25 Novembro 2014
A Pública se reuniu com organizações de “fact-checking” do mundo todo para discutir alguns dos principais dilemas éticos que encontramos durante a realização do Truco!, nosso projeto de cobertura eleitoral
A reportagem é de Natalia Viana, publicada pela Agência Pública, 21-11-2014.
Foi a primeira experiência da Agência Pública em checagem de campanha eleitoral, e foi como um vendaval: o Truco tomou conta da redação, virou nossa rotina de cabeça para baixo e nos deixou com muitas descobertas, muitos dados novos e muitos questionamentos. Depois de 69 dias checando as propagandas políticas dos presidenciáveis na TV, publicamos no total 33 edições do #Truco! e distribuímos 129 cartas: 18 “Truco!” (um desafio aos candidatos que diziam informações insustentáveis), 10 “Truco Popular” (nossos leitores trucaram os candidatos), 20 “Blefe” (mentira), 24 “Tá Certo, Mas Peraí” (frases corretas, mas que precisam de mais contexto), 39 “Não É Bem Assim” (frases exageradas, distorcidas, discutíveis), 4 “Zaps” (frase verdadeira e relevante), 2 “Que Medo!” (propostas que afetam os direitos humanos), 1 “Candidato em Crise” (contradições) e 11 Cartas Marcadas (frases repetidas). Saiba mais sobre o Truco! aqui.
Foi um trabalhão, mas valeu. O #Truco! teve mais de 80 menções na mídia – figurou na Globonews, TV Brasil, CBN, TV Cultura, BBC e Rádio Jovem Pan, entre outros – e se tornou uma das ferramentas mais relevantes para auxiliar os eleitoras a decidir seu voto. No Facebook fizemos 235 posts e alcançamos em média 73 mil pessoas por dia, ao longo de quase 70 dias. No twitter, as menções ao projeto alcançaram uma média de 280 mil usuários por semana. E o mais importante: o #Truco! abriu um canal de construção e colaboração com nossos leitores que permitiu debates de altíssimo nível, recheados de dados e fatos concretos em meio a uma disputa eleitoral pra lá de emotiva. Já estamos, como alguns leitores, com saudade da nossa checagem eleitoral. E queríamos fazer um balanço dessa experiência da mesma forma que construímos o Truco!: colaborativamente.
Por isso veio em boa hora o convite para participar do “Latam Chequea”, o Primeiro Encontro Regional da Rede Global de Fact-Checkers, que aconteceu em Buenos Aires entre os dias 6 e 8 de novembro. Participaram do encontro diversas iniciativas de checagem de diferentes países como Uruguai, Chile, El Salvador, Colômbia, Estados Unidos, África do Sul e Itália. Um turbilhão de Trucos! Muitas das questões que vínhamos discutindo dentro na redação têm eco em todos os jornalistas que têm se dedicado como nós a checar dscursos de políticos. Em seguida vamos compartilhar algumas delas.
Como nasceu a checagem de discurso
O encontro foi uma iniciativa de Laura Zommer, jornalista argentina que comanda o site Chequeado, pioneiro na região cujo sucesso inspirou diversos outros jornalistas – como os da Pública – a apostar no modelo de checagem de discurso. Laura fez questão de trazer o “pai” do fact-checking Brooks Jackson, que hoje comanda o site FactCheck.org, nos EUA.
Segundo Brooks, as primeiras checagens que fez datam de 1991. “A princípio não me pareceu uma boa ideia”, brinca. O jornalista recém chegava à redação da CNN em Washington, onde faria parte da equipe de jornalismo investigativo do canal. A ordem da chefia para a disputa eleitoral daquele ano (entre George HW Bush e Bill Clinton) era mostrar clipes das propagandas dos candidatos na TV e sobrepor a eles letreiros com a estampa “verdadeiro” ou “falso”. A ideia lhe pareceu estranha, já que Bush concorria à reeleição. “O que acontece se ele aparecer nas suas próprias propagandas e disser algo impreciso? Vocês esperam que eu ponha um selo com a palavra ‘falso’ na cara do presidente dos Estados Unidos?”, perguntou o jornalista ao seu diretor. Era isso mesmo.
Embora fosse uma ousadia sem precedentes, a iniciativa, batizada de “polícia dos anúncios eleitorais” (“ad police”) foi um sucesso. Brooks conta que “havia entre muitos jornalistas um sentimento de que os candidatos estavam livres demais para distorcer os fatos em suas campanhas, e essas afirmações enganosas estavam sendo absorvidas pelo público sem serem questionadas”. Em pouco tempo não só a CNN, mas todos os principais canais de TV americanos estavam fazendo o mesmo. No entanto, diz Brooks, a “moda” foi passageira e a maior parte dos sites abandonou a checagem no ano seguinte.
Decidido a checar muito mais que propagandas eleitorais, abarcando também discursos do presidente, debates políticos e sessões do Congresso nos seus “fact-checks”, ele mesmo acabou saindo da CNN. Foi contratado pelo Annenberg Public Policy Center, um think thank de Washington, e ali criou o FactCheck.org, primeiro site exclusivamente dedicado a checagem de discurso, que estourou nas eleições presidenciais de 2004 quando George Bush, o filho, foi reeleito. “Neste momento eu estava convencido de que a obrigação de qualquer organização de notícias respeitável era desafiar falsidades de forma agressiva e direta”, diz.
Muita verdade, muita mentira na internet
Para Brooks, o sucesso do conceito de checar o que dizem os políticos tem a ver com dois fatores. Primeiro, hoje é difícil verificar na internet o que é informação verdadeira e o que é informação falsa. O segundo tem a ver com a dinâmica política americana – e guarda uma assombrosa semelhança com o atual momento político brasileiro. “Nos ultimos 20 anos, nossa política se tornou cada vez mais amarga, nossa nação está cada vez mais dividida por linhas partidárias. E os partidários profissionais se sentem cada vez mais justificados em tomar liberdades com os fatos – inclusive mentindo diretamente – para evitar que o outro lado ganhe. Nos anos eleitorais as telas dos EUA estão cheias de anúncios repetindo declarações falsas ou duvidosas”.
Ao esforço de Brooks juntou-se o site PolitiFact, lançado em 2005 pelo jornalista Bill Aldair com o propósito de “popularizar” a checagem de discurso através de “termômetros” e “medidores” de mentira. Bill ampliou as gradações da mentira – no seu site as declarações de políticos são classificadas como “verdeira”, “quase verdadeira”, “meia verdade”, “quase falsa”, “falsa” e “calças em chamas”, uma referência à frase “Liar, Liar, Pants on Fire!”. As declarações são então dispostas em um medidor, o Truthometer, ou “verdadômetro”. É também do Politifact a ferramenta Obamometer (“Obamômetro”), que monitora o cumprimento das 500 promessas feitas por Barack Obama durante a campanha presidencial de 2012. “Esse é um momento muito empolgante para o jornalismo, como a invenção da imprensa de Gutember. Podemos reinventar a maneira na qual transmitimos informações e nos comunicamos com as pessoas”, diz Bill. Para embasar as decisões editoriais sintetizadas no “Verdadômetro”, o PolitiFact explica detalhadamente em seu site quais são os passos tomados para cada checagem e quais os critérios adotados. “Eu acho importante nessa era da mídia que nos expliquemos claramente”, diz.
Os “medidores” de Aldair serviram de inspiração tanto para coberturas aqui no Brasil – onde a Folha de São Paulo tem utilizado o “Mentirômetro” nas últimas eleições – quanto em outros países latinoamericanos. A ONG Ciudadadano Inteligente, do Chile, lançou este ano o site “Del Dicho al Hecho” (em português, “do dito ao feito”) para medir o cumprimento das 65 promessas feitas por Michele Bachelet ao assumir a presidência em março deste ano.
Termômetros, classificações e rankings de mentiras
Ficou claro durante o Encontro, no entanto, que estabelecer “termômetros” ou “medidores” é algo bem polêmico. Existe, claro, sempre o risco de uma simplificação exagerada de temas complexos, como aponta Brooks Jackson. Há diversos riscos interentes à interpretação – e não é tão simples decretar as “gradações” da verdade. “Classificações para frases são inerentemente subjetivas. E há um problema que você não pode evitar: se você tiver 5 categorias, haverá algumas frases que simplesmente não vão caber nessas categorias. O que fazer no caso de uma declaração que é literalmente verdadeira mas o sentido é totalmente enganoso?”.
Já Bill Aldair defende a categoriação – ou, no caso do #Truco!, as cartas distribuídas – porque elas permitem que a mensagem chegue a muito blefe evaraldomais pessoas. “Classificações são uma coisa positiva porque elas não substituem o jornalismo aprofundado, mas resumem o tema de uma maneira que ajuda o leitor. Pessoas que não leriam textos de 20 centímetros de comprimento vão dar uma olhada no seu termômetro”. Ele defende também a comparação entre a quantidade de “mentiras” que um politico diz em relação a outro. Durante o “Truco!” a equipe da Pública evitou fazer “rankings” sobre quais candidatos teriam recebido mais cartas “Blefe”, por exemplo, porque nem sempre a comparação é justa. Às vezes, um discurso evasivo, impossível de ser checado, é muito mais prejudicial ao debate político do que um discurso com dados errados. Já Bill Aldair diz que os rankings “são um serviço válido, mas é preciso deixar claro para o leitor que não se trata de uma ciência”.
Para Laura Zommer, do Chequeado, um dos maiores problemas no discurso político é justamente aquilo que não pode ser checado. “Nas últimas eleições argentinas tentamos checar os anúncios na TV dos candidatos, mas no final descobrimos que pouca coisa era passível checar porque havia muitas falas genéricas”. Assim, o politico que se atém mais aos fatos acaba sendo mais checado do que aquele que usa termos vagos. “Tivemos que criar a carta ´não-checável´”, explica Laura. “Para as próximas eleições vamos tentar desenvolver um índice que ressalte quando o candidato evita falar de fatos concretos”. Se isso for possível – a equipe está estudando um índice junto com um grupo acadêmico de uma universidade – haverá, aí sim, uma lista dos “mais evasivos” da campanha argentina de 2015.
Mentir tem que custar caro
“Trabalhamos para aumentar o custo da mentira”, explica a jornalista Olivia Sohr, da equipe do Chequeado. Ou seja: por trás do trabalho do site está a missão de impor um custo político à mentira dos governantes. Agora, é preciso aumentar o custo do discurso vago, ou da negativa em publicar dados.
Existem muitos casos em que nem os dados são confiáveis. Segundo Olivia, há anos que o governo argentino não publica dados sobre inflação. “Sem saber dados sobre inflação, não sabemos quão defasados estão os salários por exemplo. Todas as checagens econômicas ficam muito difíceis”. O diretor do site sulafricano AfricaCheck, Peter Culiffe, conta uma história bem ilustrativa. O site buscou durante algum tempo checar um dado do Ministério da Saúde que atestava um aumento brusco no alcance da vacinação no país. No entanto, quando os jornalistas foram pesquisar encontraram uma apresentação do prório ministro desacreditando os dados oficiais. Segundo o ministro, como as localidades recebem repasses de verba atrelados ao aumento da vacinação, muitas passaram a relatar índices altos de vacinação de um dia para o outro. “Procuramos então dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), mas o relatório deles também dizia que os dados usados não eram confiáveis”. No final a checagem foi inconclusiva. “Tivemos que escrever uma matéria explicando que nenhum dos dados existentes sobre vacinação na África do Sul são confiáveis”.
O jornalista Alexios Mantzarlis, que está à frente do site Pagella Política, da Itália, foi ainda mais fundo na autocrítica ao impacto do trabalho de checagem. “Temos medo de que na verdade tenhamos um impacto negativo. Quando analisamos as nossas checagens mais visitadas, vemos que as pessoas buscam mesmo as mentiras. E por isso tenho medo que estejamos reforçando a ideia de que todos os políticos são mentirosos”. O efeito seria exatamente o oposto do que pretendem os sites de checagem: fortalecer a democracia.
O papel da checagem em meio à polarização
Essa é uma tarefa ainda mais importante em países divididos, como é o caso da Argentina, onde o governo e grupos de mídia – em especial o grupo Clarín – acuam-se mutuamente de “mentirosos”, argumenta Laura. “Se sou a favor da Cristina, há coisas que eu acredito mesmo que me soem estranhas. E se não gosto dela, o mesmo, fecho as cortinas e não ouço mais nada. Isso não é um problema individual, mas coletivo. É um grave problema para a democracia. Se nós não conseguimos concordar em fatos básicos, então não se consegue avançar em nenhuma discussão”. O Chequeado nasceu em 2011, como uma organziação sem fins lucrativos, apartidária, e com uma clara missão: “Queremos fazer com que as pessoas se importem mais com os fatos. Que lhes aborreça que alguém diga coisas enganosas impunemente”.
Ela resume em uma palavra o que fazem sites como #Truco! e o Chequeado: jornalismo. “Em um sentido estamos voltando à base do jornalismo, a verificação dos fatos, em um contexto de excesso de informação”. Junto com o excesso de informação na internet vem também outra caracteristicas importante dessa nova era. “Não se pressupõe mais o discurso de autoridade, de que as pessoas vão acreditar em um jornal apenas porque é o Clarín, por exemplo. Isso não funciona mais”, diz. Por isso, o Chequeado sempre é transparente quanto aos passos tomados para sua checagens e publica as bases de dados, estudos e documentos utilizados como fonte primária. “Para checar não é preciso ser um jornalista com anos de experiência, mas apenas alguém com dedicação e disposto a investir tempo em olhar dados e analisá-los. E que seja honesto intelectualmente”
Laura conta, com muito orgulho, que em 2014 o Chequeado começou a “exportar” a ideia da checagem para países vizinhos, tendo dados consutoria e apoio para outras organizações fazerem checagens durante as eleições. Foi o caso do site colombiano La Silla Vacia, que cobriu a campanha eleitoral com o “Detector de Mentiras”, e também do Truco! e do blog “Preto do Branco”, publicado pelo jornal O Globo, que cobriu os debates presidenciais ao vivo.
“O Fact Checking é agora um fenômeno mundial”, comemora Brooks. Em junho deste ano, um congresso global reuniu cerca de 40 sites do tipo da Índia, África do Sul, Sérvia, Polônia, França, Chile, Ucrânia. Dois meses depois, em Buenos Aires, já se contava mais de 53. Recentemente, uma iniciativa para checar os discursos de presidentes na reunião do G-20 teve adesão de 9 sites, incluindo o brasileiro Preto no Branco, editado pela jornalista Cristina Tardáguila, do Globo. E muito mais deve aparecer por aí. “É preciso que líderes usem dados não só quando lhes convém. E isso também inclui lideranças jornalísticas, sindicais e corporativas”, conclui Laura Zommer. “Mas não adianta esperar que a mudança velha de cima para baixo. Temos que trabalhar de baixo para cima”.
Uma semana depois a jornalista esteve no evento “Rebelião Jornalística”, promovido pela Agência Pública e pela Ponte, onde contou um pouco mais sobre os dilemas que envolvem o seu trabalho.
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Um turbilhão de Trucos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU