09 Março 2015
Se o Concílio quis a "reforma litúrgica", é porque o rito tridentino parecia – há já 50 anos – repleto de limites e de defeitos, que deviam ser acuradamente superados. Se o Concílio não tivesse desejado abandonar a Missa de Pio V, não teria previsto expressamente uma Reforma dela.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 06-03-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O exercício da autoridade, na Igreja Romana, é coisa séria. Ele precisa de uma dupla condição: temos autoridade se formos encarregados de um ministério, mas temos autoridade [autorità] apenas se exercermos o ministério com respeitabilidade [autorevolezza]. Alguém não é cardeal porque fala com autoridade, mas também não é por ser cardeal que se é dotado, automaticamente, de uma palavra autorizada.
Se um simples batizado tivesse pronunciado a frase com que se abre a recente entrevista concedida pelo cardeal [Robert] Sarah, poderia ser simplesmente considerado como fruto de leveza, de descuido e de superficialidade. Mas, se é o prefeito da Congregação dos Ritos quem diz essas palavras, então a questão se torna muito séria. Ouçamos esta "varada" inicial, que está justamente no início da entrevista:
"O Concílio Vaticano II nunca pediu para rejeitar o passado e abandonar a Missa de São Pio V, que gerou inúmeros santos, nem para deixar o latim, mas, ao mesmo tempo, é preciso promover a reforma litúrgica desejada por aquele Concílio."
Diante de um início desse tipo, não se pode deixar de destacar dois erros irremediáveis:
a) a ideia de que o Concílio Vaticano II não pediu para se abandonar a Missa de São Pio V;
b) que essa suposta intenção não está em contradição com o "promover a reforma litúrgica".
Se o prefeito da Congregação do Culto não consegue captar a contradição interna entre essas duas afirmações – além da falsidade da primeira –, esse fato se torna um problema relevante para a própria implementação da Reforma Litúrgica.
Se o Concílio quis a "reforma litúrgica", é porque o rito tridentino parecia – há já 50 anos – repleto de limites e de defeitos, que deviam ser acuradamente superados. Se o Concílio não tivesse desejado abandonar a Missa de Pio V, não teria previsto expressamente uma Reforma dela.
Mas como se pode imaginar um Concílio que reforma um texto ritual para podê-lo conservar tal e qual? Em que mundo de cabeça para baixo poderia existir tal condição? E quantos cardeais ainda deveremos ver subindo nos espelhos para defender tal "monstrum" lógico e pastoral? Dar-se-ão conta, mais cedo ou mais tarde, do ridículo a que se expõem?
O Papa Francisco esclareceu, de modo plenamente equilibrado, que, no plano litúrgico, o Concílio Vaticano II é um "evento irreversível". Não se precisa mais do que o bom senso e a ausência de preconceito para entender que o Concílio Vaticano II não pode ser compreendido em nada se assumirmos – de modo totalmente arbitrário – que ele não quis modificar o "rito tridentino".
O centro da Constituição Sacrosanctum concilium é precisamente o de fazer avançar a condição do "rito romano" de um paradigma a outro, mediante uma reforma do rito. Nessa transformação, a continuidade do rito romano só é assegurada por uma descontinuidade. É o próprio texto da Sacrosanctum concilium que esclarece inequivocamente como é preciso modificar profundamente o modo de celebrar, de escutar a palavra, de rezar por todos, de fazer a homilia, de usar as línguas modernas, de criar unidade entre palavra e sacramento, de concelebrar, de ter acesso à comunhão sob as duas espécies.
Esse é o ditado explícito da Sacrosanctum concilium e está diante dos olhos de todos os cristãos: como é possível que não um simples fiel, mas até o prefeito da Congregação do Culto – ou seja, o máximo responsável pelo culto na Igreja Católica – ignore-o e até o contradiga? É, talvez, compatível com a sua autoridade essa completa falta de autoridade?
Mas não é o suficiente. O equívoco, fundamental, é o que é apresentado como o "fim" de toda essa reflexão distorcida: ou seja, a "paz litúrgica". Criar as condições para uma "paz" dependeria, segundo o cardeal Sarah, de um novo paralelismo entre rito antigo e rito novo.
E está aqui, creio eu, o punctum dolens, que já caracterizou o motu proprio Summorum pontificum, também este voltado a "trazer a paz" e que, em vez disso, gerou apenas mais discórdia.
Mas Sarah, imprudente e ingenuamente, desvincula a lógica do motu proprio da sua justificativa original – ou seja, a paz com os lefebvrianos – e pretende fazer com que ele se torne a regra de uma "paz" interna a toda a "universa ecclesia".
Também sobre a questão do motu proprio o cardeal Sarah expressa um parecer bastante arriscado:
"Infelizmente, não foi um sucesso total, porque uns e outros estão 'agarrados' ao próprio rito, excluindo-se mutuamente. Na Igreja, cada um deve poder celebrar com base na própria sensibilidade. É uma das condições da reconciliação."
Dizer que um fracasso "não foi um sucesso total" já é uma bela forma de mistificação. Mas o verdadeiro problema é que o senhor cardeal tende a equiparar no mesmo plano aqueles que seguem o Concílio e aqueles que o negam: seriam apenas "sensibilidades diferentes", igualmente legítimas. Esse é outro erro irremediável, especialmente para um prefeito de Congregação.
Que fique claro: se um cardeal quer a paz, isso certamente é uma coisa boa. Mas, se, para realizar a paz, ele incita ainda mais a confusão, isso não é uma coisa boa, mas algo perigoso e imprudente.
Por outro lado, é bom lembrar: se um cardeal é titular de uma autoridade, é bom que a exerça e mereça o máximo respeito no exercício de tal autoridade. Mas, se ele justifica a própria autoridade com argumentações, tais argumentações serão fortes não porque defendidos por um cardeal, mas apenas pelo seu valor intrínseco e pela sua respeitabilidade.
Nesse caso, as premissas do raciocínio cardinalício são falsas – o Concílio quis explicitamente superar o rito tridentino, e não o contrário –, e as consequências são ilusórias – a paz não é gerada fazendo confusão, mas com uma decidida orientação à Reforma.
Essas consequências paradoxais permitem apenas que alas marginais e nostálgicas da Igreja se vejam protegidas por expoentes da Cúria desprovidos de senso da realidade e de verdadeiro contato com as comunidades vivas.
Na verdade, vivendo sempre nos escritórios da Cúria, esses bravos cristãos imaginam uma Igreja que não existe e ignoram a que existe.
Dizia um secretário de Congregação, há alguns anos: "Onde quer que eu vá, encontro seminaristas que me pedem o rito antigo...". Mas aonde ia? Onde vivia? A quem se referia? A quem dava crédito? Iludir-se e iludir nunca é uma virtude...
É, ao contrário, a doença da "autorreferencialidade", que o Papa Francisco justamente indicou como critério geral das 15 doenças da Cúria Romana, no seu discurso à Cúria de dezembro de 2014.
Um prefeito autorreferencial é uma autoridade desprovida de autoridade. Para recuperar o terreno perdido, seria oportuno que, no futuro, antes de conceder entrevistas, se preocupasse em estudar um pouco a matéria sobre a qual se pretende falar, para poder esperar conservar ao menos uma migalha de verdadeira respeitabilidade.
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Senhor cardeal, para que desfigurar o Vaticano II? Sobre o prefeito Sarah e a paz litúrgica. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU