11 Junho 2015
"O fato de 'permanecer íntegra, entre os fiéis, a consciência do aborto, como pecado extremamente grave, sempre matéria de confissão', deveria confirmar o vigor e a maturidade da atitude: não se trata absolutamente de relativismo moral ou indiferentismo moral, mas de capacidade de discernimento", escreve Lilia Sebastiani, teóloga leiga italiana, doutora pela Accademia Alfonsiana e professora do Liceo Scientifico Renato Donatelli, de Terni, em artigo publicado pela revista Rocca ,n. 12, 15-06-2015. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
Falar da encíclica Humanae Vitae (HV), até um ano e meio atrás, era algo anacrônico, interessante somente do ponto de vista histórico. Sim, a encíclica estava na sombra. E a sombra, diferente da escuridão, parecia, para muitos, teológica e pastoralmente oportuna, pois possibilitava ir adiante, de modo indolor, sem polêmicas desnecessárias e sem deixar de reconhecer as boas intenções presentes, sem dúvida, quando da publicação, há 47 anos. Agora, no entanto, ela reaparece, de modo estrondoso, no centro das atenções, entre os dois sínodos sobre a família, e torna-se de novo sinal de contradição. Sabe-se que, muitas vezes, o sinal de contradição é salvificamente importante, até mesmo determinante; mas, provavelmente, não é este caso.
Antes do Sínodo de 2014: 38 perguntas
No outono de 2013, foi publicado o documento preparatório para a primeira fase do Sínodo (sessão extraordinária de 2014). 38 questões esperavam as respostas dos conselhos pastorais, grupos, associações e até mesmo de indivíduos. As perguntas, enquanto tais, foram acolhidas com interesse e esperança, embora sua formulação deixasse a desejar. Representavam um sinal concreto do interesse de ouvir, antes de tomar as decisões que, afinal das contas, tocariam a vida dos fiéis, muito mais do que a dos seus pastores.
Um dos nós problemáticos foi o ponto 7 (abertura dos cônjuges à vida), com sub-questões que parece necessário reportar integralmente.
Qual é o conhecimento real que os cristãos têm da doutrina da Humanae Vitae a respeito da paternidade responsável?
Que consciência têm da avaliação moral dos diferentes métodos de regulação dos nascimentos?
Que aprofundamentos poderiam ser sugeridos a respeito desta matéria, sob o ponto de vista pastoral?
Esta doutrina moral é aceita?
Quais são os aspectos mais problemáticos que tornam difícil a sua aceitação para a grande maioria dos casais?
Que métodos naturais são promovidos da parte das Igrejas particulares, para ajudar os cônjuges a pôr em prática a doutrina da Humanae Vitae?
Qual é a experiência relativa a este tema na prática do sacramento da penitência e na participação na Eucaristia?
Quais são, a este propósito, os contrastes que se salientam entre a doutrina da Igreja e a educação civil?
Como promover uma mentalidade mais aberta à natalidade?
Como favorecer o aumento dos nascimentos?
Estas perguntas, cuidadosas e persistentes, por vezes, com mínimas diferenças entre uma e outra, dão a impressão de que quem as formulou, temesse, acima de tudo, respostas apressadas ou evasivas, ou atentas aos valores em jogo, mais do que aos detalhes técnicos, e quisesse iluminá-las sob todos os pontos de vista possíveis. Não é muito agradável usar o verbo “iluminar”, neste caso, mas, como já dissemos, tratava-se exatamente disto: tirar um documento, ou melhor, uma doutrina, da sombra (oportuna naquele caso, e, de algum modo, motivada), na qual se encontrava.
Antes do Sínodo de 2014: os Lineamenta
Com base nas respostas, admitido que levadas a sério (o que é lícito duvidar, considerando o número exorbitante de questionários recebidos pela Secretaria do Sínodo, mais que 300 mil, a abrangência não indiferente e o curto período de tempo disponível, fica a impressão de que, de fato, se algumas respostas foram examinadas, foram somente aquelas das Conferências Episcopais Nacionais), foram elaborados os Lineamenta introdutórios ao Sínodo, publicados no final de junho de 2014.
Com relação ao controle de natalidade, ou melhor, sobre incidência da Humanae Vitae a este respeito, o documento combina, de modo único, a doutrina existente com os comentários recebidos, a tal ponto que nem sempre é fácil de os separar. Observa que nas últimas décadas foram levantadas “objecções radicais" contra a doutrina da HV, que, de resto, o próprio Paulo VI já havia previsto (n. 121), e reitera que a encíclica "teve, certamente, um significado profético ao reafirmar a união inseparável entre o amor conjugal e a transmissão da vida". No entanto, muitas das respostas e comentários enviados "destacam a aflição do homem moderno com relação a temas como o afeto, geração da vida, reciprocidade entre homem e mulher, paternidade e maternidade" (n. 122). Passando a questões mais específicas, admite-se que a HV, “na maioria das vezes não é conhecida em sua dimensão positiva", mas somente nas proibições, e, “é evidente que a avaliação moral dos métodos de controle de natalidade é percebida, comumente, como ingerência na vida íntima do casal e limitação da autonomia da consciência".
Há uma observação interessante, que deveria ter sido levada em conta, não apenas para deplorar: "... para muitos católicos, o conceito de ‘paternidade e maternidade responsável’ [engloba] a responsabilidade partilhada de escolher, em consciência, o método mais adequado para regular os nascimentos, em base a um conjunto de critérios que vão da eficácia à tolerância física, passando pela praticabilidade efetiva" (n. 123). Também outro fato, apresentado como limite, na realidade, parece ser um sinal: "... destaca-se a dificuldade de entender a distinção entre os métodos naturais de regulação da fertilidade e a contracepção, a tal ponto que geralmente tal diferença é traduzida midiaticamente em termos de métodos contraceptivos "naturais" e "não naturais". Assim compreende-se porque motivo tal distinção é sentida como improvável ..." (n. 124). A partir deste ponto em diante, o parágrafo prossegue esclarecendo a doutrina, porém, na verdade, de modo pouco feliz. O parágrafo seguinte também é interessante, mas, infelizmente, o relevo obtido foi filtrado quase obedientemente pela desaprovação prévia: "Respostas e observações relevam como é entendida de modo forte a diferença entre métodos contraceptivos 'abortivos' e 'não abortivos’. Frequentemente, este é o critério de juízo utilizado a respeito da bondade moral dos diferentes métodos" (n. 125). O que na linguagem oficial da Igreja se continuará a chamar de "dificuldade" de recepção ou de aplicação da doutrina da HV está relacionada ao "grande fosso existente entre doutrina da Igreja e educação civil, sobretudo nas áreas geográficas mais marcadas pela secularização". Reconhece-se (justamente) que a redução da problemática à casuística, não promove uma visão ampla da antropologia cristã, e que, muitas vezes, o ensinamento da Igreja é rejeitado apressadamente como retrógrado, sem se confrontar com suas razões (n.126). Isto é, em boa parte, verdadeiro; mas não se reconhece o quanto a própria encíclica Humanae Vitae teve parte neste afastamento da doutrina da Igreja. Mais do que questionável é o n. 127 que, ao apresentar a ideia como oriunda das respostas recebidas, "coloca a difundida mentalidade contraceptiva em relação com a presença maciça da ideologia do gender, tendente a modificar algumas estruturas fundamentais da antropologia, entre as quais a do sentido do corpo e da diferença sexual, (...) a ponto de chegar a propor a subversão da identidade sexual". E a propagação dessa ideologia (na verdade inexistente como ideologia) é reduzida a uma espécie de conspiração: "...O descrédito atribuído à posição da Igreja sobre o tema da paternidade e maternidade constituí apenas um elemento da transformação antropológica, que algumas realidades, muito influentes, continuam promovendo". Em seguida, vem a seção relativa às sugestões pastorais, mas também não consegue decolar. Compreende-se aqui que as respostas do questionário não ofereciam muito, e até mesmo os próprios autores dos Lineamenta não pareciam capazes – ninguém certamente o seria - de ir além da reproposição, possivelmente melhorada, do que já existia: cursos pré-matrimoniais como verdadeiros percursos de educação ao amor, e apresentação dos métodos da regulação natural da fertilidade por pessoas realmente capazes em termos médicos e pastorais (n. 128).
Observações dignas de nota encontram-se no parágrafo seguinte, a respeito da "prática sacramental", ou seja, ao modo de abordar estas questões no sacramento da penitência e no que se refere a participação na Eucaristia. Aqui, novamente, deparamo-nos com fatos interessantes e também promissores, que mereceriam uma escuta melhor; mas foram imediatamente deixados de lado.
Quanto ao sacramento da penitência, no entanto, em queda acentuada, emerge um dado significativo, mas mais uma vez liquidado em negativo, como um sinal de secularização: uma vez que a matéria do sacramento da confissão é a acusação dos pecados, os cônjuges tendem a não falar mais destes argumentos na confissão, pois não se sentem em pecado pelo uso de métodos contraceptivos. E, consequentemente, aproximam-se da Eucaristia, sem nenhum problemas. Ao que parece, isto foi considerado muito criticável e perigoso. Mas, poderia, ao contrário, ser um sinal do crescimento ocorrido ao longo do tempo. Tanto mais que, os Lineamenta sublinham, neste mesmo parágrafo, emergem de algumas respostas que “hoje ‘o exame de consciência’ dos casais cristãos está concentrado na relação entre os cônjuges (infidelidade, falta de amor), descuidando bastante os aspectos da abertura à vida” (n. 129), e, de acordo com o documento, isto confirma a fraqueza com que muitas vezes se entende a relação entre o dom de si mesmo ao outro na fidelidade e a geração de vida; mas, de acordo com outros, e com esses outros estamos de acordo, confirma-se uma evolução positiva do conceito de amor no sentido personalista e também, deve-se reconhecer, uma reconfortante centralidade da consciência. Além do mais, a abertura à vida é um atributo fundamental da união de amor, porém, ela diz respeito às escolhas fundamentais, e não certamente à modalidade do ato sexual singular.
Nisto, como se sabe, foi reconhecido, desde o primeiro momento, o ponto crítico da encíclica Humanae Vitae. O fato de "permanecer íntegra, entre os fiéis, a consciência do aborto, como pecado extremamente grave, sempre matéria de confissão", deveria confirmar o vigor e a maturidade da atitude: não se trata absolutamente de relativismo moral ou indiferentismo moral, mas de capacidade de discernimento. Os últimos dois parágrafos (130-131) tratam das formas de promover uma mentalidade aberta à vida, mas (em positivo) não vão muito além da necessidade de levar em consideração a questão social e trabalhista, enquanto (em negativo) coligam a queda demográfica à “mentalidade contraceptiva" e a propagação de um modelo antropológico individualista.
A Humanae Vitae no Sínodo de 2014
No Sínodo Extraordinário a questão foi tratada, mas não parecia ser crucial; outras, de fato, eram as questões nas quais a maioria dos bispos se dividiam. Já escrevi, na Revista Rocca, o apreço do trabalho do Cardeal Erdo durante o Sínodo, comparável àquele do card. Kasper na fase preparatória do mesmo: infelizmente, o Sínodo, logo deixou cair quase por inteiro, a melhor parte da reflexão, preferindo refugiar-se na segurança das formulações tradicionais.
A formulação mais esclarecida e positiva encontra-se, de fato, na Relatio ante disceptationem, de 6 de outubro de 2014 (ou seja, antes dos trabalhos começarem), sob o título Anunciar o Evangelho da vida. "... A abertura à vida não se acrescenta por imposição externa ou por escolha opinável e facultativa ao amor conjugal, mas lhe é essencial e exigência intrínseca, pois o amor tende a comunhão e a comunhão gera vida. (...) Acolher um filho não é apenas colocá-lo no mundo, mas criá-lo em sua alteridade, dar-lhe vida. O acolhimento à vida não se limita exclusivamente à concepção e ao nascimento. É completado na educação dos filhos e no sustento dado para o seu crescimento ... ".
Isto requer, obviamente, que a família não se seja vista como um fragmento isolado, mas inserida numa teia de relacionamentos. Como sempre, ou melhor, como é quase sempre inevitável neste tipo de escritos condicionados ao dever de preservar ou transmitir doutrinas, a parte genérica resulta sempre mais livre e alada do que a parte específica. Erdö, no entanto, afirma, em seguida, a possibilidade de uma reproposta positiva da mensagem da Humanae vitae, porém "por meio de uma hermenêutica histórica adequada, que saiba colher os fatores históricos e preocupações presentes à sua elaboração por Paulo VI”; e recorda que, citando o texto da encíclica, "a norma moral nela contida, atua à luz da ‘lei da gradualidade'". E aqui seriam necessárias algumas precisões, exatamente porque, no nosso tempo, fora do círculo dos especialistas, o debate sobre HV está adormecido. Mas sobre isto, falaremos no próximo artigo.
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A Encíclica na sombra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU