25 Julho 2007
Não só nosso modo de trabalhar e viver, mas também nossa identidade é condicionada pela diferença técnica. Há uma diferença abissal entre o corpo “vivido” e o corpo “objetivado”; sobre este último se concentrou a ciência, escreve Umberto Galimberti, filósofo italiano em artigo publicado no jornal La Repubblica, 20-07-2007. Umberto Galimberti já confirmou a sua presença no Simpósio Internacional Uma sociedade pós-humana? Possibilidades e limites das nanotecnologias. Sobre o mesmo tema abordado no artigo de Galimberti, confira também os artigos de Telmo Pievani e Stefano Rodotà.
Eis o artigo.
"Tudo começou com Descartes que, com um lance surpreendente e inesperado, transformou o nosso corpo em organismo, ou antes, naquela somatória de órgãos suscetíveis de serem indagados como se indagam os componentes de qualquer máquina. Antes que La Mettrie, em 1747, começasse a fazer circular na Holanda o seu ‘O homem-máquina’ [L’homme machine], que suscitou tanto escândalo, incluindo as reações do liberal governo holandês que procurou destruir todas as cópias, - afortunadamente sem êxito, - um século antes Descartes pusera as premissas para a objetivação do corpo, para a sua redução a uma máquina, porque somente assim seria possível inaugurar um saber científico do corpo que nós hoje reconhecemos no saber médico, para o qual, por exemplo, a cólera, ou raiva difere da alegria somente por uma diferente intensidade do ritmo respiratório, do tônus muscular, da permuta bioquímica, da pressão arterial, embora nos afadiguemos em persuadir-nos que o colérico é um supercontente ou que uma risada de alegria seja idêntica a uma risada histérica, porque ambas empenham a mesma área muscular. Desarticulado nos seus órgãos, reduzidos a engrenagens de uma máquina, o corpo perdeu sua beleza tornada estatuária da escultura grega, deixou de ser expressão de paixões, exaltações e dores, como nos documenta a arte medieval e renascentista, para tornar-se pura anatomia que tem no cadáver o seu modelo privilegiado de estudo e de referência, enquanto a vida foi sendo consignada à fisiologia dos órgãos e assim confinada, sem nenhuma variante que não fosse a alteração dos órgãos e do seu funcionamento, que encontrou sua descrição na patologia.
A identidade de cada um de nós separou-se do organismo assim descrito e se recolheu naquela entidade imprecisa e de difícil identificação que assumiu o nome de “psique”. Nasceu a psiquiatria, que tomou a si ocupar-se daqueles casos que apresentavam um “morbus sine matéria” [uma enfermidade imaterial] e do seu funcionamento (fisiologia), ao estudo das moléculas e das proteínas (bioquímica), até o estudo dos cromossomos (genética), onde com um rigor que não admite exceções, está escrito o nosso destino, por um tempo perscrutado nas estrelas do céu.
Mas, o efeito final foi a objetivação do nosso corpo, sua abissal distância de nós, porque, no corpo reduzido a organismo que a ciência descreve, eu não me reconheço, porque é um corpo que não me revela, não me representa, não me exprime. Por mais esforços que eu faça para seguir o rastro dos meus vinte cigarros diários numa lousa, não conseguirei identificar-me com o dano produzido, como, ao invés, consigo quando corro para tomar um trem ou quando faço o amor. É, de fato, uma diferença abissal entre o corpo “vivido” e o corpo “objetivado” pela ciência. A língua alemã chama o primeiro termo de “Leib”, uma palavra aparentada com Leben (vida) e com Liebe (amor), e o segundo termo de Körper ou Körper-Ding (corpo-coisa).
Sobre o corpo reduzido a coisa aplicaram-se as neurociências, individuando os responsáveis orgânicos da nossa felicidade e da nossa tristeza, da nossa capacidade de amar e da nossa indiferença, da nossa cólera e do nosso entusiasmo. Sobre estas descobertas se debruçou imediatamente a indústria farmacêutica, e com ela todos nós, para modificar por via bioquímica a condição da nossa existência, sem antes procurar nas palavras da alma, da qual não reconhecemos mais a linguagem, a narrativa da nossa vida. E até aqui tudo bem, ou tudo mal, segundo os gostos. Mas, sobre o corpo reduzido a organismo se debruçou também a informática, à qual estamos confiando, além de todas as impressões digitais, também as retinianas, as vocais e até mesmo as olfativas. Podemos medir a distância que intercorre entre os nossos dedos abertos em ângulo, bem como a cadência do nosso caminhar. O organismo no-lo revela. E a técnica pode roubar-nos aquilo que de mais íntimo, de mais nosso, de mais secreto guardamos como referência última da nossa identidade.
Podemos ter passaportes que recolhem num microchip todos estes dados. Acabaremos com o ser, com o modo como sempre fomos, desconhecidos a nós mesmos, mas transparentes a qualquer um que queira saber tudo de nós. A nossa identidade deverá dobrar-se às exigências de identificação e o nosso corpo transformar-se-á numa senha que torna acessível a todos a nossa identidade, capturada naquele único recesso que não podemos esconder: a nossa fisicidade.
Entre corpo e técnica sempre existiu um caso secreto. O homem se diferenciou do animal precisamente pela capacidade de ampliar as possibilidades de seu corpo com a instrumentação técnica, à qual conferiu primeiramente a potenciação da vista, do ouvido, do caminhar, depois a redução da extensão do espaço e do tempo e, por fim, a potenciação da memória. Hoje, com as possibilidades postas à disposição da informática, o corpo também está consignando à técnica um poder de controle que reduz nossa fisicidade a uma superfície de escritura, onde é possível ler a nossa identidade, agora indefesa.
Não só os estilos de vida, não só nosso modo de trabalhar e de viver é rigorosamente condicionado pela técnica, mas também a nossa identidade é inspecionada naquela última fronteira que nos restara: o segredo do nosso corpo, hoje visualizável até lá no fundo, onde guardamos aquela última reserva de liberdade, garantida pela barreira entre o dentro e o fora, entre o público e o privado, entre o íntimo e o exteriorizado. Nesta radical reviravolta da nossa relação entre corpo e técnica, o perigo não está apenas na completa publicização da nossa intimidade mais secreta, mas na interrogação, no questionamento dificilmente elucidável, que agora se pergunta, não mais o que nós poderemos fazer com a técnica, mas o que a técnica pode fazer de nós.
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O sonho da modernidade: De Descartes até hoje. A longa história do homem-máquina. Artigo de Umberto Galimberti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU