20 Julho 2015
O cardeal australiano George Pell, principal autoridade financeira do papa e religioso conservador convicto, sempre foi uma figura polarizadora. Porém, uma de suas qualidades nunca esteve em disputa: ele fala o que pensa.
Assim ele o fez nesta semana, quando sugeriu um grau de dúvida em alguns elementos da pauta social de Francisco.
A entrevista é de John L. Allen Jr, publicada por Crux, 19-07-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Pell gentilmente deu a entender que as declarações anticapitalistas afiadas que o papa fez durante a sua recente visita à América Latina podem ter sido injustas.
“O mercado está longe de ser perfeito”, disse ele. “Da mesma forma, também temos visto níveis historicamente inéditos de prosperidade alcançados por causa da propagação global do capitalismo e de mercados mais livres. O crescimento na China e na Índia, por exemplo, é real e maravilhoso”.
“Além disso, não devemos ignorar a prosperidade que temos nos países de primeiro mundo”, disse ele. “No geral, temos um bom padrão de vida, e não devemos nos esquecer disso”.
Pell lembrou de uma entrevista que concedeu ao Financial Times em que disse que, embora a recente carta encíclica do Papa Francisco sobre o meio ambiente contenha “muitos, muitos elementos interessantes”, devemos também notar que a Igreja Católica não é “nenhuma especialista em ciências”.
A ocasião para estas entrevistas foi o lançamento do primeiro balanço financeiro anual do Vaticano preparado por Pell e sua equipe.
Este balanço demonstrou uma melhoria na situação financeira do ano passado. A Santa Sé contou com um déficit um pouco menor em comparação com 2013, quando conseguiu se ajustar a normas contábeis mais profissionais, e o governo da Cidade-Estado do Vaticano registrou um excedente forte.
No entanto, o relatório do balanço financeiro deste ano também pareceu atrair algumas das mesmas acusações como no ano passado, pois alguns dados básicos ainda estavam faltando. Por exemplo, os orçamentos operacionais anuais da Santa Sé e da Cidade-Estado não foram comunicados, e nem foi apresentada a situação geral do Vaticano com relação aos ativos e passivos.
Para uma equipe que chegou para trabalhar prometendo transparência total, há claramente bastante a ainda a ser feito.
Juntou-se à conversa Danny Casey, australiano que trabalha como chefe da equipe de Pell no Vaticano e que desempenhou um papel de liderança na elaboração do relatório anual.
Eis a entrevista.
No geral, o que se pode dizer deste balanço financeiro?
Pell - Existem hoje tantos elementos em curso que o processo de reforma iniciado se tornou irreversível. Estamos comprometidos com a transparência e com normas internacionais de contabilidade.
O relatório do balanço financeiro apresentado diz que vão se passar anos para se implementar plenamente as Normas Internacionais de Contabilidade Pública no Vaticano. Por que irá demorar?
Casey – A maioria das entidades do setor público levam cerca de três a cinco anos para implementar estas normas, tempo que é, na verdade, o prazo previsto nas próprias normas. Há muitas etapas complexas envolvidas. Por exemplo, temos de determinar as metodologias para sabermos dos valores dos ativos. Isso precisa ser revisto e, então, implementado, o que exige uma análise detalhada durante algum tempo. Temos também de estabelecer parâmetros de referência para o desempenho, de forma que seja possível saber avaliar como estamos indo durante o decorrer do tempo.
O que queremos é um sistema que dure por um longo tempo. Tivemos que começar construindo um balanço financeiro correto, que afirmasse corretamente os nossos fluxos de caixa, e assim por diante.
Vocês assumiram este trabalho prometendo transparência, mas há algumas informações básicas não incluídas no balanço apresentado. Por que isso aconteceu?
Casey – Temos de lembrar que os nossos novos padrões orçamentários entraram em vigor somente no dia 1º de janeiro deste ano. O foco este ano estava em garantir que os nossos saldos finais fossem os mais exatos possíveis, o que exigiu uma análise rigorosa e muitíssimas horas de trabalhar ao longo destes últimos 12 meses.
Daqui para frente, o nosso objetivo é produzir balanços que estejam plenamente de acordo com as normas internacionais. O modelo que adotamos é o do governo suíço, que produz um relatório financeiro anual extremamente abrangente. Ele traça um quadro muito mais completo sobre como as coisas se encontram.
O relatório do balanço financeiro refere-se a “altos níveis de interesse e cooperação” dentro do Vaticano e um “forte compromisso com a implementação das reformas financeiras aprovadas pelo Santo Padre”. Desde o início, no entanto, tem havido relatos de resistência no Vaticano...
Pell – Certamente existem ainda pequenos bolsões de resistência, mas no geral as coisas estão muito melhores agora. Em parte, isso se deve à grande mudança provocada pela Secretaria de Estado através da cooperação ativa do Cardeal Pietro Parolin. Ele e eu nos encontramos toda semana, e acabamos construindo uma relação de trabalho muito útil e genuína.
Para citar o ex-presidente dos EUA, George W. Bush: o senhor está dizendo que as “grandes operações de combate” terminaram?
Pell – Ora, conforme mostra a experiência, jamais podemos ter plena certeza do que se passa, porém a situação atual está muito melhor que antes. No começo, muita gente não fazia ideia do que estávamos fazendo, e alguns pensavam que possivelmente iríamos acabar reforçando os piores aspectos do sistema antes existente. Agora, creio que a maioria vê que o que estamos implementando não é o “nosso” sistema, e sim o sistema internacional. Demos vários cursos de formação para os funcionários do Vaticano e tentamos mantê-los a par do que está acontecendo, e eu acho que isso tem ajudado.
Cardeal Pell, na Austrália a imprensa tem publicado reportagens muito críticas sobre o seu histórico nos escândalos de abusos sexuais cometido pelo clero no país. Isso influenciou na sua capacidade de realizar o seu trabalho no Vaticano?
Pell – Até o momento, que eu saiba não teve nenhum impacto. Tenho o apoio total do papa. Como eu disse, estou preparado para explicar o meu comportamento à Comissão Real sempre que eles quiserem ouvir.
Em termos de reforma financeira, sou apenas uma parte de uma engrenagem muito maior. Temos muitas pessoas extremamente capazes ocupando toda uma variedade de cargos de alto nível. Temos um novo auditor geral que foi recentemente nomeado; há os que trabalham na Autoridade de Informação Financeira – AIF (agência antilavagem de dinheiro do Vaticano); o Conselho para a Economia está indo muito bem: Danny Casey está fazendo um ótimo serviço aí; temos também vários jovens da McKinsey [& Company, empresa de consultoria americana na área de gestão] que estão dando uma enorme contribuição e que estão, penso eu, felizes em fazer parte destas reformas.
Alguns analistas consideraram que o novo estatuto da secretaria que o senhor chefia, estatuto aprovado recentemente pelo Papa Francisco, significou um retrocesso para o senhor em termos de influência no Vaticano. Os cortes havidos neste estatuto foram uma forma de aparar o seu poder?
Pell – Não, eu não penso assim. Algumas pessoas em nosso departamento teriam gostado de administrar as coisas de forma mais direta. Mas, em termos de controle e vigilância no longo prazo, provavelmente é melhor que pessoas de outros setores assumam certas responsabilidades que, antes, estavam previstas para a Secretaria para a Economia que eu coordeno.
Vendo fora, alguns podem pensar que o Conselho para a Economia simplesmente aprovará qualquer coisa que o senhor colocar diante dele…
Pell – Temos uma relação de cooperação aqui. Formamos alguns grupos de trabalho que desempenham um papel muito ativo; o comitê de auditoria, por exemplo, realiza um trabalho extremamente importante. Eu não diria que os cardeais e os especialistas independentes que participam deste Conselho são pessoas que diriam “sim” para qualquer coisa que lhes fosse apresentada.
Vocês se puseram mesmo a examinar os livros de cada um dos departamentos do Vaticano para certificarem-se de que as declarações financeiras delas eram precisas?
Pell – Sim, conferimos cada um deles. Se não tivéssemos feito isso, poderiam dizer que fizemos o nosso trabalho com base em boatos. Foram exatamente estas análises e checagens que nos permitiram apresentar estes números com a confiança de que eles são precisos.
Casey – Vale dizer que as pessoas não estavam, realmente, acostumadas com este nível de escrutínio, acompanhamento.
Daqui para frente, qual o objetivo mais importante de vocês?
Pell – Precisamos gerar mais renda. Em particular, precisamos examinar nossos investimentos e tratá-los com rigor. Precisamos ser mais eficientes e obter um retorno melhor. Fomos incumbidos pelo Conselho para a Economia de criar um grupo de trabalho para analisar esta situação e propor melhorias.
Queremos também aprimorar o trabalho do Instituto para as Obras de Religião – IOR (também conhecido como o Banco do Vaticano). Esta entidade faz uma contribuição anual ao Vaticano, e queremos ajudá-la de todas as formas possíveis para que, no futuro, ela possa contribuir ainda mais.
Este ano, o IOR repassou 54 milhões de dólares. O senhor tem algum valor que considera o objetivo a alcançar?
Pell – Quando digo “mais”, quero dizer um valor acima desse aí em geral.
Mas o senhor tem um número que deseja alcançar? Por exemplo, 100 milhões de dólares?
Pell – Este valor seria um salto bastante significativo. No entanto, uma ou outra pessoa me disse que, se eles se reorganizarem com sucesso, bem poderão alcançar estas cifras.
O Papa Francisco recém voltou da América Latina, onde ele falou duramente contra a injustiça econômica e as falhas do sistema capitalista. Na qualidade de principal autoridade financeira do papa, como o senhor reagiu a isso?
Pell – Antes de tudo, creio que uma das razões deste desencanto do Papa Francisco para com o mercado e com o capitalismo é o desempenho desses em alguns – se não na maioria – dos países da América do Sul. Se eu viesse de Buenos Aires e considerasse o fato de que este sistema fez muito pouco pelas 21 ou mais favelas que cercam a cidade, eu estaria também pedindo por algo melhor.
Na verdade, em nenhum lugar do mundo os governos deixam a economia inteiramente operar por si mesma. Olhemos os Estados Unidos e seus gastos militares.
O mercado está longe de ser perfeito... Ele é um instrumento imperfeito. Para ver isso, basta olharmos para o nível das dívidas dos países. Da mesma forma, também temos visto níveis historicamente inéditos de prosperidade alcançados por causa da propagação global do capitalismo e de mercados mais livres. O crescimento na China e na Índia, por exemplo, é real e maravilhoso. Além disso, não devemos ignorar a prosperidade que temos nos países de primeiro mundo. Neste momento a Grécia e Portugal podem estar em apuros, mas no geral temos um bom padrão de vida, e não devemos nos esquecer disso.
Vocês veem alguma contradição entre o discurso do Papa Francisco de uma “Igreja pobre para os pobres” e esta ênfase em fazer crescer a receita do Vaticano e melhorar o desempenho dos investimentos?
Pell – Uma das melhores maneiras de ajudar aos pobres é melhorar a economia. Se formos desorganizados, incompetentes e pobres, não teremos condições de ajudar a ninguém. Além disso, o que estamos fazendo é importante num nível moral. As pessoas observam o Vaticano muito, muito de perto para ver se estamos nos comportando adequadamente.
Casey – Se não percebermos o real valor dos nossos ativos, não poderemos fazer nada de bom com os recursos de que não dispomos.
O senhor acha que o Papa Francisco concorda?
Pell – Sim, e muito. Nós não teríamos eito o que fizemos até agora sem o total apoio do papa.
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Cardeal Pell sugere que as opiniões anticapitalistas do papa podem estar sendo “injustas" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU