poetas da República por contarem histórias que distorciam a realidade às crianças.
Finalmente, a melancolia é um elemento visível não só em muitos poemas de Mallarmé – sobretudo aqueles que falam da morte e da mudança de estações –, mas em sua postura existencial. Tendo perdido um filho, Anatole, aos 10 anos de idade, com problemas de reumatismo, Mallarmé lhe dedicou aquela que é sua obra não-terminada, mas essencial: Pour un tombeau d’Anatole. Segundo Barthes (9), essa é a obra em que Mallarmé se mistura “ao filho” e “à mãe”. Ou seja, sua dor é representativa da dor alheia e esta nunca passa, o que confirma consideração de Julia Kristeva a respeito da melancolia: a de que o melancólico é um “habitante do Imaginário” e de que, nele, o “tempo não passa” – vivendo, no caso de Mallarmé, um luto permanente.
O que o trabalho procura, de modo geral, é mostrar (trazendo novamente Barthes à discussão) que não existe uma fuga à realidade porque esta é permeada pela linguagem, ou seja, ela é contextualizada, para inserir novamente o vocabulário lacaniano, na relação entre o Imaginário e o Simbólico. Sob esse ponto de vista adotado, o que parece uma “fuga à realidade” – de que o “eu” transcende o humano, numa espécie de introdução no sublime – é a própria consciência do inconsciente que possui o poeta, no conflito que enfrenta e estabelece entre o Imaginário e o Simbólico. Este, não por acaso, para Barthes, ajuda a estancar a “hemorragia do Imaginário”, ou seja, o que se o que se escreve é um “resíduo do real”, o Simbólico é a concretização das “personae” do poeta – e seu sentimento.
IHU On-Line - Você vê influência de amigos como André Gide, Oscar Wilde, Arthur Rimbaud e Paul Verlaine na obra de Mallarmé? Como essa influência foi manifestada?
André Dick - Visivelmente, não há influência, a meu ver, de Wilde (10) na obra de Mallarmé, embora este o tenha lido. O escritor irlandês freqüentou também o grupo de amigos que Mallarmé reunia em seu apartamento, em Paris, a fim de discutir novos rumos para a poesia. André Gide (11), por sua vez, ainda jovem, fez parte desse grupo, mas só publicou mais tarde; ele foi mais próximo de Valéry, que considerava Mallarmé seu mestre. Por sua vez, Rimbaud e Paul Verlaine (12) foram figuras decisivas para a construção do poeta em questão, uma vez que representavam, na literatura, aquilo que Mallarmé queria traduzir em versos, com uma musicalidade ousada, temas, talvez, mais fortes, visando a uma ruptura com idéias preestabelecidas, superando os limites entre poesia e prosa.
Com Rimbaud, Mallarmé chegou a se encontrar. Depois, escreveu um texto falando dele como um “cometa” que passou pela literatura antes de se extinguir e que era preciso compreender seu silêncio. Por sua vez, Verlaine foi seu amigo e o considerava muito importante para a discussão literária, pois era próximo dos jovens, aproximando gerações. Há uma conhecida “Autobiografia” de Mallarmé que não é mais do que uma carta dele a Verlaine, contando sobre sua vida, principalmente sobre sua vida de professor – da qual não gostava, pois via nesse universo a antítese da poesia. De qualquer modo, por ser um professor, mais recluso, Mallarmé nunca teve uma vida conturbada e cheia de peripécias como a que tiveram Verlaine e Rimbaud. O contrário da vida de professor era a de poeta, e não de aventureiro (como Rimbaud, no fim de sua vida). Como observou Augusto de Campos, Rimbaud é explosivo, e Mallarmé, implosivo. Era um homem mais pacato e, quando homenageou Baudelaire, falando das prostitutas e da noite parisiense, era mais por leitura de poemas e romances do que por conhecimento pessoal.
IHU On-Line - A crise do verso anunciada por Mallarmé pode apontar para o fim da poesia como arte verbal, com utilização das tecnologias, ou ainda é possível a experimentação no poema-texto?
André Dick - A crise do verso foi bastante propagada pelo movimento da poesia concreta, nos anos 1950, e isso a aproximou da utilização das tecnologias e da experimentação com o poema-texto, que era o objetivo, afinal, dos irmãos Campos (Haroldo e Augusto) e de Décio Pignatari (13). Acredito que, em termos de poesia experimental, sempre há uma “crise do verso”: verso entendido aqui como aquele métrico, tradicional, clássico. Em seu texto “Crise de vers”, Mallarmé entendia que depois da métrica engenhosamente aplicada por Victor Hugo (14) o verso deveria romper-se, como se rompeu, “a partir de uma livre disjunção de milhares de elementos simples”. Que “milhares de elementos simples” são esses? – é a pergunta a qual Mallarmé não cessa de responder ao longo de sua obra: os experimentos verbais. No entanto, não acho que essa crise foi anunciada com mais força em Un coup de dés, que é considerado o principal poema de Mallarmé e serviu como influência decisiva para serem definidos os parâmetros da poesia concreta. Certamente, nele havia uma implosão dos versos, colocados nas páginas em diferentes formas e tamanhos.
Mas, como Augusto afirma em suas traduções de Mallarmé no recente Poesia da recusa, havia mesmo na poesia anterior do francês (organizada por sonetos, principalmente), uma ruptura com padrões sintáticos, seja nos temas, seja na colocação das palavras, compondo uma experimentação, como você sugere, no poema-texto. Esses poemas lembram os de Baudelaire e de Rimbaud, mesclando uma linguagem mais padronizada com outra mais experimental. Daí, ao contrário do que se costuma dizer, Mallarmé não ter separado a “linguagem bruta” (a corrente, do cotidiano) da “linguagem ideal” (pura, poética). Nesse sentido, ele antecipou Jakobson (15), para quem mesmo na linguagem corrente, “bruta”, havia metalinguagem. Para Mallarmé, o que não existia era a prosa, ou seja, para ele qualquer texto com estilo é poesia.
A fim de existir uma aproximação com as novas tecnologias, o poema de Mallarmé ainda é basilar, em obras como a de Augusto de Campos (que faz o que chama de “clip-poemas”, que são poemas “animados”) e a de Arnaldo Antunes (16) (sobretudo em seu trabalho Nome, que foi lançado com vídeo, livro e CD, propondo uma midiatização da poesia). Particularmente, não aprecio a ligação que fazem da poesia de Mallarmé com a publicidade, que tem a sua linguagem própria – e não é densa como a poética. Aliás, Mallarmé destacava, com certo sarcasmo, que há ritmo em tudo, menos nos manifestos e anúncios publicitários. Ou seja, o poema de Mallarmé, a meu ver, não antecede cartazes ou tipologias ousadas, introduzidas, principalmente, pelos meios relacionados à informática. Deve-se dizer, claro, que Mallarmé se baseou na tipologia dos jornais, mas, ao mesmo tempo, ele não queria que seus versos funcionassem como simples manchetes. O vanguardismo, como este veio a ser entendido mais tarde, não fazia parte dos planos de Mallarmé: ele nunca faria manifestos exaltando os valores da guerra, como o futurismo. E ele destacava que, sendo belo, o que foi feito “ontem” não deixa de sê-lo.
IHU On-Line - A angústia ou inquietação cósmica de Mallarmé, segundo Augusto de Campos, é muito humana e muito da nossa época, palco de tantos avanços na física e na cosmologia. Como você reflete sobre essa questão?
André Dick - Augusto de Campos, como disse na pergunta anterior, é um dos poetas mais influenciados por Mallarmé, e sua obra. Os poemas que retratam a “angústia” e a “inquietação cósmica” são vários em sua obra, como “Pó do cosmos", "Sos", "O quasar" e "O pulsar"”: eles mostram, mais do que uma ligação com os avanços na física e na cosmologia, a solidão do indivíduo no cosmo, como Mallarmé desenhava em Un coup de dés, com o setentrião ao norte. Nesta entrevista dada a Cláudio Daniel, a que você se refere, Augusto fala justamente de seus poemas como “mensagens numa garrafa cósmico-terrestre”, como aquelas enviadas por observatórios e sondas espaciais, que estavam atrás de vida fora da terra.
O poema de Mallarmé pode ser entendido como uma mensagem numa garrafa para a produção do século XX (como escreveu o poeta Paul Celan (17), os poemas são como uma mensagem na garrafa). Embora negado por dadaístas e futuristas, seu poema é carregado por uma espécie de descoberta da linguagem e relaciona as palavras a uma mensagem vista no céu, por um telescópio, ou algo similar. A página seria como um céu fixo e infinito, enquanto as palavras seriam, como dizia Octavio Paz, “signos em rotação”. O verso que trespassa, “Um lance de dados jamais abolirá o acaso” possui, ao mesmo tempo, um pouco a idéia de que Deus “lança os dados” ao acaso. Esse acaso é o imprevisto, que deve ser dominado para que surja a obra, levando-se em conta que o cosmo é, sobretudo, o desconhecido.
Mallarmé não acreditava em Deus, que dizia ter sido uma criação do homem, mas, ao mesmo tempo, pensava “haver algo oculto no fundo de todas as coisas”. Ele acreditava em “algo de recôndito, num significante fechado e secreto, que vive na generalidade”. Dúvidas expostas – para si mesmo e para os outros –, Mallarmé fica em suspenso: não é que ele queira se apagar por meio da linguagem, mas ele julga que é a linguagem que cria e move os seres. Sua solidão, no meu entendimento, não compreende nem quer compreender o universo como um todo; sua solidão representa o indivíduo em busca de uma explicação “além das palavras”, mas isso não ocorre, e o poeta recai novamente sobre suas próprias palavras. Acredito que em Mallarmé se solucione parte da antiga dicotomia entre o sujeito da experiência (cada indivíduo) e o sujeito da ciência (o intelectual). No pensamento clássico, o sujeito da ciência era afastado da experiência: existia, assim, a evidente separação entre o saber humano e um determinado saber divino.
Já na ciência moderna, como anuncia Mallarmé de forma poética, a experiência é o lugar do conhecimento. Isso, certamente, abre um campo muito importante para ele e o aproxima de um diálogo (pouco aproveitado) entre literatura e áreas científicas, implicando no aproveitamento do “acaso”, ou seja, a obra como percepção do “momento a ser captado” e transformado em texto – o que remete ao instante da descoberta. Obviamente, a poesia não pode ser concebida em parâmetros teóricos definitivos, mas ela se alia com outras áreas que também lidam com os enigmas – mesmo que extraverbais.
IHU On-Line - O que pretende, afinal, Mallarmé, por meio de seus escritos?
André Dick - Mallarmé quer, como diria Augusto de Campos, algo que os cientistas querem com suas pesquisas aparentemente inúteis: “conhecer e conhecer-se”. Creio que isso implica em considerar o poeta um ser empírico, mas não como alguém que escreve para simplesmente se afastar da realidade e ser enigmático. Um crítico como George Steiner afirma que as palavras do poeta francês “dão as costas” ao leitor. Essa é, sem dúvida, uma leitura pouco atrativa, além de irreal. Steiner, em outro momento, afirma que a poesia de Mallarmé não quer atingir o “mundo externo”, ao contrário das poesias de Pound e de Whitman. Mas o que seria “mundo externo”? Parece que o escritor “mais enigmático” desconsidera a vida e os acontecimentos, criando um mundo somente verbal.
O próprio Mallarmé afirmava que ele não era responsável pelo fato de que não entendiam sua obra, pois não tinha culpa de que a maioria das pessoas não faziam uma leitura prévia para entendê-la (leitura de Baudelaire, Poe, Rimbaud, Verlaine etc.). Não pode existir, como confere Barthes em seu famoso artigo “A morte do autor”, o texto como uma experiência anônima, que pertence a todos. Se como Barthes diz, em Roland Barthes por Roland Barthes, que nossa profundidade pertence aos outros, os outros também nos pertencem. No caso específico da literatura, a linguagem não surge ao acaso, como se caída do céu. Um autor como Mallarmé teve uma quantidade enorme de leituras para depois compor sua obra: os outros, é claro, estão em sua obra, mas quem os reuniu foi um homem, Mallarmé. Essa é uma idéia até bastante simplista, mas costuma ser negada na literatura por um viés redutor: o autor teria sido alguém que recebeu um dom e uma mensagem para ser transferida aos outros – e essa mensagem surge original, pura, sem o contato alheio.
Barthes, de algum modo, contesta essa idéia, ao falar na morte do Autor como uma autoridade, como um deus do texto. Mas, no caso dele, até antes de seu curso A preparação do romance II (lançado pela Martins Fontes), essa idéia implicava em transformar um texto numa coletividade reunida ao acaso e assinada, também ao acaso, por um escritor. Essa idéia apenas repete o ideário romântico: de que o artista foi escolhido como mediador para passar uma obra sublime aos pobres mortais, os demais humanos. Desse modo, o autor passa a ser visto como um sujeito místico, que merece ser reverenciado, mas a distância, para que a mediocridade alheia não o perturbe. Barthes, nesse curso que mencionei, muda radicalmente de idéia e avalia que os estudos que tratam o autor como um ser irrelevante para o texto devem ser colocados em xeque. Barthes fala num estudo literário com traços mais “afetivos”, afastando-se, de vez, da ortodoxia estruturalista, que separou, muitas vezes, Texto e Autor. Ele pedia por uma crítica que visasse também aos elementos biográficos, ou seja, pretendia desamarrar o autor de idéias que o apontavam como “efeito de significante”, ou seja, como eixo nuclear da semiosis – em seu sentido mais incipiente, ainda não adaptado às mudanças que sofreu com o tempo –, em que um texto apenas se refere a outro texto, nunca a uma referência externa, a uma experiência, ou a uma lembrança subjetiva.
Certamente, esta é uma leitura que passou a ter depois de ler, sobretudo, Lacan (18), em que um sujeito é visto como construção do simbólico e do imaginário. Propriamente, no texto de Mallarmé vamos percebendo a presença de escritores como Rimbaud, Baudelaire, Verlaine, Victor Hugo e, sobretudo, de Edgar Allan Poe (19) e de Hegel (este nas considerações que Mallarmé faz sobre o Ser e o Nada); de músicos como Wagner e Debussy; de pintores, como Degas (sobretudo quando escreve sobre as bailarinas, lembrando pinturas desse artista). Pode-se dizer que ele é um autor original, mas não desconhecedor da tradição que o antecede ou o cerca. Ele raramente remete a autores que o influenciaram – mas esses estão em seus poemas, em seus textos críticos e em suas cartas (aliás, muito importantes para se descobrir esse Mallarmé afeito ao diálogo). Essas questões acabam envolvendo o conceito de “mímesis”, como o entendemos por meio de Aristóteles e Platão. Vê-se que Barthes, ao contestar a “mímesis” – sobretudo a de Aristóteles –, não pretendia propor a extinção da realidade e da referência e sim adotar a idéia da “dispersão do texto”: o texto também é o social, os signos, as pessoas e os objetos que nos rodeiam. Ou seja, a existência do ser humano é guiado por seu manancial simbólico e imagético.
IHU On-Line - Você vê necessidade de usar outros recursos além da linguagem verbal para fazer poesia?
André Dick - Há muitos poetas que optam por usar outros recursos além da linguagem verbal – o que é um caminho desafiador. Eles, por vias diversas, chegam um pouco ao que Mallarmé chamava de Livro Total, o Le livre, ou seja, um livro que fosse similar a uma “missa”. Novamente, essa idéia está ligada ao movimento da poesia concreta, que propunha um texto “verbivocovisual” (verbo-som-imagem). Alguns poetas tentam misturar diferentes mídias, o que mostra um interesse em estabelecer um diálogo mais objetivo com o cinema, com a arquitetura, com a fotografia, com artes plásticas em geral... No caso de Nome, de Arnaldo, a que me referi, isso é visível, assim como seu trabalho ET Eu Tu, em parceria com a fotógrafa Márcia Xavier, propondo um diálogo direto entre imagem e construção verbal. Deve-se lembrar também dos trabalhos de Josely Vianna Baptista, que apresenta poemas com fotografias de Francisco Faria em Corpografia e Os poros floridos, principalmente. Igualmente, a ligação entre poesia e música, efetuada por Arnaldo, aparece muito também na obra de Augusto de Campos, a exemplo de sua série “Poetamenos". A linguagem verbal continua sendo, no entanto, a meu ver, como fica claro nesses trabalhos apresentados, o tópico para que se estabeleça uma certa “profundidade”, no sentido de que não se fique apenas na superfície: a beleza de palavras ornamentadas em vídeos ou esculturas que trabalham com palavras impressas ou cartazes de galerias não revelam, infelizmente na maioria dos casos, a “profundidade” necessária. Num mundo dito pós-moderno, em que as tecnologias se acumulam e muitas vezes entendiam, a linguagem verbal forte (não importa que acrescida de diálogo com outras linguagens) ainda é um caminho necessário.
IHU On-Line - "A Grande Obra" era o sonho do angustiado Mallarmé, o qual não conseguiu realizar. Como você imagina que essa obra poderia ser o que Mallarmé chama de "o mistério órfico da terra"?
André Dick - A Grande Obra (ou Livro Total) de Mallarmé, revelada por ele em carta a Verlaine, era o Le livre a que me referi. Esse projeto, inacabado, deixado em forma de fragmentos de pensamento que tentam explicar o que ela constituiria, representa, na verdade a própria poesia moderna: precária, imperfeita, mas, acima de tudo, humana e não desumana ou sobre-humana. O desejo que Mallarmé tinha era de compor uma obra que reunisse “tudo” e pudesse ser musicada, além de contar com a participação do público, visto que o poeta também sonhava que seus escritos servissem para o teatro (Hérodiade é o exemplo principal). Tratava-se de um livro aleatório, no qual muitas coisas pudessem caber. E nisso entrava o “mistério órfico da terra”, para remeter ao mito de Orfeu, uma mistura entre poeta e músico (ele tocava lira) que, ao tentar resgatar sua amada Eurídice do mundo dos mortos, fez o que não poderia (olhar para ela antes de chegar à luz do sol), perdendo-a para sempre.
Pode-se dizer que Mallarmé quis visualizar a música de seu tempo, querendo, mais do que Rimbaud e suas vogais e que Baudelaire, transformar as palavras em notas musicais ou vice-versa – o que é impossível, claro, mas a utopia é uma das características da literatura moderna. Esse diálogo com a música se reproduz em muitos poemas dele, sempre envoltos por um trabalho sintático e lexical múltiplo, a exemplo do já referido Un coup de dés, com suas palavras que remetem às notas que um maestro conduz para a sua orquestra. Mas mesmo em poemas em que isso não se mostra de maneira tão evidente, como “Sainte", a música é um tópico exemplar, em seu atrito com o silêncio. De qualquer modo, o objetivo mallarmeano não foi confirmado, talvez porque se trata de uma utopia.
A idéia do Livro Total, que é bastante romântica (já existia em Schlegel, por exemplo), acaba sendo barrada pela impossibilidade de fazê-la. Como Orfeu, Mallarmé não termina a trajetória dela. Se Derrida escreveu que Deus está entre a leitura e a escrita, pode-se afirmar que Mallarmé, acreditando numa “força neutra” que rege o universo sucumbe a seu lado humano – e sua obra, irrealizada, permanece no chão da matéria inútil. Por mais que fuja, Mallarmé não escapa ao corpo. Por mais que tente conduzir seus personagens, como o fauno e a Hérodiade, a um ponto de sublimação, ele fracassa. Na verdade, Mallarmé não consegue atingir sua meta, baseada em preceitos budistas. Mallarmé se apega à matéria que lhe lembra o filho Anatole depois que este morre: as suas roupas, os móveis do quarto e da sala onde ele vivia, lembrando instantes de vida e prometendo devotar seu pensamento a ele. Acreditava que só quando morresse seu filho estaria realmente morto. Na verdade, parece que Mallarmé se pergunta por que Deus criou, ao mesmo tempo, o amor por alguém e a morte. Esta resposta ele obviamente não obtém: o que resta para explicar a sua dor é sua obra – que reúne a morte, o amor que tinha pelo filho e pela poesia e aquilo que ele considerava algo que existe de oculto em todas as coisas.
Notas:
(1) Charles-Pierre Baudelaire foi um poeta e teórico da arte francês. É considerado um dos precursores do Simbolismo, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.
(2) Jean-Nicolas Arthur Rimbaud foi um poeta francês.
(3) Aristóteles foi um filósofo grego nascido em Estagira, um dos maiores pensadores de todos os tempos e considerado o criador do pensamento lógico.
(4) Wilhelm Richard Wagner foi um compositor alemão, considerado um dos expoentes do romantismo e dos mais influentes compositores de música clássica já surgido. Com a sua criatividade, inúmeras inovações foram trazidas para a música, tanto em termo de composição quanto em termo de orquestração.
(5) Claude-Achille Debussy foi um músico e compositor francês.
(6) Augusto Luís Browne de Campos é um poeta, tradutor e ensaísta brasileiro. É um dos criadores da Poesia Concreta, junto com seu irmão, Haroldo de Campos, e Décio Pignatari, que, ao romperem com o Clube de Poesia, lançaram a revista Noigandres.
(7) Mário Faustino dos Santos e Silva foi um jornalista, tradutor, crítico literário e poeta brasileiro. Morreu com apenas 32 anos num desastre aéreo no Peru.
(8) Jacques Derrida foi um importante filósofo francês. Criador do método filosófico chamado desconstrução. O seu trabalho é frequentemente associado com o pós-estruturalismo e o pós-modernismo.
(9) Roland Barthes foi um escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês. Barthes usou a análise semiótica em revistas e propagandas, destacando seu conteúdo político. Dividia o processo de significação em dois momentos: denotativo e conotativo. Resumida e essencialmente, o primeiro tratava da percepção simples, superficial; e o segundo continha as mitologias, como chamava os sistemas de códigos que nos são transmitidos e são adotados como padrões.
(10) Oscar Fingal O`Flahertie Wills Wilde foi um escritor irlandês. Publicou contos como O príncipe feliz e O rouxinol e a rosa (que escrevera para os seus filhos) e O crime de Lord Artur Saville. O seu único romance foi O retrato de Dorian Gray.
(11) André Paul Guillaume Gide foi um escritor francês e vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1947. Oriundo de uma família da alta burguesia, foi o fundador da Editora Gallimard e da revista Nouvelle Revue Française. Entre as suas obras mais importantes estão Os frutos da terra, Corydon, A sinfonia pastoral, O imoralista e Os moedeiros falsos.
(12) Paul Marie Verlaine é considerado um dos maiores e mais populares poetas franceses.
(13) Décio Pignatari poeta, ensaísta e tradutor, dos mais ousados da literatura brasileira. Como teórico da comunicação, traduziu obras de Marshall McLuhan e publicou o ensaio Informação, Linguagem e Comunicação (1968). Sua obra poética está reunida em Poesia pois é Poesia (1977).
(14) Victor Hugo foi um escritor e poeta francês, autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras.
(15) Roman Osipovich Jakobson foi um pensador russo que se tornou num dos maiores lingüistas do século XX e pioneiro da análise estrutural da linguagem, poesia e arte. Foi chamado de "o poeta da lingüística" por Haroldo de Campos.
(16) Arnaldo Antunes um músico, poeta e artista visual brasileiro, mais conhecido por sua participação como integrante do grupo de rock Titãs. Em suas principais áreas de atuação artística, a música, a poesia e a arte visual, demonstra a influência de sub-gêneros modernistas ou pós-modernistas.
(17) Paul Celan foi um poeta romeno radicado na França. Seu verdadeiro apelido de família era Antschel (ortografia alemã) ou Ancel (ortografia romena). Celan é um anagrama da ortografia romena. Sobrevivente do Holocausto, Celan foi um dos mais importantes poetas modernos da língua alemã.
(18) Jacques-Marie Émile Lacan foi um psicanalista francês. Lacan fez uma releitura do trabalho de Freud, mas acabou por eliminar vários elementos deste autor. Para Lacan, o inconsciente determina a consciência, mas este é apenas uma estrutura vazia e sem conteúdo.
(19) Edgar Allan Poe foi um escritor, poeta, romancista, crítico literário e editor estado-unidense. Poe é considerado, juntamente com Jules Verne, um dos precursores da literatura de ficção científica e fantástica modernas. Algumas das suas novelas, como The murders in the Rue Morgue, The purloined letter e The mystery of Marie Roget, figuram entre as primeiras obras reconhecidas como policiais, e, de acordo com muitos, as suas obras marcam o início da verdadeira literatura norte-americana.
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A quase-arte de Mallarmé. Entrevista especial com André Dick - Instituto Humanitas Unisinos - IHU