03 Setembro 2015
Estou escrevendo este post hoje em plena madrugada num trem que me conduz da Áustria para a Alemanha.
Ao meu lado, um refugiado do Gabão tentando esquecer a trajetória vendo um vídeo em seu celular e espantado com o fato de o trem ter um sistema de wifi grátis. Do outro lado, um refugiado sírio que me conta que vai dormir pela primeira vez em cinco dias, aliviado por estar finalmente na Alemanha. O ronco que segue mal deixa o resto do vagão dormir.
A reportagem é de Jamil Chade, publicada no portal do jornal O Estado de S. Paulo, 02-09-2015.
No banco de trás, mais cinco refugiados iraquianos, visivelmente exaustos. Um pouco além, uma família de sete pessoas, todas da Síria.
O trem, apesar de circular pela madrugada, está lotado. Lotado de dramas, de sonhos, de incertezas. Algumas pessoas ocupam os banheiros, deixando os operadores da Deutsche Bahn desesperados. As malas são escassas. Praticamente ninguém tem mais que a roupa do corpo.
O vagão restaurante está um pouco distante. Mas decido me aventurar. Os rostos que encontro são de pessoas que não conseguem dormir de apreensão. Como se tivessem marcado um encontro em plena madrugada, sob o pretexto de ver a lua.
Um dos refugiados, Ahmed de 34 anos, puxa conversa comigo. “Você vem de onde?”. Eu sabia o que ele queria me perguntar. Mas decidi ver sua reação diante de uma resposta fora do eixo. “Vim do Brasil”.
Depois de um silêncio profundo, ele apenas me disse. “Essa é a primeira vez que encontro na viagem alguém do Brasil”. Eu logo o explico que não sou refugiado. Mas que tive tios de Homs e que meu pai sempre conta do êxodo dos libaneses para a América do Sul nos anos 30.
Engatamos uma conversa curiosa. Ele sabia da existência do Clube Sírio em São Paulo e me revela: chegou a ser “muito rico, antes de perder tudo com a guerra”.
Um grupo logo se formou, com pessoas ávidas a romper a tensão com uma conversa. Não demorou para que a imagem do garoto sírio na praia de Bodrum viesse à tona. Eu perguntei sobre o que achavam da coragem de uma família em subir em um barco precário.
Mais uma vez um silêncio e, depois, confissões assustadoras. Das cinco pessoas ali, todas tinham passado por traficantes pelo mar Mediterrâneo. Pergunto quais são os projetos a partir de agora e as respostas também são unânimes: “como dizer o que será o futuro?”.
Volto para o meu lugar. O silêncio é rompido apenas pelo grito de um bebê ou do ronco de refugiados exaustos. É um silêncio pesado. O sírio, ao meu lado, ve que eu começo a digital no laptop e volta a puxar conversa, em tom de confissão:
– É muito pesadelo para um sono só.
O sono do embalo do trem é interrompido quando, com a delicadeza de um urso em uma loja de cristais, os controladores alemães entram pela porta do vagão gritando: “ticket, ticket”.
Sem saber o que vai ocorrer, os refugiados se questionam se esses controladores tem o direito de pedir seus passaportes, ou se apenas querem as passagens.
Não demora para a calma voltar a reinar num trem repleto de histórias traumáticas. O sírio ao meu lado, mais calmo, ironiza:
– Bom, acho que vou voltar a dormir. Espero que desta vez, eu possa sonhar.
Circulando entre as fronteiras europeias com a precisão alemã, o trem mais parecia estar navegando pelas fronteiras da humanidade. Ou do que ainda restou dela nesses homens e mulheres.
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Num trem com refugiados. Destino: a incerteza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU