Por: André | 26 Novembro 2015
A historiadora tunisiana analisa o conflito na Síria e o papel que desempenham os países do Ocidente e do Golfo Pérsico nesta crise que deixa centenas de vítimas na mira das bombas, dos atentados terroristas e da repressão.
A entrevista é de Eduardo Febbro e publicada por Página/12, 22-11-2015. A tradução é de André Langer.
O conflito nos países do Oriente Médio rompeu de uma vez por todas as suas fronteiras. As ingerências destruidoras do Ocidente, suas intervenções armadas, a cadeia inimaginável de burradas cometidas na região pelos supostos estrategistas ocidentais, a expansão do conflito entre xiitas e sunitas (entre os países do Golfo Pérsico e o Irã), a dupla face das monarquias do Golfo Pérsico e os confrontos inerentes ao conflito entre as grandes potências – Estados Unidos, Rússia, União Europeia – desataram um incontido conflito que deixou centenas e centenas de milhares de mortos na região e, só este ano, penetrou várias vezes no coração do Ocidente.
As marcas mais sangrentas destes atentados estão na Síria, no Iraque e na França, onde os atentados de janeiro de 2015 contra o semanário francês Charlie Hebdo e o supermercado judeu do leste de Paris, e, agora, em novembro, a chacina perpetrada em Paris por um comando que respondia ao Estado Islâmico, deixaram um saldo de mais de 150 mortos e centenas de feridos. Esta catástrofe polifônica é o resultado do intervencionismo militarista das potências do Ocidente cujas estratégias e alianças regionais propulsaram o surgimento de fundamentalismos religiosos cada vez mais devastadores.
A historiadora Sophie Bessis desenvolveu uma obra rigorosa em torno destes múltiplos focos de horror que desestabilizam o Oriente Médio. Tunisiana de nascimento, pesquisadora do IRIS de Paris (Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas), Bessis soube, no entanto, ir mais longe na sua análise. Publicado pela Alianza Editorial em 2002, seu livro O Ocidente e os outros: história de uma dupla supremacia, traçou uma singular perspectiva sobre a arrogância ocidental e esse controle do mundo que o leva a crer que essa supervisão faz parte da sua identidade.
No seu último livro publicado, O duplo caminho sem saída, o universal diante da prova dos fundamentalismos religiosos e mercantis (La double impasse. L’universel à l’épreuve des fondamentalismes religieux et marchand. Paris: Éd. La Découverte, 2014), a historiadora tunisiana colocava em relação a influência mútua que exercem o radicalismo islamista e o hiperliberalismo, tal como é praticado no Ocidente e nas petromonarquias.
Nesta entrevista exclusiva realizada em Paris, Sophie Bessis analisa a guerra na Síria, as origens e as responsabilidades da catástrofe no Oriente Médio, o conflito interno entre xiitas e sunitas e o papel que desempenham os países do Ocidente e do Golfo Pérsico nesta crise que corrói o coração do sistema internacional e deixa centenas de milhares de vítimas na mira das bombas, dos atentados terroristas e da repressão.
Eis a entrevista.
Os atentados de Paris representam um novo marco, tanto no horror como na indicação da responsabilidade do Ocidente nesta crise. Ao mesmo tempo tiram a máscara da origem deste problema, que é, em grande medida, o pacto entre as petromonarquias do Golfo Pérsico e o Ocidente.
Os últimos acontecimentos trágicos que atingiram a França nos levam a refletir ainda mais sobre os efeitos catastróficos que possam ter a convergência destes dois fundamentalismos, o liberalismo e o fundamentalismo religioso. Sabemos muito bem que certas monarquias do Golfo Pérsico são as ideologias e os propagadores do fundamentalismo de clã. Há provas irrefutáveis. Do contrário, basta ver como é um país como a Arábia Saudita e qual é a sua ideologia. Desde o primeiro colapso do petróleo de 1973, os países do Golfo acumularam uma imensa fortuna graças à dependência das economias ocidentais do petróleo. Esta dependência e o dinheiro envolvido permitiram aos países do Golfo globalizar o que poderia ser chamado de novo Islã, uma nova versão do Islã que se traduziu em movimentos islâmicos cada vez mais violentos e extremistas.
Pois bem, estes países são os aliados mais próximos dos grandes Estados democráticos do Ocidente, os defensores da liberdade e dos direitos humanos. Estas monarquias do Golfo estão entre os países mais ricos do mundo, mas os grandes países ocidentais passam por cima de seus próprios valores para vender-lhes armas, aliar-se com eles e comprar o seu petróleo. Não quero dizer que devemos ser completamente idealistas e não levar em conta a realidade. Mas, enfim, entre levar em conta a realidade e fazer da Arábia Saudita e do Catar seus aliados mais próximos há uma margem.
E enquanto houver um abismo tão grande entre o discurso e a realidade veremos que esses dois fundamentalismos continuarão sendo complementares. A ideologia wahabista da Arábia Saudita é a mais sectária, a mais obscurantista de todas as formas e leituras do Islã. Não devemos confundir Islã e islamismo. Inclusive se há passarelas entre uma e outra, há a religião e depois a política. Mas esses movimentos políticos que reivindicam o Islã fazem-no identificando-se com essa versão rebaixada do mesmo.
Qual é o processo que leva a esta radicalização?
Há muitas causas, mas distinguirei duas. A primeira, e dentro do contexto internacional, é evidente que todas as ações ocidentais realizadas no Oriente Médio desde o 11 de setembro de 2001 fazem parte do problema e não da solução. Essas ações exacerbaram, desestruturaram e destruíram o Oriente Médio como nunca antes ocorreu. A invasão do Iraque em 2003 pelos Estados Unidos é uma das matrizes do extremismo jihadista armado. Os Estados Unidos destruíram um Estado. Certamente era uma ditadura, Saddam Hussein era um ditador sangrento que matou dezenas de milhares de pessoas. Mas a invasão norte-americana matou centenas de milhares de pessoas; aqui falamos de outra escala.
Essa invasão de 2003 explodiu um Estado, não deixou nenhuma base. Se olhamos as intervenções ocidentais dos últimos anos na região, estas fizeram explodir os Estados sem garantir a estabilidade depois. Penso na Líbia, por exemplo. Convencidos de sua hiperpotência os Estados ocidentais fizeram qualquer coisa. Agiram com um simplismo político que se assemelha ao cretinismo. No Iraque, como Saddam Hussein era sunita, mataram-no e entregaram o poder aos xiitas. Aí há uma prova do simplismo político do Ocidente.
Além disso, ao dar o poder aos xiitas entregam o Iraque ao seu pior inimigo, que é o Irã. Depois colocam à frente do Iraque um fundamentalista xiita, Nouri Kamal al Maliki, que empreenderá a pior repressão contra a minoria sunita. E essa minoria, inclusive se não era particularmente extremista, se unirá ao Estado Islâmico com a ideia de que unicamente este os protege.
A segunda razão cabe em uma pergunta que liga o fundamentalismo religioso ao fundamentalismo mercantil: por que três quartas partes desses jovens que vão matar centenas de pessoas provêm dos subúrbios das grandes cidades europeias, entre 30% e 40% dos quais convertidos, isto é, que nem sequer provêm do mundo árabe? Por quê?
Porque o mundo no qual vivemos é um mundo vazio de sentido, carente de propostas. O fundamentalismo mercantil provocou um esvaziamento de sentido. Uma ideia coletiva não pode ser resumida no horizonte do consumo. Além disso, propõem esse horizonte do consumo sem dar os meios para consumir. A variável principal de ajuste da versão atual do capitalismo é o trabalho, o desemprego. Quando estes dois fatores se unem, a bomba explode.
A extraordinária perversidade desses movimentos religiosos consiste em fazer essa juventude sem rumo acreditar que lhe transmitem um sentido e um horizonte de esperança.
Que lugar ocupa neste conflito o próprio confronto interno entre xiitas e sunitas?
A divisão entre xiitas e sunitas remonta à morte do profeta Maomé, mas nunca foi um problema geopolítico como hoje.
Mas converteu-se em uma das essências do conflito.
Sim, atualmente é um problema geopolítico, mas é um pretexto dentro da luta de poderes. A revolução iraniana exerceu um enorme poder de atração nas massas muçulmanas pobres. A partir dali, a Arábia Saudita, quis construir outro pólo de atração e começou a financiar, a capacitar e armar o fundamentalismo sunita. Mas não estamos assistindo a brigas teológicas ou brigas dinásticas. Estamos diante de conflitos políticos e este conflito interno entre sunitas e xiitas é conveniente para muita gente.
Veja outro exemplo: hoje, a Arábia Saudita está arrasando o Iêmen. Neste país, os zaiditas nunca se consideraram xiitas, mas se tornaram xiitas desde que são financiados pelo Irã. É um acontecimento político recente. Mas nos anos 70, a Arábia Saudita financiava o zaidismo. Em suma, a Arábia Saudita foi aliada dos zaiditas e hoje os bombardeia com o pretexto de que são xiitas. Não nego a existência do conflito entre xiitas e sunitas na história do Islã, mas hoje assistimos a uma instrumentalização política deste conflito.
Você concorda com determinadas análises segundo as quais há uma clara intenção de provocar o famoso conflito entre civilizações, entre religiões?
Há dois grupos que precisam chegar a esse ponto: os extremistas islâmicos e as extremas direitas ocidentais. Ambos necessitam de um conflito entre civilizações, entre culturas, entre religiões. Os extremistas islâmicos necessitam do conflito para dizer: “eles são os nossos inimigos hereditários, é preciso matar todos”. E as extremas direitas ocidentais têm necessidade desse conflito para dizer: “vejam, nossos inimigos de hoje não são os grupos extremistas, mas os muçulmanos em sua globalidade”.
Atualmente, os democratas do mundo árabe têm muito trabalho a fazer, mas ninguém presta atenção neles e se esquecem de que existem. Eles têm muito poucas divisões. O Ocidente tem, por sua vez, um duplo combate pela frente: um combate contra o extremismo que matou em Paris 130 pessoas e que, temo, continuará provocando danos nos próximos meses e anos. E também outro combate contra as extremas direitas. Esses dois extremismos querem chegar a uma situação de ódio contra ódio. Os democratas têm que evitar que se chegue a essa situação.
Agora a Síria: por onde se introduziu a fratura que levou a este desastre político, geopolítico e humanitário?
Em março de 2011, quando começou a Primavera Árabe com a revolta popular na Tunísia, seguida pela sublevação da Praça Tahrir (Egito), depois a do Bahrein, de Bangazi, também se revelou a cidade síria de Deraa. Fê-lo com o grito de justiça, liberdade, dignidade e exigindo o mínimo que um povo pode pedir. Devemos dar um basta à tentativa de essencializar os árabes dizendo que não têm os mesmos neurônios que os outros. Os sírios, assim como os demais, estavam cansados de 50 anos de uma ditadura sangrenta e espantosa. Mas a repressão foi selvagem, de uma violência horrível, o que não é surpreendente por parte do filho de Hafez al Assad.
Lamentavelmente, vários movimentos, vários países vizinhos, disseram que a única solução era armar a revolta. A fratura está aí, quando se pretendeu armar a sublevação. Hoje temos mais de 300 mil mortos. Ceder às sirenes da militarização da revolta foi um erro grave. Além disso, também não houve unidade da oposição síria diante da ditadura de Bashar al Assad.
Finalmente, graças aos países vizinhos, em particular às monarquias do Golfo, a Síria virou o palco da guerra de todos. Na Síria, hoje, assistimos a uma guerra mundial. Estão presentes todos: os norte-americanos, os europeus, os russos, os iranianos, o Hezbollah, os sauditas. Em suma, todos estão aí e todos bombardeiam a Síria. Na última etapa temos a Rússia, que entrou no jogo de forma magistral respaldando uma das piores ditaduras que o Oriente Médio já conheceu em sua história moderna. E não devemos esquecer o seguinte: a ditadura de Assad é uma das mais sangrentas do Oriente Médio. Caso esquecermos isso, nos esqueceremos dos mortos, mas os mortos não podem ser esquecidos.
Não há, então, saída racional?
O que poderia acontecer é que as potências se ponham de acordo para que tudo fique como está, menos o Estado Islâmico, é claro. Elas se colocarão de acordo para eliminá-lo. É possível. Assim se chegará novamente à explosão do Oriente Médio. Não estou certa de que seja a solução. Estamos em um período de desintegração total da região e não sei como ela irá se recompor.
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“Síria, palco de uma guerra mundial”. Entrevista com Sophie Bessis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU