18 Outubro 2015
"A lei pune, mas a forma de executá-la pode chegar a doses absurdas de castigo. Nossa herança colonial nos leva a optar antes pelo castigo que pela punição, pois o castigo está mais próximo da vingança, única forma de reparação que, mesmo que negada, satisfaz um grande público", frisa o historiador.
Capa do livro / Editora Oikos |
O livro é resultado de uma minuciosa pesquisa realizada pelo historiador Tiago da Silva Cesar. Doutor na área, o professor e pesquisador buscou desvendar o plano de fundo dos primórdios do sistema punitivo gaúcho.
“Interessava-me, sobremaneira, averiguar quais ideias realmente pesaram durante as campanhas construtivas de estabelecimentos de nova planta, entre 1850 e 1888, conformando em nossos pagos um extenso e intrincado arquipélago de instituições punitivas com miradas e atenções diferenciadas com os reclusos”, explica em entrevista concedida à IHU On-Line, por e-mail.
Para Cesar, explorar essa história inicial das prisões no Estado, entre outros aspectos, torna-se relevante porque evidencia um período pregresso aos sistemas de cárcere modernos, o qual é parte importante da construção de um contexto mais amplo do sistema penitenciário. “A cadeia velha aparece como uma espécie de etapa-realidade passada, situada na transição entre os antigos aljubes e a construção das modernas prisões. Acho que tal linearidade acaba escondendo o fato de que foi justamente nessas cadeias velhas e ruinosas onde se viveu primeiramente, e com maior incidência, a experiência histórica do encarceramento. O que proponho, apenas, é superar essa miragem a qual chamei de ‘ilusão panóptica’, partindo de uma mirada que não se prenda unicamente no ‘oásis’, mas que valorize também a extensão do ‘deserto’. O oásis aqui seria essas grandes prisões, chamativas desde o ponto de vista investigativo, não cabe dúvida, mas poucas e recentes em comparação com as acanhadas cadeias que realmente formavam a malha prisional provincial (o deserto do qual ainda pouco se sabe)”, ressalta.
Durante as pesquisas para a escrita de “A ilusão panóptica”, o autor constatou que o Brasil foi pioneiro na implantação de estabelecimentos correcionais na América Latina e também em relação a muitos países europeus. Ainda, evidenciou uma realidade que, mesmo com o passar do tempo, não sofreu muitas modificações: “Do indivíduo que alimentava o sistema prisional na segunda metade do século XIX, eu diria, baseando-me nas fontes trabalhadas, que a carne presidiária por excelência era do sexo masculino, jovem, solteiro, negro ou não branco, e pobre. Talvez não muito distante do perfil da população carcerária dos dias de hoje”, aponta.
Tiago da Silva Cesar tem toda sua formação centrada na História. Nessa área é doutor pela Universidade de Córdoba - UCO, Espanha, mestre e graduado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Atualmente é professor do Centro de Teologia e Ciências Humanas da Universidade Católica de Pernambuco - Unicap.
Confira a entrevista.
Foto: Universidade de Córdoba |
Tiago da Silva Cesar - Em A ilusão panóptica analisei o processo de formação do aparelho carcerário sul-rio-grandense durante o período imperial. Interessava-me, sobremaneira, averiguar quais ideias realmente pesaram durante as campanhas construtivas de estabelecimentos de nova planta, entre 1850 e 1888, conformando em nossos pagos um extenso e intrincado arquipélago de instituições punitivas com miradas e atenções diferenciadas com os reclusos. Eu busquei com esse enfoque colocar a Casa de Correção de Porto Alegre [1], então símbolo da reforma penitenciária oitocentista em terras gaúchas, como uma engrenagem a mais do sistema, já que nem todos os presos da província acabavam entre suas grades.
O panoptismo [2] lido através de Vigiar e Punir: O nascimento da prisão (Petrópolis: Vozes, 1987) fez com que os historiadores se debruçassem especialmente sobre as prisões modelo ou centrais (Casas de Correção, Casa de Prisão com Trabalho e Penitenciárias), em detrimento das ruinosas, estreitas e insalubres cadeias municipais/comarcais que, em realidade, constituíam a regra prisional durante os oitocentos. É comum encontrarmos trabalhos em que a “cadeia velha” aparece como uma espécie de etapa-realidade passada, situada na transição entre os antigos aljubes e a construção das modernas prisões. Acho que tal linearidade acaba escondendo o fato de que foi justamente nessas cadeias velhas e ruinosas onde se viveu primeiramente, e com maior incidência, a experiência histórica do encarceramento.
Quero deixar claro que não é minha intenção desmerecer tais trabalhos, ainda mais quando constituem contribuições singulares para a História das Prisões. O que proponho, apenas, é superar essa miragem a qual chamei de “ilusão panóptica”, partindo de uma mirada que não se prenda unicamente no “oásis”, mas que valorize também a extensão do “deserto”. O oásis aqui seria essas grandes prisões, chamativas desde o ponto de vista investigativo, não cabe dúvida, mas poucas e recentes em comparação com as acanhadas cadeias que realmente formavam a malha prisional provincial (o deserto do qual ainda pouco se sabe).
O livro trata ademais das condições e mazelas carcerárias sofridas pelos reclusos, independentemente da sua condição jurídica. Formas de resistência e de existência, portanto, não de mera sobrevivência, foram analisadas juntamente com aqueles elementos mais caros à vida em privação de liberdade, como: alimentação, vestimentas, asseio pessoal, atenções médico-hospitalares dispensadas, etc. Espero ter logrado reconstruir parte significativa da teia relacional surgida da interação entre o intra e o extramuros, ou seja, entre esses estabelecimentos e seus ocupantes, e as autoridades estatais, instituições (polícia, exército, igreja, hospitais, etc.), e a própria sociedade através de formas, agentes e maneiras diversas de contato e projeções mentais.
“O sistema penitenciário dos oitocentos não se caracterizava por uma homogeneidade de estabelecimentos” |
IHU On-Line – Historicamente, como se constituiu o sistema carcerário no Rio Grande do Sul? Que particularidades dizem respeito à realidade da Província de São Pedro?
Tiago da Silva Cesar - O sistema carcerário rio-grandense, assim como o de outras províncias imperiais, se constituiu a partir da promulgação do Código Criminal de 1830, quando a privação de liberdade passou a ser pena de fato. Isso não significa que antes não existissem cadeias, o que mudou com a codificação penal foi a estipulação formal de seu uso como penalidade, dado que antes serviam, na maioria dos casos, para reter o réu até seu julgamento e sentença propriamente dita.
Quando a pena de privação de liberdade se tornou a rainha das formas penais do Estado Liberal, se gerou uma demanda de espaços prisionais que só aumentou com as inovações trazidas com o Código do Processo Criminal de 1832. Este último estipulou que os réus fossem julgados pelo Júri do seu domicílio, ou no lugar onde haviam cometido o crime. Dispensa dizer que tais determinações fizeram com que muitos municípios que não dispunham de cadeia (escusados pela escassez de verbas ou à raiz da falta de rigor por parte dos Ouvidores de Comarcas que deviam fiscalizar a construção de cadeias, além da Casa de Câmara, segundo os alvarás de criações de vilas), tivessem da noite para o dia que adaptar edifícios, alugar, ou passar a requerer recursos provinciais para a construção de edificações próprias.
Dito isso, poderíamos nos fazer outra pergunta: se a partir de 1830/32 se gerou uma demanda por espaços prisionais, por que o livro arranca somente em 1850? A resposta é simples. A demanda aumentou, mas graças às agitações políticas que atravessaram o Império durante o período regencial, e inclusive depois, com a Praieira, em Recife/PE (1848-1850), se pode dizer que não houve até 1850 umas condições ideais para se atender tal demanda, por outra parte, de extrema importância para a canalização do exercício punitivo pelo Estado. Vale lembrar que a construção da Casa de Correção de Porto Alegre teve que ser adiada pela Farroupilha (1835-1845), e, no final do conflito, a prisão da futura Pelotas que estava sendo levantada em meados da década de 1830 encontrava-se em ruínas. Assim, não deve ser de estranhar que tenha sido durante a década de 1850 que se tenha posto realmente em marcha uma autêntica campanha construtiva de cárceres na província, a fim de dotá-la efetivamente de um aparelho penal-carcerário acorde com as demandas da época.
IHU On-Line – Que modelos de sistema carcerário foram implantados no Brasil Imperial, especialmente no Sul?
Tiago da Silva Cesar - Devo começar dizendo que o sistema penitenciário dos oitocentos não se caracterizava por uma homogeneidade de estabelecimentos, padronização de regulamentos e suprimento das necessidades diárias de funcionamento das instituições e manutenção dos presos. E tudo isso graças ao artigo 10, parágrafo 9, do Ato Adicional de 1834, que delegou às Assembleias Legislativas Provinciais a incumbência de legislar sobre a construção de prisões e casas de correção, além do regime a ser nelas adotado. Podemos, portanto, imaginar o resultado dessa medida, que deixava o assunto completamente nas mãos dos presidentes da província.
Para o caso rio-grandense, sabemos que alguns presidentes (influenciados pela reforma penitenciária oitocentista) cogitaram desde muito cedo a ideia de construir várias prisões de caráter correcional. Os estabelecimentos correcionais se diferenciavam dos demais espaços prisionais por proporcionarem aos reclusos elementos que — assim o entendiam seus idealizadores e defensores — incidiam sobre sua emenda moral e de conduta. Segundo a ideologia correcional, não bastava apenas privar o homem delinquente de sua liberdade, também se fazia necessário oferecer-lhe meios/instrumentos para sua regeneração. Esses instrumentos de emenda seriam, basicamente, o trabalho em oficinas internas nos mais diferentes ofícios, o ensino das primeiras letras, e uma atenção espiritual onde por meio de missas e confissões se reforçasse o caráter moralizante da pena. Tudo deveria influenciar positivamente a fim de se evitar a reincidência.
Em “A ilusão panóptica”, observei que o Brasil não foi apenas pioneiro na implantação de estabelecimentos correcionais na América Latina, como também o foi em relação a muitos países europeus. O Rio de Janeiro, por exemplo, já dispunha de sua Casa de Correção em 1850, depois de principiada em 1834. E tal pioneirismo não se restringiu a uma única prisão modelo, pois apesar da autonomia dos governos provinciais nessa matéria, muitos tentaram erigir estabelecimentos com tais características em suas capitais.
Além disso, pode-se perceber para o caso sulino, como a reforma penitenciária ali não se reduziu à construção da sua Casa de Correção. Muitos outros cárceres também foram construídos paralelamente ao estabelecimento prisional da capital gaúcha, observando-se neles, inclusive, alguns elementos da ideologia correcional. Pois se o que se buscava era a emenda do sentenciado, se fazia importante a disponibilização de recintos penais salubres, higiênicos, com atenções médicas, separações por sexo, status jurídico e delitos. Lembre-se que o arquiteto que assinou as plantas baixas da Correção porto-alegrense foi o mesmo que projetou outros cárceres que serviriam de modelo para outros estabelecimentos municipais.
Em síntese, o sistema carcerário sulino funcionava em um conjunto muito heterogêneo de estabelecimentos. Entre 1883-1885, ou seja, já nos últimos anos do Império, de um total de 46 prisões, apenas 23 pertenciam aos municípios ou à província, ocupando os restantes prédios alugados (19) ou edifícios compartilhados com a Câmara Municipal (4), sem que se possa precisar se estes últimos eram imóveis próprios ou alugados. Em geral conformavam arranjos inapropriados de prédios não construídos para servir como cadeia, com grandes deficiências estruturais para a manutenção dos presos em seu interior, ademais de insalubres, estreitos e com pouca capacidade. Devemos acrescentar que além das cadeias novas, poucas e nem sempre construídas com a rapidez e a qualidade esperada, também se lançou mão de antigas casas de moradia, quartos em destacamentos do exército e em postos policiais, ranchos de palha, antigo matadouro, e, inclusive, troncos em coletorias provinciais. Era nessas infames estruturas que se aguardava o pronunciamento, o processo, o julgamento, e, em alguns casos, o cumprimento das sentenças de privação de liberdade.
“A lei pune, mas a forma de executá-la pode chegar a doses absurdas de castigo” |
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IHU On-Line – Que tipos de condutas eram consideradas criminosas no Brasil Império durante o século XIX?
Tiago da Silva Cesar - Com o advento do Código Criminal do Império (1830), uma série de condutas e ações passaram a ser penalizadas com sentenças que, na maior parte, consistiam em privar o réu de sua liberdade. De todas elas, a miríade de crimes e delitos englobados nas categorias “contra as pessoas” e “contra a propriedade” foi, sem dúvida, a mais reprimida pelas autoridades policiais e judiciais. Sendo a sociedade brasileira no século XIX ainda de tipo antigo, portanto, longe de experimentar uma industrialização que transformasse profundamente sua economia, acarretando mudanças significativas no âmbito social e cultural, não coube aos delitos contra a propriedade o lugar de destaque nas estatísticas criminais do Império, mas sim àqueles que atentavam contra a segurança e bem-estar individual das pessoas.
No Rio Grande do Sul, entre 1850 e 1859, ferimentos e homicídios juntos ultrapassaram 80% do total de registros. Entre 1873-1877, apesar de uma maior diversificação de delitos, as mesmas infrações alcançaram mais de 69%. E, em 1882, computando as tentativas de homicídio, quase 89%. Como podemos ver, roubos e furtos estavam ainda muito longe de tomar a dianteira dos crimes e delitos majoritariamente perseguidos e reprimidos.
IHU On-Line – Qual era o perfil da população carcerária na segunda metade do século XIX?
Tiago da Silva Cesar - Se posso me permitir fazer uma imagem robot do indivíduo que alimentava o sistema prisional na segunda metade do século XIX, eu diria, baseando-me nas fontes trabalhadas, que a carne presidiária por excelência era do sexo masculino, jovem, solteiro, negro ou não branco, e pobre. Talvez não muito distante do perfil da população carcerária dos dias de hoje.
IHU On-Line – Como ocorria o castigo na segunda metade do século XIX e de que forma ele se tornou um expediente de disciplinarização não somente penitenciária, mas também social?
Tiago da Silva Cesar - Quero parabenizá-los pelo uso da palavra “castigo” em vez de “punição”, pois realmente castigamos mais do que punimos. A lei pune, mas a forma de executá-la pode chegar a doses absurdas de castigo. Nossa herança colonial nos leva a optar antes pelo castigo que pela punição, pois o castigo está mais próximo da vingança, única forma de reparação que, mesmo que negada, satisfaz um grande público, chegando até mesmo a ser celebrada em certas ocasiões.
As prisões correcionais, eu diria, chocaram com as nossas velhas práticas punitivas. Por isso, mesmo num momento em que as classes abastadas e dirigentes passaram a se escandalizar e rechaçar cada vez mais o contato visual com cenas de sofrimento alheio, incluindo o açoite de escravos, sua ideologia assentada na emenda e na regeneração do delinquente não logrou encontrar eco suficiente para uma implementação efetiva. Nesse sentido, o caso da Casa de Correção de Porto Alegre é muito sintomático. Observamos, por exemplo, que a mentalidade que levava a uma ação prática por parte dos presidentes da província estava muito mais para o que defendiam os reformadores penitenciários utilitaristas de finais do século XVIII, do que para aqueles que advogavam pela ideologia correcional (trabalho+educação+religião = emenda moral-comportamental). Isso explica, em boa medida, o porquê das oficinas e a escola terem constituído experiências efêmeras.
Nos cárceres imperiais, incluindo as prisões modelo, não se disciplinou, nem se corrigiu/regenerou ninguém, a não ser que entendamos o termo disciplinarização como uma prática de aprendizagem cívica, porque isso sim se deu no intramuros penal, onde as massas oriundas dos setores menos favorecidos da sociedade tinham que lidar obrigatoriamente com as leis, com a palavra escrita, com os códigos e regulamentos, e os valores e práticas de reforço das hierarquias sociais (mesmo que isso fosse apenas para instrumentalizá-las em favor próprio). As leis dispostas nos Códigos puniam, mas as péssimas condições de reclusão castigavam, e é essa realidade-imagem que se perpetuou até nossos dias. Essa foi a exemplaridade pela qual se optou.
IHU On-Line – De que forma o trabalho se constituía como espécie de alternativa paradoxal aos presos, por um lado como castigo e por outro como a “solução para todos os males”?
Tiago da Silva Cesar - A questão do trabalho penal nos conduz novamente a pensar os valores daquela sociedade. A implementação de oficinas nos estabelecimentos penitenciários visava, segundo a ideologia correcional, à moralização dos indivíduos, convertendo homens desocupados em trabalhadores morigerados através da terapia laboral. O problema era que isso simplesmente não interessava às classes dirigentes. No caso rio-grandense, por exemplo, o que pesou realmente tanto na hora de abrir como na de fechar as oficinas não foi sua função moralizadora, mas sim a possibilidade real de garantir ou não vantagens econômicas por meio da utilização da mão de obra carcerária. É curioso observar que ainda hoje muita gente opine que o preso deveria trabalhar para se sustentar, etc., mas poucos se perguntam por que eles não haveriam de querer?! As prisões são autênticas plataformas de empobrecimento, além de espaços com escassas atividades em que se possam ocupar seus encarcerados, motivo suficiente para que o trabalho assalariado de então pudesse ser tudo, menos um castigo penal. Estou seguro de que os reclusos não o viam como tal, mais bem o contrário, pois pior era a ociosidade. Quando a princípios da segunda metade do século XIX silenciaram as oficinas da Casa de Correção, isso não se deu por interesse dos presos, mas sim por decisão governamental.
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“Ontem, como hoje, as prisões continuam sendo plataformas de empobrecimento e envelhecimento humano” |
IHU On-Line – Como a escolarização aparecia como alternativa à recuperação dos presos? Que experiências ocorreram neste sentido durante o final do século XIX?
Tiago da Silva Cesar - Retomando o que já se disse antes, tanto o trabalho como a instrução escolar formal foram considerados, no século XIX, ingredientes de uma espécie de coquetel disciplinar e moralizante pensado para as classes criminais e perigosas. Assim como se daria com o trabalho, as luzes também incidiriam sobre a conduta do indivíduo, convertendo um “bruto” sentenciado em um indivíduo útil e dócil à sociedade. A ideia da instrução como remédio ou tratamento para a regeneração. Porém, semelhantemente ao que ocorreu com as oficinas de trabalho assalariado (que chocou com os valores da sociedade escravocrata), também a escola ensaiada no interior do recinto penal da Casa de Correção não teve os resultados esperados. Para o período estudado, logramos documentar apenas duas iniciativas escolares sem grande vulto, e, pelo que se desprende desses documentos, nada indica que tivessem tido uma existência muito longeva. No final das contas, optou-se pela “escola do crime”, mas também nesse caso, não porque tivesse sido a alternativa dada a escolher aos presidiários.
IHU On-Line – Que tipos de resistência havia aos processos de controle e disciplinarização do sistema prisional à época?
Tiago da Silva Cesar - Os presos do passado desenvolveram estratégias de ação e resistência de dois tipos: uma ativa e outra passiva. Ambas podiam ser exercidas individual ou coletivamente, mas a ativa era normalmente aquela que se dava de maneira direta, que não evitava enfrentamentos com guardas, escoltas e funcionários se necessário fosse, além de jogar com as possibilidades de evasão. A adaptativa, por sua vez, caracterizava-se pela maleabilidade demonstrada na hora de tirar proveito dos meandros institucionais, das relações travadas no intramuros carcerário e com indivíduos de fora das grades, dos contatos com pessoas importantes, incluindo a utilização de canais burocráticos que exigiam um domínio mínimo de escrita e de códigos de conversação formal para dirigir-se às autoridades.
Claro está que um preso podia passar de um estado a outro sem maiores problemas, mas há suficientes dados que levam a crer que a resistência adaptativa foi de longe o comportamento mais assumido pela massa encarcerada. Apesar de contas, uma falsa submissão às ordens, leis e regulamentos era muito mais conveniente para uma ação estratégica de sobrevivência do que uma resistência aberta. Mas gostaríamos ainda de dizer que, além disso, o presidiário do passado também tentou viver na prisão, lançando mão de todas as fissuras do sistema penitenciário para se sentir menos engaiolado. Basta dizer que através de trocas, compras e subornos muitos sentenciados garantiam acesso a mulheres, ao consumo de bebidas alcoólicas, à participação em jogos proibidos, incluindo saídas à rua para vender produtos manufaturados nas próprias celas, incluindo visitas aos seus familiares.
IHU On-Line – Qual a contribuição da obra Vigiar e Punir, de Foucault, para compreendermos a constituição de um determinado sistema carcerário? Que chaves de leitura ele oferece para analisarmos a realidade gaúcha?
Tiago da Silva Cesar - Quando li Vigiar e Punir: O nascimento da prisão (Petrópolis: Vozes, 1987) pela primeira vez fiquei fascinado com a obra em geral, e, especialmente, com a análise do panoptismo e das técnicas e mecanismos disciplinares. Confesso que permaneci por certo tempo “preso do panóptico foucaultiano”, e até desejei encontrar a minha prisão panóptica para historiá-la. Posteriormente, já digerida a leitura, e ciente dos limites daquela obra, entendi (em boa parte por boca do próprio autor através de suas entrevistas) que seu objetivo não era justamente fazer uma história das prisões em toda regra, mas sim refletir a partir desta instituição como se deu o nascimento/origem da chamada sociedade disciplinar.
A prisão panóptica surge aqui como alegoria dessa sociedade, já que desde uma torre central se poderia ver rapidamente o que se passava em qualquer extremidade dos raios com ela conectados, podendo ainda transmitir uma sensação de vigilância constante ao não deixar visível o rosto de quem monitoraria desde dentro. Foucault, sem sombra de dúvidas, nos ajuda a pensar o lugar ocupado por essas instituições dentro da nova racionalidade punitiva, como a necessidade de aceleramento do processo civilizador (político, econômico e social) que ia tornando paulatinamente incompatível a existência de penalidades infamantes e sanguinárias com a nova sensibilidade civilizada da sociedade burguesa e liberal. Mas nesse processo de transição de paradigmas penais, o poder capilar e disciplinar nem sempre saiu vitorioso.
Conforme falei anteriormente, no Brasil as instituições prisionais não apresentaram durante o período imperial uma uniformidade de modelos, controles, vigilâncias, regulamentos, etc., nem constância em sua aplicabilidade a ponto de servir de instrumentos de docilização do corpo. Pelo contrário, permitiam o surgimento de fissuras no sistema, que só aumentava com a inevitável interação entre presidiários e carcereiros. Muito longe da imagem projetada de meros sepulcros provisórios, nesses estabelecimentos, a vida não parava. Tirando isso, Vigiar e Punir continua inspirando historiadores seniors e nouvelles, ademais de servir como uma autêntica caixa de ferramentas conceituais. Acredito que, para analisar uma ingente quantidade de técnicas e controles disciplinares, até o de uma delinquência útil, seu refinamento analítico e seus insights interpretativos continuam, quarenta anos depois, insuperáveis. Em A ilusão panóptica, a proposta teórico-metodológica não excluiu Foucault, mas seu uso é instrumental, isto é, sem espartilhar as fontes que, por outra parte, nos convidaram a continuar avançando.
O poder em Foucault
Para Michel Foucault, a problemática relativa ao conceito de poder consistiu em um de seus principais eixos de investigação e expansão de seu pensamento, patentemente reconhecido em suas obras. Para Foucault, o poder é mais exercido que possuído, ou melhor, só se possui exercendo-o, e não se localiza em nenhuma parte, senão na própria relação de forças entre dominados e dominantes. Apreender suas práticas e estratégias — de poder — é desentranhar sua microfísica, compreendê-la, desvelar sua rede capilar.
Foucault partia de algumas interrogações, como por exemplo: por que as prisões permaneceram apesar de sua contraprodutividade? Ou a quem/e para que serve esse fracasso? Ou dito de outra forma, para que são úteis esses diferentes fenômenos constantemente criticados: pertinácia da delinquência, indução à reincidência, transformação do infrator ocasional em delinquente habitual, organização de um meio fechado de delinquência? Segundo sua tese, quanto mais delinquentes existam, mais crimes existirão, e quanto mais crimes, mais medo terá a população, e quanto mais temor tenha a população, mais aceitável e desejável será o sistema de controle policial-penitenciário. A um só tempo justifica o controle policial e esconde a rentabilidade econômica da delinquência, sobretudo através dos diferentes tipos de tráfico: drogas, armas, bebida alcoólica, combustíveis, prostituição e outros. A delinquência torna possível o que por si não pode ser realizado legalmente na sociedade. Não esqueçamos que o surgimento de estabelecimentos prisionais privatizados aumenta ainda mais o peso econômico da delinquência. Num país com a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 700 mil presos, perdendo somente para a dos Estados Unidos e para a da China, como escapar do business carcerário?
“Nossa sociedade não pune, ela castiga” |
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IHU On-Line – Ainda que a realidade atual do sistema carcerário não seja seu objeto de estudo, que aproximações percebe entre o sistema carcerário gaúcho do século XIX e o sistema atual penitenciário?
Tiago da Silva Cesar - Enquanto no século XIX se utilizava a palavra “regenerado” para se referir à emenda moral-comportamental do presidiário, hoje se usa “ressocializado” para aqueles que logram sair em liberdade e reintegrar-se plenamente. Cento e sessenta anos nos separam da abertura do primeiro raio da Casa de Correção (1855), com a realidade escalofriante de nossos atuais presídios (2015), e, sem dores na consciência, continuamos sendo coniventes com uma situação de abandono extremo e com as condições infra-humanas impostas a homens e mulheres privados de liberdade.
Tanto ontem como hoje o problema, a mim me parece, continua sendo apenas o de buscar mais espaços prisionais para a demanda que não deixa de aumentar. Continuamos criminalizando muitas ações e comportamentos achando que isso basta para a transformação de uma sociedade, mas esquecemos que a base está na distribuição da renda, na melhoria das condições de vida, portanto, na erradicação da pobreza e, claro está, na educação de qualidade. Enquanto desvalorizarmos os profissionais da educação, ou, o que é pior, fecharmos escolas, não restam dúvidas de que iremos necessitar construir muitos outros complexos penitenciários. Não devemos esquecer que somos uma sociedade repressora, hierarquizada, racista, desigual e relacional, e tais valores culturais se reproduzem e se reforçam na própria exclusão social da maioria por uma minoria, essa sim, portadora de todos os direitos civis, políticos e sociais.
A reforma penitenciária oitocentista fracassou porque mais do que corrigir ou emendar, o que realmente interessou aos governantes foi a edificação de sólidas prisões, com maior capacidade e segurança. Vendo as coisas retrospectivamente, percebo que nunca houve de fato uma política que procurasse inverter a velha função estigmatizadora e de reforço social da pena de privação de liberdade. Ontem, como hoje, as prisões continuam sendo plataformas de empobrecimento e envelhecimento humano. Superlotações, fome, doenças, pobreza extrema, mortes e agressões de todo tipo e todo tipo de vexames continua sendo sua marca registrada. Talvez esse quadro seja justamente o motivo de sua existência e permanência no tempo, pois como disse a princípio, nossa sociedade não pune, ela castiga.
Por Ricardo Machado e Leslie Chaves
Notas:
[1] Casa de Correção de Porto Alegre: foi construída à margem do rio Guaíba para substituir a Cadeia Velha em 1855, que já havia sido desativada em 1841, pelas péssimas condições de insalubridade e maus-tratos aos presos, denunciados por uma Comissão do Império em 1831, que apontou a necessidade de transferir os mesmos para um lugar mais apropriado para cumprirem suas sentenças. A autorização para a construção da Casa de Correção foi dada ainda em 1835, mas em razão da Revolução Farroupilha, só veio a ser retomada em 1845. O local escolhido para a construção foi a Praia do Arsenal, na ponta do promontório da cidade, que formava um ângulo agudo no rio Guaíba e que foi selecionado por oferecer melhores condições de higiene, fácil acesso à água, solo rochoso para a base dos seus alicerces e o isolamento. (Nota da IHU On-Line)
[2] Panóptico – panoptismo: originalmente criado pelo filósofo e jurista Jeremy Bentham, o panoptismo seria uma forma privilegiada de olhar, uma vigilância que gera controle, ou seja, um olhar vigilante e controlador sobre os corpos no espaço. Através desta perspectiva, Bentham criou o panóptico, o conceito de um projeto arquitetônico que tem por fim vigiar e observar todos os prisioneiros dentro de um centro penitenciário, seria uma forma mais econômica de vigilância, pois se utilizaria apenas de um guarda, que observaria os detentos dentro de um lugar estrategicamente localizada. O Panoptismo corresponde à observação total produzindo poder disciplinador na vida de um indivíduo, que também foi percebida por Foucault (1987) como promotor de uma “Sociedade Disciplinar”, consistindo essencialmente um modelo de controle social por meio da reunião de muitas técnicas de separação, de vigilância, de monitoramento, de controle, que se rizomatizam pelas sociedades a partir de uma cadeia hierárquica vindo do poder central. (Nota da IHU On-Line)
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A ilusão panóptica: Encarcerar e punir nas imperiais cadeias da Província de São Pedro (1850-1888). Entrevista especial com Tiago da Silva Cesar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU